A APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA AOS CRIMES DE CONTRABANDO E DESCAMINHO

Por Raquel Guimarães Fiquene Branco | 11/09/2014 | Direito

A APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA AOS CRIMES DE CONTRABANDO E DESCAMINHO[1]

 

Jannya Cássia de Sousa Lima

Raquel Guimarães Fiquene Branco[2]

Maria do Socorro Almeida de Carvalho[3]


Sumário: 1 Introdução; 2 Considerações gerais sobre os crimes contra a Administração Pública; 2.1 Crimes de Contrabando e Descaminho; 3 Princípio da Insignificância; 4 Aplicabilidade do Princípio da Insignificância aos Crimes de Contrabando e Descaminho: análise das decisões dos Tribunais; 5 Considerações finais; Referências.


RESUMO

O presente trabalho tem por finalidade verificar a aplicabilidade do princípio da insignificância aos crimes de contrabando e descaminho, bem como analisar as jurisprudências dos Tribunais Superiores brasileiros quanto à aplicação de tal princípio aos referidos crimes. A prática de tais delitos mostra-se mais comum e enseja a mobilização da Administração Pública e do Poder Judiciário. O crime de contrabando consiste na importação ou exportação de mercadorias proibidas; o de descaminho é caracterizado quando, embora sejam mercadorias permitidas, a lesão importa na ilusão, na totalidade ou em parte, do pagamento devido de tributos pela entrada, pela saída ou pelo consumo da mercadoria. O princípio da insignificância tem como escopo a descriminalização das condutas que, mesmo tidas como ilícitas, não acarretam prejuízos relevantes aos bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal. Em relação à aplicabilidade do princípio da insignificância aos crimes de contrabando e descaminho tem sido considerado pelos Tribunais Superiores pátrios as disposições previstas no art. 20 da Lei nº 10.522/02, cujos limites impostos permitem o trancamento da ação penal pela atipicidade. Diante de discutível critério, se faz este estudo objetivando analisar a fundamentação dos argumentos utilizados nas decisões dos Tribunais Superiores do Brasil para efeitos de aplicação em questões relacionadas.

Palavras-chave: Contrabando. Descaminho. Princípio da insignificância. Jurisprudência.

1      INTRODUÇÃO

A prática dos ilícitos penais de contrabando e descaminho mostra-se mais comum, possibilitando mobilizações da Administração Pública, com objetivo de realizar fiscalizações e consequentemente tentar recuperar os tributos devidos, bem como do Poder Judiciário criminalizando tais condutas.

A tipicidade penal vai exigir ofensa de certa gravidade aos bens jurídicos protegidos, uma vez que nem sempre qualquer ofensa será suficiente para a configuração do injusto típico. Destarte, a irrelevância ou insignificância de determinada conduta deve ser analisada não apenas em relação à importância do bem jurídico atingido, mas especialmente em relação ao grau de sua intensidade, ou seja, pela extensão da lesão produzida (BITENCOURT, 2011, p. 51).

Portanto, a insignificância da ofensa afastará a tipicidade, porém essa insignificância só poderá ser valorada através da consideração global da ordem jurídica (BITENCOURT, 2011, p. 52).

O princípio da insignificância tem sido aplicado pelos Tribunais Superiores brasileiros aos crimes de contrabando e descaminho. A introdução no território nacional, de mercadorias proibidas, entretanto em quantidades ínfimas, ou o não pagamento de pequena parcela do imposto devido configuram típicas infrações de bagatela, passíveis de punição fiscal, porém não penal (GRECO, 2012, p. 1007; NUCCI, 2012, p. 1204).

A aplicabilidade do princípio da insignificância aos crimes de contrabando e descaminho gera discussões e é pautada de controvérsias por parte da doutrina jurídica. Tais pontos controvertidos relacionam-se ao fato de que os Tribunais pátrios estão considerando as disposições presentes no art. 20 da Lei nº 10.522/02 para efeitos de aplicação do princípio da insignificância aos ilícitos de contrabando e descaminho, cujos limites impostos permitem o trancamento da ação penal pela atipicidade.

