A autonomia da vontade nas relações de trabalho e o espírito da reforma trabalhista

Por DIEGO SIQUEIRA REBELO VALE | 23/10/2017 | Direito

RESUMO: O objeto do presente artigo é o estudo da autonomia da vontade nas relações de trabalho. Em um primeiro momento, analisaremos se o atual regime jurídico das relações de trabalho permite, ainda, que falemos de autonomia da vontade, ou se elas são reguladas inteiramente por normas legais. Em segundo lugar, investigaremos as bases do Direito Coletivo do Trabalho e o papel em que se insere a autonomia da vontade neste âmbito específico do Direito do Trabalho. Por fim, examinaremos algumas disposições da polêmica Lei nº 13.467/2017 concernentes ao objeto de estudo para verificar qual é o espírito subjacente às alterações legislativas operadas.

A AUTONOMIA DA VONTADE NAS RELAÇÕES DE TRABALHO EM GERAL

Na medida em que é possível se falar em um contrato de trabalho, a questão da autonomia da vontade se fará sempre presente, em maior ou menor medida, no Direito do Trabalho. Com efeito, a autonomia da vontade é o princípio mais fundamental da teoria geral dos contratos. Com base nele, é possível afirmar que as partes se obrigam voluntariamente a prestações recíprocas. A autonomia significa que o contrato faz lei entre as partes, daí o brocardo latino pacta sunt servanda. Auto nomos, os contratantes são capazes de dispor livremente de seus próprios interesses, o que os torna, por conseguinte livres para se vincular. O contrato obriga justamente porque a vontade é autônoma: a vontade é obrigada a seguir uma norma que ela pôs a si mesma. Caso contrário, não seria vontade, e sim simples arbítrio. Neste sentido, é possível falar da força obrigatória dos contratos. Em linhas gerais, esse é o fundamento básico da autonomia da vontade nas relações em que são discutidos direitos disponíveis. Contudo, o contrato de trabalho é um tipo muito especial de contrato, em razão de diversos motivos. Em primeiro lugar, segundo Maurício Godinho Delgado, trata-se da “modalidade mais relevante de pactuação de prestação de trabalho existente nos últimos duzentos anos”2, desde que as relações de escravidão passaram a ser oficialmente banidas pelos ordenamentos jurídicos em âmbito mundial. Em segundo lugar, pela especial proteção que se dá à figura de um dos participantes desta relação, a dizer, o empregado, titular de uma pletora de direitos indisponíveis, cuja hipossuficiência atualmente é mais do que um princípio, já é um dogma. Finalmente, em razão da condição de fragilidade do empregado em relação ao empregador, pela existência de uma ampla normatividade que tutela os seus direitos, leis, construções jurisprudenciais, súmulas, convenções coletivas e sentenças normativas, o que dá uma faceta quase pública ao contrato de trabalho. Não há figura mais emblemática dos fundamentos filosóficos do regime especial do contrato de trabalho do que o aforismo de Lacordaire, segundo o qual entre os fortes e os fracos, entre ricos e pobres, entre o senhor e o servo, é a liberdade que oprime e a lei que liberta.

O princípio da proteção, portanto, seria o fator de equilíbrio de forças na relação entre desiguais, patrão e empregado, o que diminuiria significativamente a incidência da autonomia da vontade sobre as relações de trabalho. Neste momento, surge o seguinte questionamento: se a proteção ao hipossuficiente é o mecanismo de balanceamento da relação desnivelada entre empregado e empregador, o qual consiste na redução do âmbito em que é possível a livre manifestação de vontade do obreiro, ainda seria possível dizer que o contrato de trabalho seria, de fato, um contrato? Ora, segundo o artigo 442 da CLT, o contrato de trabalho é o acordo, tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego. Que a relação de emprego seja a base a partir de onde se constrói todo o edifício do Direito do Trabalho, isto está fora de questão. Desse modo, a relação de emprego está para o Direito do Trabalho assim como a relação entre o contribuinte e o Fisco está para o Direito Tributário. A relação de emprego é, portanto, o primeiro motor desta disciplina jurídica especializada. O que está, certamente, em questão é saber se é possível falar em acordo e em que medida a vontade do empregado e do empregador se ajustam para compor o que chamamos de contrato de trabalho. Este é o objeto de nosso estudo. Quando tratamos de normas de medicina e segurança do trabalho, principalmente, há praticamente nenhum espaço para qualquer ajuste, de modo que as situações fáticas ou se amoldam à norma jurídica, ou serão alvo da vigorosa correção pelo Poder Judiciário. Mais evidente fica a contradição quando vemos que, embora a negociação coletiva esteja legitimamente autorizada a ajustar as cláusulas de determinada categoria, teorias como a do conglobamento mitigado ou princípios como o da inalterabilidade contratual lesiva, da condição mais benéfica e da irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas impedem a alteração conforme o ajustado, resultando num apagamento da autonomia da vontade, mesmo entre entes coletivos. O que se percebe, nestes casos, é a forte incidência de normas imperativas advindas das mais diversas fontes, desde a nossa Carta Magna, a qual prevê, em seu elenco de direitos e garantias fundamentais, uma gama de direitos sociais pertinentes à relação de trabalho, passando pelas leis federais, pelos regulamentos do Ministério do Trabalho e as sentenças normativas da Justiça do Trabalho.

Dessa maneira, fica claro que, quase em sua totalidade, as relações de trabalho são reguladas por normas heterônomas, quer dizer, advindas não da vontade das partes, mas sim produzidas pelo Estado, seja por meio de sua atividade legislativa, pelo poder decisório dos Juízes, ou pela regulamentação de órgãos do Poder Executivo. Ademais, há uma forte resistência quando se pretende aplicar normas ajustadas individualmente em lugar do disposto em fontes estatais, dificilmente encontrando os acordos específicos guarida pelas autoridades públicas. Seria apropriado, então, tratar de autonomia da vontade nas relações de emprego? Este questionamento cindiu os estudiosos que se debruçaram sobre a disciplina jurídica das relações trabalhistas em dois grandes grupos. De um lado, os não contratualistas, estatutários ou acontratualistas, para quem a vontade não exerce qualquer papel relevante para a caracterização da relação de emprego e seus efeitos. Dividem-se, por sua vez, em teorias anti-contratualistas radicais e moderadas. Entre as radicais, estão compreendidas as teorias da inserção, segundo a qual, a partir do momento em que o empregado ingressa na empresa, ele se insere em sua estrutura organizacional, assumindo todas as condições de trabalho que lhe forem impostas3, e da ocupação, ainda mais radical, para a qual basta que o trabalhador ocupe um posto dentro da empresa para que esteja configurada a relação de trabalho, prescindindo-se de todo consentimento e da bilateralidade4.

No grupo das moderadas, estão a teoria da instituição ou institucionalismo, para a qual a relação de trabalho é marcada pelo signo da autoridade, da diferenciação e da hierarquia, pelo que não se poderia considera-la uma relação tipicamente contratual, regida pela igualdade e liberdade de vinculação5; a teoria do ato-condição, que compreende a relação de trabalho enquanto regime jurídico ao qual o trabalhador simplesmente adere ao prestar serviços à empresa ou à pessoa jurídica, não cabendo a ele discutir as condições em que esta se dará6; e, finalmente, a teoria do contrato-realidade, que sustenta ser o trabalho um dever social e que, por conseguinte, o trabalhador se incorporaria à empresa, sendo despiciendo a aceitação efetiva das condições em que o trabalho se dará...

 

 

Artigo completo: