A boemia no espaço LGBT: um estudo acerca do estilo de vida da mulher lésbica

Por Maria da Conceição Alves Ferreira | 04/01/2011 | Sociedade

1. APRESENTAÇÃO DO TEMA E JUSTIFICATIVA DE SUA RELEVÂNCIA
Este trabalho apresentará as diversas formas de identificação da vida boêmia das mulheres lésbicas em espaços de dinâmica LGBT em Aracaju. Neste sentido, a principal parte da pesquisa consistirá numa análise da forma pela qual esse grupo de mulheres, pertencedor de um estilo de vida alternativo pautado em redes de sociabilidade particulares, se desenvolve.
Estudos relacionados a homossexualidade tomaram impulso com a ascensão dos movimentos sociais em defesa dos direitos humanos, dos direitos civis dos homossexuais e da liberdade sexual, que tiveram início por volta da década de 60 nos Estados Unidos difundindo-se pela Europa, e posteriormente pelo mundo.
Trazer questões relacionadas à lesbianidade é algo que se concretiza, na maioria das vezes, por pessoas que estão inseridas nesse ramo da homossexualidade. Apesar de ser heterossexual, venho realizar pesquisas dentro desse campo de estudos, uma vez que meu interesse surgiu a partir de inquietações teóricas acerca dessa problemática no decorrer da academia. Estou assumindo a minha orientação sexual não porque tenho receio em ser confundida com as lésbicas durante o processo de pesquisa, mas sim, como uma forma de demonstrar que os heterossexuais também têm interesse no estudo acerca da homossexualidade.
A pesquisa aqui apresentada se dará em ambientes onde esse grupo de mulheres lésbicas têm maior contato, ou seja, acontecerá em espaços em que se desenvolve uma freqüência de encontros. Sendo assim, foi escolhido os bares e boates LGBT como localidade para um estudo acerca desse segmento, uma vez que esses ambientes são mais propícios e abertos as diferenças.
Em Aracaju, existe atualmente cerca de dez espaços de sociabilidade LGBT, envolvendo bares e boates, que são reconhecidos como tal. Esses ambientes, apesar de serem destinados ao público homossexual oriundos de diversas faixas etárias, classes sociais e etnias, o acesso ao local torna-se aberto também a outros públicos. Os ambientes propostos ao estudo encontram-se localizados, em sua maioria, na zona sul da capital sergipana, onde podemos destacar o bairro Coroa do Meio como o local que possui o maior número de ambientes destinados ao público homossexual.
Esses ambientes, também distribuídos nas várias partes da cidade, possuem dinâmicas de funcionamento de forma similar, são abertos em período noturno, geralmente a partir das vinte horas. Nesses locais a entrada é realizada conforme a programação do dia, onde em sua maioria, é cobrada uma taxa para acesso ao local. São ambientes abertos, principalmente, aos finais de semana, sendo desenvolvidos nesses espaços atrações internas, como shows e performances, com uma maior predominância de música eletrônica. A música, nesses ambientes, é uma das formas encontradas pelo grupo de mulheres lésbicas com intuito de diversão, descontração, com um estilo diferenciado daquele tido como tradicional.
Esse modo de vida alternativo é o que identificaremos nesses espaços de dinâmica LGBT. Uma vez que a pretensão em identificar um estilo de vida boêmio num grupo de mulheres lésbicas, se deu pelo fato de que, apesar de nos últimos anos haver um crescente estudo acerca da sexualidade, podemos citar uma menor visibilidade, em termos de pesquisa, quando nos referimos ao segmento feminino. Isso ocorre porque a temática lésbica nem sempre teve espaço necessário para se definir enquanto tal, uma vez que sempre foi eclipsada pela temática gay, pois apesar de também serem homossexuais, os gays sempre tiveram espaços privilegiados no campo de estudo. Esse fato ocorre porque ainda há um enraizamento do prestígio do macho na nossa cultura estritamente patriarcal.
E é por este motivo, que adentramos no assunto que envolve as mulheres lésbicas, pois as mesmas necessitam de uma maior centralidade no campo de estudo. As bases desta visibilidade demonstram um crescente interesse em desenvolver, no campo de estudo, teorias referentes à temática lésbica, uma vez que estas compõem um grupo cada vez mais crescente.