As decisões dos Tribunais Superiores brasileiros baseadas neste dispositivo específico causam preocupação, pois pode haver uma estimulação a prática dos crimes de contrabando e descaminho em consequência de sua descriminalização.

Portanto, tal estudo tem por finalidade uma análise das decisões dos Tribunais Superiores brasileiros para efeitos de aplicação do princípio da insignificância aos crimes de contrabando e descaminho.

 

2      ConsIDERAÇÕES GERAIS SOBRE OS CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Os crimes contra a Administração Pública estão previstos no último título da Parte Especial do Código Penal. Nele estão descritos alguns dos ilícitos mais nefastos, pois, mesmo atingindo diretamente a Administração Pública, de forma indireta, causam dano a um número indeterminado de pessoas. Os crimes contra a Administração Pública lesam o erário público e seus efeitos são devastadores, uma vez que não permite ao Estado o cumprimento de suas funções sociais que lhe são constitucionalmente atribuídas (GRECO, 2013, p. 389).

Os crimes de contrabando e descaminho, previstos no art. 334 do Código Penal, encontram-se no segundo capítulo, que engloba os crimes praticados por particular contra a Administração Pública (FARIAS, 2009, p. 14).

Em relação à objetividade jurídica dos crimes contra a Administração Pública trata-se do interesse quanto à normalidade funcional, à probidade, ao prestígio e ao decoro da Administração Pública. Sendo assim, o crime que ofende a Administração Pública não atinge apenas o patrimônio público, impedindo a normalidade funcional dos órgãos públicos, como também implica ofensa a outros bens jurídicos. Portanto, ao se analisar o resultado material do crime, não se pode considerar apenas o dano patrimonial sofrido pelo erário (FARIAS, 2009, p. 14-15).

Pontua Farias (2009, p. 16) que a definição de Administração Pública, no âmbito jurídico-penal, seria a de atividade do Estado na consecução de seus fins, tanto na esfera do Poder Executivo (Administração Pública em sentido estrito), quanto na dos Poderes Legislativo e Judiciário.

2.1         Crimes de Contrabando e Descaminho

 

O art. 334 do Código Penal brasileiro prevê o crime de contrabando e descaminho, que se traduz por importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria. A pena prevista é de reclusão, de um a quatro anos (GRECO, 2013, p. 551).

O parágrafo primeiro do referido artigo aponta para as práticas assimiladas ao contrabando ou descaminho, determinando que incorrerá nas mesmas penas quem praticar navegação de cabotagem, fora dos casos permitidos em lei (alínea a), praticar fato assimilado, em lei especial, a contrabando e descaminho (alínea b), vender, expor à venda, manter em depósito ou, de qualquer forma, utilizar em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira que introduziu clandestinamente no País, ou importou fraudulentamente, ou que sabe ser produto de introdução clandestina no território nacional, ou de importação fraudulenta por parte de outrem (alínea c) ou adquirir, receber ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência  estrangeira, desacompanhada de documentação legal, ou acompanhada de documentos que sabe serem falsos (alínea “d”) (GRECO, 2013, p. 551).

O parágrafo segundo prevê que se equipara às atividades comerciais, para os efeitos deste artigo, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, inclusive o exercido em residências (GRECO, 2013, p. 551).

Por fim, o parágrafo terceiro prevê que a pena se aplica em dobro se o crime de contrabando ou descaminho é praticado em transporte aéreo (GRECO, 2013, p. 551).

Pontua Greco (2013, p. 552) que na primeira parte do constante do caput do art. 334 do Código Penal é que se encontra o delito de contrabando (próprio); na segunda, o crime de descaminho, conhecido como contrabando impróprio.

