A Bíblia Como Fonte Historiográfica

Por Mauri Daniel Marutti | 21/02/2008 | História

A BÍBLIA COMO FONTE HISTORIOGRÁFICA

RESUMO

O texto apresenta uma descrição comentada acerca da utilização dos Livros Sagrados como fonte para a historiografia da idade Antiga. Aponta para os cuidados na ação investigativa do historiador e um zelo ao tratar de um documento de conteúdo tão difuso. Ater-se aos aspectos históricos e cercar-se de precauções quanto às interpretações parece um bom argumento quando o assunto diz respeito a dogmas e correntes religiosas. A análise descritiva trata da generalidade dos textos sagrados do Torá e da Bíblia cristã. A cronologia tem como limes o espaço temporal entre o surgimento dos primeiros escritos,por volta do século XVIII a. C., até o final do século I da era cristã. Fica claro no decorrer da investigação a presença constante de metáforas e narrativas épicas tendendo para o surrealismo. Por outro lado à riqueza de informações hoje confirmadas a respeito de várias civilizações e povos que coexistiram em algum momento da história é muito intensa.

Palavras – chave: Bíblia; Povos; Historiografia.

1 INTRODUÇÃO

A Historiografia como ciência apresenta um papel relevante para as sociedades, pois através dela podemos centralizar e planejar nossas ações no presente, bem como no futuro. A Historiografia utiliza várias fontes para escrever a história e dentre estas encontramos a Bíblia. Um documento de aproximadamente quatro mil anos que sofreu sucessivas complementações e re-interpretações. Porém desprezá-la por completo como documento histórico implicaria em negligenciar parte da história de várias civilizações que viveram em uma mesma temporaneidade.

Cada informação contida na Bíblia passa pelo crivo da ciência, os relatos são verificados e confirmados com o apoio das ciências complementares da História, como a Paleontologia, Sociologia, Antropologia e Arqueologia, entre outras. Após devidamente investigadas são confirmadas ou desmentidas. É certo que muitas destas informações são relevantes e somam na compreensão dos povos descritos pelo documento.

Outro aspecto que deve ser mencionado é a necessidade de analisar as informações no contextohistórico descrito, ater-se ao lapso temporal e as características da sociedade descrita, bem como a tipologia da descrição do autor. Não podemos esquecer que as informações descritas partem de uma visão hebraica / judaica, principalmente no que concerne aos livros que compõem o Antigo Testamento, perpassando pelo prisma cristão a partir do século I, com as cartas dos apóstolos.

A pesquisa, análise e posterior produção textual foi apoiada na web-bibliografia, em compêndios, apostilas e no documento alvo do trabalho. O espaço temporal é bastante longo, uma vez que as anotações do Antigo Testamento e do Torá[1] fazem referências aos hebreus dezoito séculos antes da era cristã e o Novo Testamento descreve o período cristão até o final do século I.

2 CONTRIBUIÇÕES À HISTORIOGRAFIA

Quando estudamos as civilizações antigas da Mesopotâmia e outras do Oriente Médio, esbarramos na falta de fontes documentadas para a compreensão destas sociedades. É neste mar de incertezas e falta de materialidade que a Historiografia utiliza as informações contidas nos Livros Sagrados, o Torá para os hebreus e a Bíblia para os cristãos, lembrando que se trata de um documento milenar. Conforme Nabeto (2006), "A Bíblia é muito antiga: sua redação começou por volta do séc. XV a.C. e somente se encerrou no final do séc. I d.C.. Esse é, aliás, o motivo pelo qual muitas passagens são difíceis de serem compreendidas, obrigando-nos, às vezes, a recorrer a cursos bíblicos ou outros livros de apoio". Por ser um livro repleto de aspectos metafóricos e narrativas fabulescas a credibilidade muitas vezes é posta em dúvida.