Reconhecer e definir formas de vida boêmia não é tarefa fácil, já que envolve diversas teorias acerca do assunto. O problema em definir esse termo se torna cada vez mais constante, uma vez que encontramos em dicionários definições um tanto confusas e pautadas apenas na idéia de inconseqüência. Essa idéia atribui à boemia um conceito de "vida desregrada, sem preocupações com o futuro" (dicionário Aurélio online, 2009), uma vida onde os boêmios vivem sempre em farra, em constante exagero. Assim, ele passou a ser relacionado com conspiração, cumplicidade entre os que se viam insatisfeitos e excluídos da ordem social.
Nesta perspectiva, a problemática que aqui se apresenta se refere aos seguintes questionamentos: Que tipo de práticas ocorrem nos espaços de sociabilidade LGBT? Qual a relação existente entre o estilo de vida boêmio e as práticas LGBT existente nos ambientes freqüentados por mulheres lésbicas? As lésbicas freqüentadoras deste ambiente se vêem enquanto boêmias?
Assim, busca-se, através do modo boêmio, problematizar a efetividade do modo de vida alternativo encontrado nestes ambientes. Pois, uma vez que existe uma proliferação cada vez maior de grupos LGBT na América Latina, há um crescente aumento de ambientes freqüentados pelos mesmos, a fim de que possam encontrar neles, práticas não encontradas em outros ambientes, os quais são cercados de preconceitos estabelecidos nessa uma sociedade estritamente patriarcal.

2. HIPÓTESES E OBJETIVOS PRINCIPAIS
Diante do exposto, surge uma gama de questionamentos que se antecipa como problemática à pesquisa. Que tipo de práticas ocorrem nos espaços de sociabilidade LGBT? Qual a relação existente entre o estilo de vida boêmio e as práticas LGBT existente nos ambientes freqüentados por mulheres lésbicas? As lésbicas freqüentadoras deste ambiente se vêem enquanto boêmias?
Assim, convém analisar de que forma ocorre o desenvolvimento de práticas fruitivas em espaços de estilo de vida não convencional. Já que, como forma de satisfação enquanto ser social, muitas pessoas passaram a freqüentar ambientes de sociabilidade. É aqui que eles buscam um espaço para se encontrar, celebrar e compartilhar suas experiências. Para os homossexuais isso não ocorre de forma diferente, pois os mesmos passaram a utilizar locais, como bares e boates, com intuito de diversão. Segundo Costa (1992), é nesse ambiente que os homossexuais têm possibilidade de sentir diversos tipos de atração ou de se relacionar fisicamente de diferentes maneiras com outras pessoas do mesmo sexo biológico que o seu.
Esses ambientes de sociabilidade LGBT possuem como característica primordial a presença de homossexuais, não descartando, é claro, a idéia de que, apesar de ser um espaço voltado para esse público, o acesso ao local também é aberto a outros segmentos sexuais. É nesse espaços que as lésbicas vivem o momento atual como modo de vida. Elas passam a vivenciar formas de descontração, criando uma espécie de intimidade, já que o convívio com o outro, de alguma forma, altera a maneira de ser do indivíduo, afetando decisivamente na sua vida pessoal.
A freqüência nesses ambientes LGBT conduz a novas formas de sociabilidade e experiências identitárias, já que as mulheres nestes espaços almejam viver seus desejos divergindo dos critérios normatizantes. De maneira mais geral, essas mulheres buscam nesse local, modos de vida alternativos onde podem fugir do modelo padrão, heterossexual, que lhes são impostos no cotidiano.
Para os homossexuais, uma das principais vantagens de se freqüentar ambientes LGBT está no fato de permitir uma maior aproximação entre pessoas, o que torna o local um meio de propagação pessoal envolvente, já que possibilita o compartilhamento. Este, no entanto, se dá pelo fato de haver aqui, grupo de pessoas que atendam aos interesses específicos do ser humano em termos de sociabilidade, uma vez que os indivíduos necessitam uns dos outros para uma maior interação social, o que é resultante para a promoção do laço social.