De acordo com Carvalho (1988, p. 4 apud GRECO, 2013, p. 552-553) há diferença entre as duas infrações penais:

Embora reunidos num mesmo tipo, o do art. 334 do citado Estatuto, e sujeitos à mesma sanção, não há como negar que os dois fatos, a exportação ou importação de mercadoria proibida e a fraude aos tributos aduaneiros, possuem características próprias de cada um, sendo mesmo diversa a natureza jurídico-penal. Assim, enquanto o descaminho, fraude no pagamento dos tributos aduaneiros, é, a grosso modo, crime de sonegação fiscal, ilícito de natureza tributária pois atenta imediatamente contra o erário público, o contrabando propriamente dito, a exportação ou importação de mercadoria proibida, não se enquadra entre os delitos de natureza tributária. Estes, procedidos de uma relação fisco-contribuinte, fazem consistir, o ato de infrator, em ofensa ao direito estatal de arrecadar tributos. Em resumo, o preceito contido nas normas tipificadoras dos fiscais acha-se assentado sobre uma relação fisco-contribuinte, tutelando interesses do erário público e propondo-se, com as sanções respectivas, a impedir a violação de obrigações concernentes ao pagamento dos tributos. Já o preceito inerente à norma tipificadora do contrabando visa a proteger outros bens jurídicos, que, embora possam configurar interesses econômicos-estatais, não se traduzem em interesses fiscais. Inexiste uma relação fisco-contribuinte entre o Estado e o autor do contrabando. Proibida a exportação ou importação de determinada mercadoria, o seu ingresso ou a sua saída das fronteiras nacionais configura um fato ilícito e não um fato gerador de tributos.

O bem juridicamente tutelado pelo delito de contrabando e descaminho é a Administração Pública e o objeto material do delito é a mercadoria proibida, importada ou exportada, ou o direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadorias cujo pagamento fora iludido total ou parcialmente (GRECO, 2013, p. 553).

Em relação aos sujeitos do delito, o crime de contrabando e descaminho é crime comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa, haja vista que no art. 334 do Código Penal não exige nenhuma qualidade ou condição especial. O sujeito passivo é o Estado, principal interessado na regularidade da importação ou exportação de mercadorias e na cobrança dos direitos e impostos delas decorrentes (GRECO, 2013, p. 553; MIRABETE, 2004, p. 385).

Quanto à classificação, trata-se de crime comum (aquele que pode ser cometido por qualquer pessoa); formal (crime que não exige, para sua consumação, resultado naturalístico, consistente na produção de efetivo dano para a Administração Pública) nas modalidades “importar” e “exportar”. Se a mercadoria é proibida de ingressar ou sair do País, o simples fato de fazê-lo consuma o crime, embora não se tenha produzido um resultado passível de realização fática. É formal (delito que não exige, para sua consumação, a ocorrência de resultado naturalístico), também na forma “iludir o pagamento”. Entretanto, nesse caso, o Estado deixa de arrecadar valores importantes para a Administração Pública, o que se pode constatar faticamente. É de forma livre (pode ser cometido por qualquer meio eleito pelo agente); comissivo (os verbos implicam em ações), na forma “importar” e “exportar”, bem como comissivo ou omissivo (implicando em abstenção) na modalidade “iludir o pagamento”, conforme o caso concreto. E, excepcionalmente, omissivo impróprio ou comissivo por omissão (quando o agente tem o dever jurídico de evitar o resultado, nos termos do art. 13, § 2º, CP); instantâneo (cuja consumação não se prolonga no tempo, dando-se em momento determinado), na importação ou exportação, quando a mercadoria for liberada, clandestinamente, na alfândega; se não passar pela via normal, assim que invadir as fronteiras do País ou transpassá-las ao sair. É unissubjetivo (aquele que pode ser cometido por um único sujeito); unissubsistente (praticado num único ato) ou plurissubsistente (delito cuja ação é composta por vários atos, permitindo-se o seu fracionamento), conforme o caso concreto; admite tentativa na forma plurissubsistente e quando comissivo (NUCCI, 2012, p. 1203-1204).

