A Arte e a Comida vão às ruas

Por Lisa Minari Hargreaves | 29/10/2024 | Arte

                           A Arte e a comida vão às ruas

   Arte alimentar na realidade de pessoas em situação de rua

                                                Dra. Lisa Minari Hargreaves 

  

                                                Apresentação

A ação arte educativa do projeto gastronômico social Catadores Gastronomicos visou à interação por meio de oficinas performáticas itinerantes de arte e tecnologia com a comunidade em situação de rua de Brasília e dos arredores em espaços não institucionais que pertencem ao contexto vivencial do cotidiano dos moradores da cidade. Foram propostas, assim, oficinas pautadas na experimentação estética e sensível relacionada ao universo alimentar pensado a partir de recursos ambientais e alimentares reaproveitados.  Pensou-se desta forma, à construção de um diálogo entre o universo alimentar da gastronomia social  e a produção artística voltada para tecnologia como possibilidade de experiência diferenciada pautada também na rememoração das criações gastronômicas afetivas tanto nossas quanto dos moradores em situação de rua. De fato produção alimentar e produção artística apresentam características peculiares que colaboram tanto na construção da identidade sócio-cultural coletiva  quanto para a constituição identitária afetiva individual reforçando vínculos de pertencimento emocional de cada participante. Tendo em vista as novas propostas educacionais inseridas em ações sociais  relativas ao reaproveitamento e à criação experiencial  propôs-se desta forma, um “saboroso” diálogo como possibilidade geradora de novos sentidos inter e transdisciplinares.

Neste contexto, visando às diferentes possibilidades de atuação no âmbito da gastronomia social e da produção artística, tornou-se necessário debater e colocar em discussão velhos valores educativos, tornando mais complexo e profundo determinar uma base sobre a qual trabalhar e avaliar a performance do educador\professor\mediador e do artista no âmbito comunitário. Nos espaços públicos de ação e ocupação, os paradigmas que impulsionam a produção gastronômica  e a vivência artística mais contemporânea tornam-se também presentes nas práticas do artista sensível engajado na comunidade que percebe a necessidade de mudanças sejam elas no campo artístico, sejam no campo da conscientização ambiental.

Vivemos tempos e espaços dinâmicos, territórios que pedem, para serem aproveitados, elasticidade mental, flexibilidade corporal, adaptação rápida, criatividade, compromisso. Pensar à oficina de gastronomia social artística e ao relativo currículo vigente como prática em um ambiente hermético, distanciado dos acontecimentos cotidianos torna-se cada vez mais anacrônico e afastado das propostas artísticas e ativistas atuais. Por isso é importante  se conectar constantemente com novos espaços, novas pessoas e diferentes propostas educativas; já que as ações sociais precisam acontecer em campos de atuação diferenciados onde o propositor pode ser, ao mesmo, tempo educador, gastrônomo, artista ou simplesmente acolhedor e incentivador e criador de novos significados.

A produção artística contemporânea proporciona a visibilidade de importantes reflexões sobre as “novas” concepções e vivências cotidianas no/do mundo ao nosso redor, e assim tem uma influência direta nas formas de educar e pensar a educação e a arte. as práticas pedagógicas em artes visuais, fora da escola, em espaços públicos diferenciados de ação, possibilitam relevantes reflexões sobre o outro e seu contexto, estimulando uma produção voltada para suas práticas cotidianas pautadas também em rememorações afetivas.

A partir da proposta deste projeto, queremos incentivar e trabalhar a conexão entre atuação social voltada para gastronomia social, a pesquisa e a produção artística de oficinas e performance em lugares públicos promovendo uma (trans)formação reflexiva que valorize a fusão entre área (mundos) aparentemente afastadas e desconexas. Desta forma, estimular um discurso transdisciplinar no âmbito da formação sensível do cidadão (GEERTZ, 1989, p. 108),  torna-se uma maneira de pensar a possibilidade trans-formativa que transcende e reatualiza a tendência ao controle, ao planejamento extremo e a sistematização para dar espaço à ação itinerante, destemida enxergada como movimento acolhedor saudável e necessário.

 

A proposta de oficinas inerentes ao reaproveitamento alimentar e à sua reconfiguração em receitas afetivas  reflete, assim a necessidade de sintetizar as experiências humanas aliada à possibilidade de expressão criativa cultural. A vertente gastronomica reúne em si práticas e gestos que o cotidiano transforma em ritual já que tanto saborear quanto cozinhar conecta espaços diferenciados e transpõe tempos. Neste contexto, a gastronomia social  torna-se uma modalidade transdisciplinar constantemente relacionada às diferentes áreas mas sustentada por um corpo próprio, alimentado pelas vivências e pelas experiências afetivas humanas. É deste modo que o alimento invade inevitavelmente a esfera emocional, aproximando o ato alimentar às práticas afetivas do ser.