Esse laço é mantido através das formas pelas quais as freqüentadoras desses locais se comunicam coletivamente. Ele é uma forma com que as lésbicas se inteirem socialmente, uma vez que a interação social é a base da vida social, pois é neste momento em que há trocas de saberes e experiências. Esta interação social é baseada na lógica que o estilo de vida dos homossexuais é totalmente oposto àquele tido como tradicional, ou seja, um estilo de vida alternativo.
As práticas homossexuais passam a ser encaradas apenas como uma simples forma de recusa do modelo de vida tradicional, pautado nos valores sociais em que há uma supervalorização da heterossexualidade e uma inferiorização da homossexualidade.
Por esse motivo é que, nesse ambiente, as lésbicas integram um cenário tido como um momento em que as mesmas almejam. Elas vivenciam o momento como forma ideal de tratamento esperado na sociedade em termos afetivos e sexuais. Nesse momento, elas abandonam as convenções do cotidiano e passam a experimentar uma realidade em que todas se encontram integradas num mesmo patamar, sem diferenças. Isso ocorre porque este espaço é visto como um ambiente acolhedor, onde é possível expressar sentimentos, sem que os olhares discriminatórios se apresentem.
Esses locais se configuram enquanto espaços de proteção e liberdade ao mesmo tempo em que transcendem sua função de entretenimento e de lazer. É dentro de ambientes acolhedores como esses que as mulheres estão cada vez mais ganhando projeção, não só socialmente como também no campo dos estudos. Dessa forma, a pesquisa que aqui desenvolvo tem como objetivo central estudar as formas de vida boêmia das mulheres lésbicas freqüentadoras de ambientes destinado ao público LGBT na cidade de Aracaju. Além de analisar quais as práticas desenvolvidas por essas mulheres nos espaços que possuem esse tipo de sociabilidade. A pesquisa também se propõe a identificar a relação existente entre essas práticas LGBT e o estilo de vida boêmio presente nos ambientes em questão. Por fim, proponho-me a analisar, a partir da concepção das próprias lésbicas, se as mesmas se vêem enquanto boêmias e de que forma a boemia pode influenciar no desenvolvimento dessas práticas tidas como estilo de vida não convencional.

3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Conforme já mencionado, o objetivo dessa pesquisa é estudar as formas de vida boêmia das mulheres lésbicas freqüentadoras de ambientes destinado ao público LGBT na cidade de Aracaju. Sendo assim, para desenvolvimento dessa pesquisa, será escolhida a pesquisa de caráter exploratório e descritivo, pelo fato de apresentar a descrição do fenômeno e posteriormente compreendê-lo numa dada realidade.
Utilizarei, como técnica de coleta de dados, a observação direta e o roteiro de entrevistas semi-estruturada de cunho qualitativo, pois esse tipo de pesquisa, segundo Gelain (1991, p. 61) "(...) identifica as características, os significados das experiências humanas que são descritas pelos sujeitos e interpretadas pelo pesquisador em vários níveis de abstração". Assim, segundo a mesma autora, a pesquisa qualitativa não é definida por números, mas sim por uma abrangência de experiências humanas, com amplo significados, permitindo, pois uma visão dos indivíduos, associada ao estilo de vida e valores de cada sujeito. Utilizando o roteiro de entrevistas poderei entender de que forma é desenvolvida a dinâmica do local, além de identificar se essas mulheres se definem enquanto mulheres boêmias.
Para a realização dessas entrevistas é necessário que as entrevistadas preencham alguns requisitos básicos, como, primeiramente, serem lésbicas e freqüentadoras assíduas de ambientes LGBT. Isso porque as mulheres que ali aparecem esporadicamente não têm uma maior vivência do ambiente em questão, dessa forma, elas não passam pelas mesmas experiências que aquelas outras. Como forma de confiabilidade dos dados a serem fornecidos pelas mulheres, seus discursos, concedidos na entrevista, serão transcritos na íntegra, o que revela uma maior representatividade, permitindo assim, uma revelação das especificidades desses ambientes pautados na sociabilidade LGBT.