Pontua-se que há duas condutas típicas: a primeira referindo-se ao contrabando (importar ou exportar) e a segunda ao descaminho (iludir). A conduta típica do contrabando está caracterizada pelos verbos importar e exportar. O verbo importar manifesta a ação de introduzir em território nacional mercadorias estrangeiras por qualquer via de acesso. Nesse caso, a conduta reprimida consiste em coibir a importação de mercadoria absoluta ou relativamente proibida. O verbo exportar consiste em tirar do País qualquer mercadoria pouco relevando se o faça através da alfândega ou fora dela. Destarte, resta claro, tratar-se de norma penal incriminadora em branco, carecendo de outra norma complementar definindo quais as mercadorias terão sua importação ou exportação proibidas (MIRABETE, 2004, p. 385; RODRIGUES, 2011, p. 48).

O delito de descaminho está manifestado pelo verbo iludir (núcleo do tipo), que caracteriza a ideia de “enganar, de burlar, de fraudar”. Portanto, a conduta incriminada consiste em fraudar, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devidos pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria (RODRIGUES, 2011, p. 48).

O dolo é o elemento subjetivo exigido pelo tipo penal que prevê o crime de contrabando e descaminho, manifestado na consciência e vontade direcionadas à importação ou exportação de mercadoria proibida ou à fraude no recolhimento de impostos, não havendo previsão para a modalidade de natureza culposa (GRECO, 2013, p. 554; RODRIGUES, 2011, p. 48).

Destaca Mirabete (2004, p. 387) que o dolo é a vontade de praticar a conduta, exigindo-se que o agente tenha consciência de que se trata, na primeira hipótese do art. 334, caput, de mercadoria proibida. Portanto, quem pensa não ser proibida a mercadoria que importa ou exportar, sobre errar acerca do elemento essencial do tipo, não tem consciência da antijuridicidade do fato e sem isso não há dolo. Neste sentido afirma Greco (2013, p. 555) que o agente deverá conhecer todos os elementos que formam a figura típica de tal delito, pois, do contrário, poderá ser arguido o erro de tipo.

A consumação, na modalidade de importação, ocorre quando transposta à zona fiscal mesmo que a mercadoria não tenha chegado ao seu destino. Com a liberação pela alfândega é que se consuma o descaminho e com a saída da mercadoria o crime na modalidade de exportação (MIRABETE, 2004, p. 387). É possível a tentativa, uma vez que se trata de crime, como regra, plurissubsistente (GRECO, 2013, p. 554).  

De acordo com Mirabete (2004, p. 387), o § 1º do art. 334 do Código Penal prevê quatro modalidades assemelhadas de contrabando e descaminho, cominando a mesma pena a essas modalidades. Na primeira hipótese tem-se a prática de navegação de cabotagem fora dos casos permitidos em lei (§ 1º, alínea a), sendo essa espécie de navegação para o transporte de mercadorias privativa de navios nacionais, excetuando-se os casos de necessidade pública. Trata-se, portanto, de norma penal em branco.

A segunda hipótese trata da prática de fato assimilado, em lei especial, ao contrabando ou descaminho (§ 1º, alínea b). A lei compara ao contrabando ou descaminho a saída de mercadorias da Zona Franca sem a autorização legal expedida pelas autoridades competentes, por exemplo. É considerada também como lei penal em branco (MIRABETE, 2004, p. 388).

A terceira hipótese (§ 1º, alínea c) é a prevista para quem vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira que introduziu clandestinamente no País, ou importou fraudulentamente, ou que sabe ser produto de introdução clandestina no território nacional, ou de importação fraudulenta por parte de outrem. Trata-se, no primeiro caso, de conduta realizada pelo próprio autor da importação ilegal, respondendo este apenas pelo criem previsto no parágrafo, absorvido o tipo penal do caput. Na segunda parte, tem-se um caso de receptação, que absorve o ilícito previsto no art. 180 do Código Penal, em virtude do princípio da especialidade (GRECO, 2013, p. 557; MIRABETE, 2004, p. 388).