 

 

Marco Teórico

A proposição do projeto como ação de trabalhos conjuntos entre a comunidade acadêmica da UnB e moradores em situação de rua valoriza a ação do cidadão como marca auto-referencial para o resgate das habilidades criativas e da busca autorreferencial voltada para o universo gastronômico. Nas oficinas propostas serão abordadas temáticas atuais que perpassam a simples vivência do sujeito, apontando para a possibilidade de reflexão e da experimentação prática:

Questão da Alteridade: Refletir sobre a revelação do espaço do outro como território desconhecido, aproximação com o outro (ANDERSON, 2012, p.78) – abordagem significativa e alteridade afetiva: quem é o sujeito que participa das oficinas? – Conceito de multiplicidade descentrada: da comunidade para o sujeito - este  o sujeito tem um nome e uma história de vida? Como seria um mapeamento visual auto-biográfico a partir de suas vivencias gastronomicas? Como valorizar a bagagem pessoal, cultural, social do sujeito transeunte? Como me valorizar como educador e artosta? Quem sou eu para o sujeito da comunidade? Como este sujeito me percebe? Como me percebo? Qual meu papel social na comunidade? O que posso mudar?

 

Questão da Revisão do sujeito normativo, deslocamento do sujeito, questões de identidade: Incentivar o mapeamento cartográfico autobiográfico (MASON, 2003, p.12) – rememoração do vivencial,  gastronômicas, das influencias familiares, culturais, sociais, educativas na construção do eu:  Quais os diferentes espaços sócio-culturais que o sujeito pode mobilizar, preencher, criar nesse percurso móvel transcultural?

 

Questão da Aproximação contextual: Experimentar o espaço público coletivo urbano como vivencia individual e coletiva, trocas de experiências e de saberes gastronomicos inerentes a esse espaço (des)conhecido (FREIRE, 1985). Posicionamento significativo: inserção da comunidade acadêmica com a cultura local. Afastamento do espaço de circulação tradicional provocando, assim, o estranhamento do  circuito da vivência familiar.

Questão da Promoção de uma crítica social: Diversidades/discrepâncias sociais:Quais os mecanismos da exclusão social? Como o sujeito que ocupa e transita nos espaços públicos percebe sua atuação e inserção neste espaço? O espaço público vivenciado como moradia temporária. a vivência cotidiana como desafio da fome. A necessidade da impulsão a uma consciência ecológica pautada no reaproveitamento alimentar e sua reconfiguração no espaço precário da rua.

Desperdício

Segundo a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), no Brasil o desperdício alimentar chega a  mais de 30% em relação à produção total alimentar: são assim diariamente desperdiçadas 40 toneladas de alimentos que poderiam alimentar 19 milhões de pessoas.  Lembrando que o Brasil tem 16,27 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza - o que representa 8,5% da população (dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE 2014) percebe-se a necessidade urgente da conscientização do reaproveitamento alimentar.

Um projeto de lei que ajudaria consideravelmente a mudar esta situação está parado desde 2002 no Congresso Nacional. O projeto 4747-98 conhecido como a Lei do Bom Samaritano, isenta a indústria de alimentos de responsabilidade civil ou penal, caso o consumidor sofra algum dano provocado por produtos doados. Infelizmente há mais de 13 anos a proposta está parada nas gavetas do Congresso brasileiro sem nenhuma previsão de outorga definitiva, mostrando, mais uma vez, que a questão do desperdício não é ainda uma questão de prioridade.

Walter Bellik aponta também para o padrão de consumo relacionado aos hábitos alimentares dos brasileiros nos quais o consumidor dá mais valor ao aspecto cosmético da fruta e da verdura. Uma mancha, uma imperfeição ou o aspecto mais “feio”, determina o descarte de um alimento próprio para consumo que poderia ser totalmente aproveitado. Desta maneira, como o consumidor rejeita o produto, o varejo também o rejeita e o próprio produtor rural acaba nem colhendo o alimento e contribuindo a reforçar o processo do desperdício alimentar.

É importante lembrar que o marco de referencia para a Educação alimentar e nutricional para as políticas públicas no Brasil (2012) ressalta a necessidade de considerar o sistema alimentar na sua integralidade visando, desta maneira, o aproveitamento total de TODOS os alimentos. Assim, o que se come relaciona-se impreterivelmente com o processo de sustentabilidade social, ambiental e econômica, valorizando o ato alimentar enquanto prática social emancipatória trandisciplinar.