Como a vida noturna em bares e boates, seja ela em ambiente LGBT ou não, possui suas especificidades, uma vez que cada ambiente é dotado de características singulares, opto por fazer uso da observação direta para um melhor envolvimento e entendimento do funcionamento do ambiente em estudo. Como se trata de um grupo de pessoas pertencedoras de um determinado grupo social, o qual passa por diversos momentos distintos, essa observação se desenvolverá através da vivência e convivência nesses espaços de sociabilidade LGBT, já que dessa forma, farei uma melhor análise da mulher lésbica, enquanto indivíduo boêmio pertencedor de um estilo de vida alternativo.
Para a vivência e coleta de dados da pesquisa freqüentarei os ambientes em debate de preferência aos finais de semana com um horário superior as vinte e duas horas, já que nesse período há uma maior movimentação do público a que me refiro na pesquisa. A abordagem para a realização das entrevistas, como forma de coleta de dados, se desenvolverá através de redes de contatos, onde haverá indicações de pessoas e locais aos quais devo freqüentar para a efetiva realização dos objetivos esperados.
Entendendo que nenhum grupo é homogêneo e que nenhuma categoria represente todas as especificidades da mulher lésbica, levarei outras questões em consideração como forma de seleção do universo pesquisado, como classe social, escolaridade e faixa etária. Assim, adotarei o Enfoque Fenomenológico, que de acordo com Forguieri:
"(...) é aquele que abarca o existir humano em sua totalidade, abrangendo a tristeza e a alegria, a angústia e a tranqüilidade, a raiva e o amor, a vida e a morte como pólos que se articulam numa única estrutura, e cuja vivência dá a cada um dos extremos, aparentemente opostos, o seu real significado". (FORGUIERI; 1989, p.8)
Para a autora, este enfoque vê o homem como um ser no mundo, que vivencia o tempo presente, relacionando este às experiências passadas e o que espera do futuro. Assim, opto por um universo de pesquisa composto por 20 (vinte) mulheres lésbicas, as quais serão abordadas em ambientes LGBT, como a boate Clone Mix Show Bar, e os bares Alquimia Music Bar e Bar da Rita. Apesar de existir, em Aracaju, cerca de dez ambientes com esse tipo de dinâmica, fiz a opção por esses locais porque se apresentam de forma diferenciada em relação a sua localidade e ao seu público de acesso. A boate Clone Mix Show Bar foi escolhida por se tratar de um espaço estritamente voltado a danceteria. Já o Alquimia Music Bar e Bar da Rita, apesar de serem bares, têm diferenciação em relação a sua localidade, já que o primeiro situa-se na zona sul da capital, atraindo um grupo mais elitizado da sociedade aracajuana. Já o bar da Rosa, situado no conjunto Lamarão, se trata de um ambiente localizado na periferia da capital sergipana, atendendo a uma camada social inferior aquele anterior.

4. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
As questões relativas à sexualidade abrem, cada vez mais, um campo para as ciências sociais, desmascarando aspectos anteriormente tidos como proibidos. Dessa forma, passamos gradativamente a entender que a sexualidade envolve rituais, linguagens, fantasias, representações, símbolos, convenções, ou seja, processos profundamente culturais e plurais, já que os corpos ganham sentidos socialmente. Segundo Foucault (1988), a sexualidade é um "dispositivo histórico", ou seja, é uma invenção social.
Atrelado a isso, a homossexualidade passou a ganhar espaço em vários campos, já que, com o desenvolvimento dos costumes e mudança dos valores, dos conceitos de moral e de pudor, o assunto passou a ser tratado e enfrentado de forma aberta.
Em relação ao conceito de Boemia, seu termo, surgido no século XIX, na França, refere-se a grupos de pessoas que viviam de uma forma mais marginalizada na sociedade, ou seja, pessoas que possuíam um modo de vida alternativo aos da burguesia. A definição exata para esse termo torna-se cada vez mais difícil, uma vez que a tentativa de defini-lo está se dando de forma contrastante onde, Elizabeth Wilson (2003) afirma que a tentativa de definir o termo boemia e os seus boêmios se dá de uma forma complexa e frustrante. Isso ocorre justamente porque as definições para a boemia envolvem vários estilos de vida e defini-los é cada vez mais contraditório, já que, para isso, seria necessário envolver vários grupos sociais, comunidades e indivíduos.