A quarta hipótese é caracterizada por quem adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira, desacompanhada de documentação legal, ou acompanhada de documentos que sabe serem falsos. Cuida-se também de um delito de receptação (GRECO, 2013, p. 557).

A pena para tais crimes é aplicada em dobro se forem acometidos por meio de transporte aéreo. A maior severidade da sanção está relacionada a uma maior facilidade para a prática do ilícito, e, portanto, menor probabilidade de repressão ao fato (MIRABETE, 2004, p. 388).

3      O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

De acordo com Mendes (2010, p. 28), o princípio da insignificância seria um postulado de política criminal mediante o qual os fatos que causam lesão mínima ao bem jurídico tutelado pela norma, mesmo que formalmente subsumíveis a um tipo incriminador, devem ser considerados materialmente atípicos.

O princípio da insignificância, como sendo um instrumento de política-criminal, foi elaborado por Claus Roxin e, de acordo com ele, seria permitido excluir logo de imediato lesões de bagatela da maioria dos tipos, numa interpretação mais restrita dos tipos penais, de maneira a realizar a função da Carta Magna e a natureza fragmentária do Direito Penal, mantendo a integridade apenas no campo de punibilidade indispensável para a proteção do bem jurídico. Desta forma, se conservaria a função de garantia cometida ao tipo (MENDES, 2010, p. 28).

O Direito Penal tem como premissa à proteção de bens jurídicos contra condutas que os lesem ou que exponham a perigo de lesão e, sendo assim, as condutas que não possuam tal característica ou que afetem de maneira mínima tais bens não interessam ao Direito Penal por serem insignificantes em comparação à gravidade da intervenção penal (MENDES, 2010, p. 29).

Pontua Mendes (2010, p. 29) que o princípio da insignificância é apontado como consequência da ingerência de preceitos políticos-criminais no âmbito da dogmática penal. O raciocínio com relação a este princípio deve considerar a proporcionalidade e a razoabilidade da intervenção penal em face da lesão provocada ao bem jurídico ou o grau de colocação deste em perigo, tudo em detrimento da finalidade do Direito Penal e, portanto, da pena.

Com relação à avaliação da insignificância de um fato formalmente delituoso, a análise ou juízo não deve apenas recair sobre a lesão ao objeto material do delito ou mesmo ao seu potencial de lesão. O objeto material da conduta não irá se confundir com o objeto da tutela (MENDES, 2010, p. 30).

Aduz Mendes (2010, p. 30) que deve ser verificado a comunicação proveniente do fato formalmente típico, a ameaça ao bem jurídico, bem como à normalidade social, para se avaliar se tal fato é considerado ou não como um insignificante penal.

Com relação à natureza jurídica do princípio da insignificância, esta seria de excludente de tipicidade material, não obstante se possa afirmar no caso concreto a tipicidade formal, uma vez que o bem jurídico protegido constitui o conteúdo material do injusto (MENDES, 2010, p. 32).

O princípio da insignificância tem como consequência a acomodação do tipo legal abstrato à realidade dos fatos sociais. Pontuou-se que a insignificância do fato afastaria a sua ilicitude, entretanto, tal princípio não pode ser considerado como excludente da ilicitude, uma vez que não se permite um preceito permissivo, bem como a legítima defesa ou mesmo o consentimento do ofendido (MENDES, 2010, p. 32-33).

A aplicação do princípio da insignificância ao Direito Penal tem como resultado lógico a declaração de que algo é considerado insignificante para o Direito Penal. Ressalta-se que o termo “insignificante” não significa “inexistente” (RODRIGUES, 2011, p. 17).

O delito seria um fato típico, ilícito e culpável. Portanto, para que uma ação seja considerada como um delito tem-se que analisar a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade, uma vez que cada instituto depende logicamente da existência e aferição do anterior para determinar uma conduta delituosa (RODRIGUES, 2011, p. 17).