A Bíblia pode ser considerada um documento histórico quando apresenta exatidão nas narrativas e consoante a esta condição, podemos comprovar cientificamente as descrições. Nos textos do Torá são descritos povos como os filisteus, cananeus, egípcios, babilônicos, assírios entre outros. Quando analisamos o Novo Testamento, segunda parte da Bíblia dos cristãos, identificamos a influência grega e romana, bem como o sincronismo entre as civilizações greco – romana e o cristianismo. Nos primórdios da era cristã as ações de evangelização nos apresentam descrições de vários povos da Mesopotâmia, Egito, Oriente Médio e Grécia. Como afirma Giordani (1968, p.325), "A primeira difusão do evangelho pelo orbe se deveu aos convertidos pela palavra de Pedro: partas, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Capadócia, do Ponto, da Ásia, da Frigia, da Panfília, do Egito, da Líbia Cirenaica, cretenses, árabes, etc.".

Em muitas passagens bíblicas ficam evidentes as ações de saúde pública, uma preocupação dos sacerdotes em especial aqueles ligados ao judaísmo. A própria circuncisão, que consiste na retirada do prepúcio é recomendada a todos os judeus como forma de evitar afecções na região genital masculina e posterior contaminação das mulheres. Vejamos o que nos diz a enciclopédia eletrônica (Wikipédia, 2007):

Os defensores da circuncisão afirmam que existe um valor prático na circuncisão masculina, como um ato médico. Como uma medida de higiene, há quem defenda que seja útil para impedir a acumulação de uma secreção genital chamada esmegma, no espaço entre a glande e o prepúcio que a recobre. Se o esmegma não for removido, torna-se um mal cheiroso campo de cultivo de bactérias que causam grande irritação e é foco de infecções.

Por muito tempo a Bíblia foi usada como instrumento jurídico, uma vez que religião e estado eram instituições hibridizadas. Os sacerdotes desempenhavam funções de magistratura, principalmente no período que antecede a era cristã como comprovam os pergaminhos datados deste período. Com o aparecimento e expansão do cristianismo e da instituição Igreja, conforme Giordani (1968, p. 322), "A propagação do Cristianismo começou com a data de pentecostes (At 2,1 ss), data considerada pelos historiadores como assinalando a fundação da Igreja. Talvez pudéssemos falar melhor em uma <<inauguração>> da Igreja, fundada já anteriormente por Cristo". É provável que a mesma utilizou as prescrições contidas no Velho Testamento, assim como as recentes orientações do Novo Testamento para gerenciar os conflitos existentes entre os primeiros cristãos.

3 DAS METÁFORAS AS EVIDÊNCIAS HISTORIOGRÁFICAS

As narrativas denominadas metafóricas muito comumente presentes nos textos sagrados atendem a várias interpretações, tanto que as muitas correntes do cristianismo apresentam distintas leituras destas mensagens. As várias peripécias pelo que o povo hebreu passou é uma das formas de valorização de uma cultura sobre seus rivais, nada melhor que inscrevê-las em um livro sagrado como garantia de supremacia e manutenção de identidade cultural. Lembremos aqui a batalha entre Golias e Davi, o primeiro na verdade representava o povo filisteu, enquanto que o segundo representava o povo hebraico, o silogismo é usado para representar a supremacia filistéia derrocada pelo pequeno povo hebreu, "os escolhidos de Deus".

O que dizer da justificativa judaica / cristã para a formação do mundo, um deus que em sete dias criou o mundo, sendo que a mulher adveio de uma costela do homem:

Então o senhor Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este adormeceu, e tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar. E da costela que o senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão. E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta será chamada mulher, porquanto do homem foi tomada (BÍBLIA, A.T. Gêneses, 2;21-23).

Como as respostas para o surgimento da vida apresentam-se inacabadas e ainda frágeis, o Criacionismo[2] apresenta-se ainda como uma legítima forma de compreensão para a maioria da população cristã. Como lidar com estas questões metafóricas e / ou contistas?

Agora quando as narrativas bíblicas encontram sustentáculo em indícios arqueológicos, numísmáticos, epigráficos e em documentos oficiais, entre outras formas de cientificismo devemos valorizar seu conteúdo aprofundando as pesquisas e trazendo a luz da ciência o seu conteúdo. Um exemplo desta confirmação encontra-se nas descrições e ações romanas dos vários eventos do início da expansão da doutrina cristã. Segundo, Silva e Mendes (2006, p. 162 e 163):