 

Visando a estimular uma reflexão ética e sensível a respeito do desperdício alimentar começou-se a olhar para os espaços esquecidos e frequentemente evitados, onde o descarte dos alimentos acontecia de forma corriqueira e acessível. Os lixos e as caçambas das feiras, dos mercados, das lojas, e dos supermercados tornaram-se alvo de visitas frequentes e de olhares atentos. Descobriram-se, assim, curiosos cantos de cumulação onde os alimentos eram jogados, abandonados e esquecidos. A ocupação destes “novos” espaços aconteceu antes de forma gradual e tímida, e posteriormente tornou-se mais segura e familiar. A ideia era catar as frutas, as verduras e os legumes reaproveitáveis que eram abandonados no chão ou nas caçambas e devolvê-los a comunidade para que fossem consumidos. Os catadores gastronômicos tornaram-se assim, curiosos mediadores entre a materialização do desperdício alimentar e a comunidade interessada em consumir alimentos qualitativamente perfeitos mas visualmente pouco atraentes. Cataram-se, desta maneira, grandes quantidades de alimentos que foram repassados a pessoas necessitadas ou que, simplesmente, começaram a abraçar a ideias de um consumo mais consciente e ecologicamente correto.

Catar gastronomicamente é uma busca paciente e estranha compartilhada também com os catadores e os moradores das ruas que utilizam as sobras como meio de sobrevivência individual e coletiva. Neste contexto a aproximação e o contato com estas pessoas, proporcionou a possibilidade de conhecer outras maneiras de viver e de pensar a vida, de valorizar e priorizar outros mecanismos de sobrevivência. Os animais utilizados pelos catadores de rua para transportes e treino de carroças como cavalos e burros também fizeram parte da grande família que o lixo alimentava. Assim as sobras das sobras tornavam-se precioso combustível para os bichos famintos que aproveitavam ecologicamente os alimentos encontrados.

O imprevisto e o inesperado também fazem parte do processo de catação já que o encontrado não segue uma programação previa guiada pelo desejo do catador e do consumidor. Todo achado tornara-se, desta maneira, um incógnita invertendo uma programação alimentar previa voltada para o consumo específico de um produto exclusivo. Acha-se, distribui-se, cozinha-se e  come-se o que é desperdiçado por outros, desafiando uma criatividade culinária flexível e dinâmica que prevê a revisão constante dos planos gastronômicos. Quem dita as regras não é mais o comedor faminto ou o cliente pagante mas quem joga e abandona os alimentos no lixo.

Tendo em vista a “nova” concepção de lugar da arte que transforma o espaço urbano e outros lugares de convivência social em galerias e museus, decidiu-se transformar as ações dos catadores gastronômicos, em acontecimentos (happening) de cunho artístico que pudessem despertar o interesse da comunidade

Desta maneira, o contato com o universo alimentar ecologico, tornar-se-ia importante espaço voltado para a descoberta das vivências cotidianas. O  mesmo alimento que constrói o corpo do indivíduo e de sua comunidade (em senso restrito ou ampliado) desconstroi e reconstrói elementos culturais comuns sobre os quais é ancorado seu pensamento. O movimento de ruptura e reconstituição praticado pela gastronomia social de arte alimentar percorre o organismo individual e social, desmembra-se em partículas ínfimas, contaminando o ser e seu contexto, tornando-o agente cultural endêmico propagador. Se é verdade que “somos o que comemos” então “pensamos, também, o que comemos”, “sentimos o que comemos”.  A força interativa alimentar manifesta seu poder fenomenológico transitando pelos espaços, sejam eles orgânicas, mentais ou sociais. É importante lembrar que compartilhar a distribuição e ingestão da comida é principalmente um ato afetivo que prevê a troca do elemento vital de subsistência e de seu significado emocional, simbólico e poético.

 

Objetivo geral

A ação arte educativa do projeto gastronômico social #FOME Catadores Gastronomicos visa à aproximação e à troca experiencial por meio de oficinas performáticas itinerantes de arte, gastronomia social e tecnologia com a comunidade em situação de rua de Brasília e dos arredores em espaços não institucionais que pertencem ao contexto vivencial do cotidiano dos moradores da cidade. Serão propostas, assim, oficinas pautadas na experimentação estética e sensível relacionada ao universo alimentar pensado a partir de recursos ambientais e alimentares reaproveitados. 

 

Objetivos específicos

Aproximação, interação e Trocas experienciais entre a comunidade acadêmica da Unb (departamento de Artes Visuais IdA-Unb)

           Incentivo à Vivencia estética – representação imagética, experimentação sensorial, elaboração produção artística, interdisciplinaridade.

 

               Incentivo à Vivência ecológica - possibilidade significativas alimentares, consciência alimentar, reaproveitamento, coletividade, meio ambiente.

 

Proposta de oficinas de gastronomia social a partir do reaproveitamento de alimentos descartados

Produção de imagens de relatos gastronômicos (receitas, lembranças gastronômicas etc.)  dos moradores em situação de rua

Projeção  em espaços públicos dos relatos dos moradores em situação de rua e debates coletivos

 

Bibliografia

 

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