A tipicidade penal, entendida em sentido amplo, é composta por dois modos de juízos de admissibilidade: o formal e o material. A tipicidade formal tem relação com a previsão da conduta delitiva no ordenamento jurídico, isto é, com a existência de norma que defina que determinada conduta seja considerada como crime. Na tipicidade material verifica-se se ocorreu lesão ao bem juridicamente protegido. Sendo assim, em função da não existência de ataque material ao bem jurídico protegido, ou da impossibilidade efetiva de lesão ao bem jurídico tutelado pelo Direito Penal, a conduta vai ser considerada como atípica (RODRIGUES, 2011, p. 18).

Destaca Rodrigues (2011, p. 19) que entre a tríade que forma o conceito de delito (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade), o princípio da insignificância atua na tipicidade, mais especificamente na tipicidade material.

Neste sentido, pontua Gomes (2010, p. 34-35):

O injusto penal é constituído do desvalor do resultado (há uma série de exigências para que a ofensa ao bem jurídico seja desvaliosa: real, transcendental, grave e intolerável) assim como do desvalor da ação (nível de periculosidade da conduta).

A insignificância correlaciona-se indubitavelmente com o âmbito do injusto penal (ou mais precisamente com o da tipicidade). Afeta, portanto, ou o desvalor da ação ou o desvalor do resultado (daí falar-se em princípio da insignificância da conduta e princípio da insignificância do resultado). Logo, não há espaço, nesse âmbito, para a inserção de critérios subjetivos típicos da reprovação da conduta ( da culpabilidade) ou mesmo da necessidade da pena. O direito penal é uma ciência. Toda ciência é composta de conceitos (e definições). Delimitá-los e observá-los significa conferir-lhes coerência e segurança.

O princípio da insignificância não possui previsão expressa no ordenamento jurídico pátrio, isto é, não possui seu “nome” escrito de forma literal em algum dispositivo normativo. Mesmo não previsto de forma expressa no ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da insignificância existe e é aplicado em decorrência da análise de diversos dispositivos legais (RODRIGUES, 2011, p. 20).

Os critérios para a aplicação do princípio da insignificância compreendem não apenas a análise da conduta como sendo inofensiva e o resultado ínfimo, como também há de se investigar o perigo da lesão ao bem juridicamente protegido (RODRIGUES, 2011, p. 23).

A aplicação do princípio da insignificância não está restrita unicamente à ínfima lesão ao bem jurídico protegido pela norma penal (inexpressividade da lesão jurídica provocada), porém devem obedecer a outros três critérios: a mínima ofensividade da conduta do agente, o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a nenhuma periculosidade social da ação (FARIAS, 2009, p. 54).

 

4  APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA AOS CRIMES DE CONTRABANDO E DESCAMINHO: análise das decisões dos tribunais

 

O princípio da insignificância tem sido aplicado pelos Tribunais Superiores pátrios à infração penal prevista no art. 334 do Código Penal, de acordo com a seguinte decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça:

De acordo com o entendimento recentemente firmado pelo STF, aplica-se o princípio da insignificância à conduta prevista no art. 334, caput, do CPB (descaminho), caso a ilusão de impostos seja igual ou inferior ao valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), estabelecido pelo art. 20, caput, da Lei nº 11.522/2002, alterado pela Lei nº 11.033/2004, para a baixa na distribuição e arquivamento de execução fiscal pela Fazenda Pública. HC 92.438/PR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJU 29/8/08, HC 95.749/PR, Rel. Min. Eros Grau, DJU, 7/11/2008 e RE 536.486/RS, Relª. Minª. Ellen Gracie, DJU 19/9/2008. Segundo o posicionamento externado pela Corte Suprema, cuidando-se de crime que tutela interesse moral e patrimonial da Administração Pública, a conduta por ela considerada irrelevante não deve ser abarcada pelo Direito Penal, que se rege pelos princípios da subsidiariedade, intervenção mínima e fragmentariedade. (STJ, HC 116293/TO, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 5ª T., j. 18/12/2008) (GRECO, 2013, p. 558-559).