A boemia, tratando-se de um fenômeno social e literário que se desenvolveu em lugares e em épocas diversas do mundo, se deu, primeiramente, por conta das grandes transformações industriais ocorridas pelo crescimento das cidades e da indústria. Nesse momento, começou a haver mudanças na sociedade como um todo, mais especificamente, transformações sociais. Isso ocorreu porque essas transformações foram conseqüência das mudanças ocorridas por conta da Revolução Francesa (1789-1799), fazendo com que houvesse cada vez mais profundas transformações sociais e econômicas. (SEIGEL, 1992)
Por esse motivo, é que Siegel (1992) afirma que a boemia tornou-se um fenômeno que definiu a época moderna, uma vez que foi desenvolvida a partir da Revolução Francesa, já no século XIX, sendo produto do crescimento das cidades e do desenvolvimento industrial. Mas, quando falamos em boemia, pensamos de imediato em irresponsabilidade, inconseqüência. O próprio autor Henry Murger (in Wilson, 2003) caracterizou os boêmios afirmando que os mesmos eram bebedores, artistas pobres e possuidores de uma vida marginalizada da sociedade. Essas definições acontecem porque a boemia foi apropriada aos estilos de vida marginais desenvolvidos pelos boêmios na época. Segundo Siegel (1992), esses boêmios possuíam características básicas como viver intensamente o momento atual, consumirem bebidas, utilizarem drogas, além de possuírem hábitos de vida noturna e não se encaixarem nos padrões regulares de vida. Até mesmo os dicionários passam a idéia de boemia como irresponsabilidade, atrelando ao boêmio uma significação de despreocupado com futuro, em que vive o atual de forma inconseqüente.
No Brasil, a boemia tem surgimento no final do século XIX, no Rio de Janeiro, num momento histórico parecido com seu surgimento na França, já que o Brasil também passava por grandes transformações sociais e políticas. Era nesse momento que os jovens da época possuíam a esperança de ter novas relações sociais, uma vez que nesse momento, eles passaram a acreditar que podiam ocupar novos espaços na sociedade. Esse pensamento, segundo Seigel (1992), é baseado nos ideais da Revolução Francesa, que começou a expressar pensamentos ideológicos baseado nos princípios universais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade (Liberté, Egalité, Fraternité). Embora tenha ocorrido na França, a Revolução atingiu o mundo inteiro de uma forma mais geral, uma vez que ela foi importante na construção de uma nova ordem democrática.
Ainda no final do século XIX, o Brasil vivenciou dois importantes momentos históricos que marcaram decisivamente as grandes transformações da sociedade: a Abolição da Escravidão (1888) e a Proclamação da República (1889). Nesse momento, segundo Chalhoub (2004), há uma reorganização nas relações, tanto no que se diz respeito às dominações, quanto nas relações de classe. E é justamente dentro desse contexto histórico que há o surgimento de novas e alternativas formas de vida, onde os boêmios, frutos da modernidade advinda dessas transformações, começam a fazer parte. Decididamente, o século XIX foi marcado por protagonistas que enfrentaram com insolência as regras de boa convivência social.
Falar nessas práticas de vida boêmia, no Brasil, é pensar na masculinidade, uma vez que esse grupo foi, historicamente, o principal atributo. Segundo Perrot (1995), os homens eram os principais beneficiados com esse modo de vida alternativo, uma vez que tinham, na noite, formas de diversão, pois os espaços sociais criados eram voltados para o público masculino. E é justamente nesse cenário que acabam perpassando as múltiplas relações de gênero.
A questão de gênero, automaticamente nos remete à idéia da sexualidade humana, que, segundo Góis (1991), é uma grandeza da experiência social onde se perpassam inúmeras questões. É através da sexualidade que se desenvolve um campo vasto de desejos, crenças e valores, que vai, de alguma forma, definindo um amplo espectro da nossa identidade.