Sob o ponto de vista romano, verifica-se, junto à documentação, uma certa tendência em ler a controvérsia entre os cristãos e judeus como pertencentes estritamente ao âmbito da lei judaica. Somente quando ela ultrapassa esta delimitação é que a autoridade romana intervém na questão. Há alguns bons exemplos na documentação que reforçam tal argumento: (1) o prefeito da Judéia, Pôncio Pilatos, parece não se mover quando Jesus de Nazaré lhe é trazido preso e formalmente acusado por setores da elite judaica de ser um agitador político; (2) o legado da Síria e enviado especial de Tibério, L. Vitélio, depôs Caifás em 36 ou 37 por estar diretamente envolvido nos atos que culminaram no apedrejamento de Estevão em 34 e (3) a morte de Tiago e de outros cristãos em Jerusalém no ano de 62 por ordem do sumo sacerdote Anás, o jovem, e do Sinédrio. Agripa II reagiu prontamente, destituindo-o após três meses no cargo por considerá-lo culpado por abuso de poder.

Nos documentos oficiais do Império Romano em especial no que tange o Direito são inúmeras as leis e editos a respeito do cristianismo, desde recomendações à aplicação de penas, "Separatim nemo habessit deos, neve novos sine advenas nisi publice adscitos. <Que ninguém possua deuses à parte, nem estrangeiros a não ser que sejam admitidos pelo Estado>. A sansão prevista para a transgressão dessa lei religiosa era a mais severa: a morte (CÍCERO aput GIORDANI, 1968, P. 333)".

4 CONCLUSÃO

A utilização dos Livros Sagrados em especial a Bíblia como fontes historiográficas deve ser analisada com prudência e seriedade. Devemos nos ater aos aspectos passíveis de confirmação e relegar as narrativas que ainda não apresentam indícios de veracidade aos auspícios da pesquisa. Hoje a maioria dos historiadores trata dos Livros Sagrados com a atenção devida, haja vista, a quantidade de relatos e fatos nelas contidas e que podem acrescer informações em torno de povos que habitaram o Oriente Médio.

Buscamos fundamentação para justificar a utilização da Bíblia como fonte historiográfica e localizamos vários pontos hoje confirmados de fatos narrados nos textos sagrados e que são mencionados por historiadores romanos e gregos dos primórdios da era cristã. Alguns epígrafos do século I confirmam fatos narrados da crucificação de Cristo e do cargo ocupado por seu julgador, Prefeito Pôncio Pilatos. Recentes escavações nas proximidades do Mar Morto apontam para pergaminhos que descrevem vários povos do Oriente Médio de forma muito similar aos relatos bíblicos, são algumas amostras de quão significativas são as informações contidas nos textos religiosos.

O historiador deve ter clara sua condição de cientista e manter neutralidade e equidade em relação aos fatos analisados, não deixando suas convicções religiosas ou de outrem, interferir em suas análises sobre os eventos pesquisados. Lembremos do jargão jurídico perfeitamente aplicável ao historiador; in claris cessat interpretatio, ou seja, onde há clareza, luz meridiana, cessa qualquer interpretação. É através de ações permeadas por estes princípios que buscaremos a passos lentos as confirmações ou negações acerca de tão polêmico documento histórico.

Em virtude de sua importância para a civilização ocidental e por se tratar de um documento divinizado para a maioria da população, ocorre a necessidade de grande atenção com as possíveis interpretações feitas a partir de seus textos, em especial aquelas que negam determinados dogmas ou orientações. Cabendo a discussão da deificação documental aos teólogos e céticos afoitos e, declinantes a polêmicas acerca dos aspectos de transcendentalidade e conceitos de imaterialidade.

REFERÊNCIAS

GIORDANI, Mário Curtis. História de Roma. 16 ed. Petrópolis - RJ: Vozes, 1968.

MENDES, Norma Musco; SILVA, Gilvan Ventura da. Império Romano: perspectiva socioeconômica, política e cultural. 1 ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2006.

BÍBLIA. <http://bibliaonline.com.br/acf/gn/2>.Acessado em: 01 de maio 2007.

NABETO, Carlos Martins. A Bíblia. Disponível em: <http://www.bibliacatolica.com.br/historia biblia/36.php>. Acessado em: 01 de maio 2007.

WIKIPÉDIA. <http://pt.wikipedia.org/wiki/Circuncis%C3%A3o>. Acessado em: 01 de maio 2007.



[1] Livro sagrado para os hebreus.

[2] Teoria que apregoa a criação do mundo a um deus.