Como a sexualidade não está à margem da história, mas sim, dentro de um contexto social onde se desenvolvem as estruturações das hierarquias sociais, podemos pensar em como essa sexualidade foi objeto de disputa e de controle social ao longo da história. Essa disputa se deu, de forma mais constante, quando obtivemos variações da mesma, já que segundo Góis (1991), a homossexualidade vai surgir como uma das variantes da sexualidade humana. O que acaba a caracterizando durante anos, como anormal, já que a heterossexualidade, apesar de ser uma criação histórica cultural baseada nos costumes judaico-cristãos, sempre foi tida como padrão.
O surgimento de novas formas de elaboração para identidades sexuais não é uma novidade na sociedade brasileira, foram observadas mudanças nas três últimas décadas e constatou-se uma acelerada modernização na área dos costumes, fazendo surgir novos códigos relativos à sexualidade em geral, e a homossexualidade em particular. A propagação da homossexualidade demonstra uma fragilização da hegemonia do modelo tradicional, que guiado por uma oposição de gênero e fundado numa lógica significativa da atividade homossexual como sendo anormal, passa a admitir para esse grupo uma classificação estigmatizante. (FRY, 1982).
Essa classificação é o que vai fazer com que haja uma diferenciação do modelo tradicional atrelando aos homossexuais uma posição à margem da sociedade, permitindo assim, que esse grupo passe a vivenciar um modo de vida alternativo, ou seja, pautado em formas diferenciadas daquelas tidas como normais.
Esse modo de vida alternativo aparece de certa forma, a partir do momento em que há uma maior urbanização e crescimento das cidades, uma vez que é o desenvolvimento das cidades que gera um aumento dos locais de lazer, desenvolvendo assim, uma liberdade para melhor vivência dos homossexuais. Com isso, uma forma de firmar essa liberdade advinda do desenvolvimento é a criação de espaços voltados a esses diferentes grupos rotulados por conta de seu estilo de vida diferenciado do padrão. (SAMPAIO; SILVA; SOUSA, 2008)
Esses espaços voltados para uma maior liberalização da sexualidade dos homossexuais é o ambiente que pretendemos nos remeter em estudo. Uma vez que temos a pretensão de estudar as variadas formas de se desenvolver a boemia nesses espaços de sociabilidade LGBT, espaços estes em que há uma maior vivência, a qual se baseia no modo de vida alternativo.

5. REFERÊNCIAS
COSTA, Albertina. O.; BRUSCHINI, Cristina. (Orgs.). Uma Questão de Gênero. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos/ São Paulo, Fundação Carlos Chagas, 1992.
CHALHOUB, S. Prefácio. In: PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O carnaval das Letras: Literatura e folia no Rio de Janeiro do século XIX. Campinas: Unicamp, 2004.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. V.1: A vontade de saber. Graal ed. Rio de Janeiro: 1988.
FORGUIERI, Y. C. Contribuição da fenomenologia para o estudo de vivência. Revista Brasileira de Pesquisa de Psicologia. v. 2, n.1, 1989.
FRY, P. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
GELAIN, I. O significado do Ethos e da consciência ética do enfermeiro em suas relações de trabalho. Tese (Doutorado) ? Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1991.
GÓIS, M.M.S. "Aspectos Históricos e sociais da anticoncepção". Reproduo, v.6, n.3, p. 119 ? 124, 1991.
PERROT, Michele. De Marianne a Lulu: as Imagens da Mulher. In: SANTANA, Denise (org.) Políticas do Corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995.
SAMPAIO, J. O.; SILVA, R. K. M.; SOUSA, S. M. N. ITINERÁRIOS NOTURNOS: locais de expressão de sexualidades dissidentes em São Luís. 2008 - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal do Maranhão, Maranhão. 2008
SEIGEL, Jerrold. Paris boêmia: cultura, política e os limites da vida burguesa 1830-1930. Porto Alegre: L&PM, 1992.
WILSON, Elizabeth. Bohemians: the glamourous outcasts. London: I.B. Tauris, 2003.