Nota-se, que, para efeitos de aplicação do princípio da insignificância aos crimes de contrabando e descaminho, os Tribunais Superiores brasileiros estão levando em conta as disposições previstas no art. 20 da Lei nº 10.522/2002, que dispõe sobre o cadastro informativo dos créditos não quitados de órgãos e entidades federais, com nova redação dada pela Lei nº 11.033/2004. Tal aplicabilidade do princípio da insignificância é pautada em discussões e controvérsias por parte da doutrina jurídica, uma vez que os limites impostos por tal lei permitem o trancamento da ação penal pela atipicidade. Assim prevê tal dispositivo:

Art. 20. Serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais) (GRECO, 2013, p. 559).

Ressalta Greco (2013, p. 559) que apesar da posição assumida pelos Tribunais Superiores pátrios, o art. 20 não deve servir de parâmetro para efeitos de aplicação do raciocínio relativo ao princípio da insignificância, uma vez que resultaria em situações evidentemente injustas, exemplificando na situação de que um indivíduo seria condenado por furtar um valor de R$ 250,00 (duzentos e cinquenta reais), enquanto outro indivíduo, autor de um delito de descaminho, seria absolvido por ter iludido o pagamento de impostos que importavam, por exemplo, em um prejuízo de R$ 9.000,00 (nove mil reais) para o Estado.

Aduz também que não se pode considerar a falta de interesse da Fazenda Pública, no que concerne o processo de suas execuções fiscais de débitos com valores inferiores a R$ 10.000,00 (dez mil reais), para o reconhecimento da insignificância (GRECO, 2013, p. 559). Nesse sentido:

Mas, nas hipóteses de crime contra a ordem tributária (sonegação fiscal), de facilitação de contrabando e descaminho, em que a objetividade jurídica é a salvaguarda dos interesses do erário público em arrecadar, o conceito de insignificância deve ser aferido segundo particulares critérios, levando em consideração esse interesse.

Nesse caso, o melhor critério é saber o que é relevante para o estado em matéria de arrecadação tributária (FRANCO, 2001, p. 4055).

Resta claro e evidente que o princípio da insignificância foi inserido em nosso sistema penal objetivando atender a situações realmente insignificantes, de mínima relevância para o mundo jurídico e que se traduza em pouco prejuízo para a vítima (NOSCHANG, 2006, p. 198). Nesse sentido:

O princípio da insignificância não foi estruturado para resguardar e legitimar constantes condutas desvirtuadas, mas para impedir que desvios de condutas ínfimos, isolados, sejam sancionados pelo direito penal, fazendo-se justiça no caso concreto. Comportamentos contrários à lei penal, mesmo que insignificantes, quando constantes, devido a sua reprovabilidade, perdem a característica de bagatela e devem se submeter ao direito penal (STF, HC 102.088/RS, Relª. Minª. Cármen Lúcia, 1ª T., DJe 21/5/2010) (GRECO, 2012, p. 1008).

Assim, como exemplo, causa preocupação quando se quer dimensionar a quantidade de pessoas que passariam pela área aduaneira sem levar em consideração uma eventual fiscalização, no sentido de que não sofreriam qualquer sanção penal. Seria utópico pensar que seria possível a criação de uma estrutura para essa realidade, uma vez que nem para a situação atual há realmente a atuação efetiva da Receita Federal (NOSCHANG, 2006, p. 198).

Greco (2013, p. 560) afirma que mesmo estando consolidada em nossa jurisprudência, a aplicação do princípio da insignificância em casos de crimes de contrabando e descaminho, há-se que discordar desse raciocínio, pois caso contrário, “também deveria ser ampliado, a fim de atingir algumas infrações de natureza patrimonial, a exemplo do delito de furto, gerando, consequentemente, o caos social”. O autor continua no mesmo sentido, pontuando: “... não queremos afirmar ser impossível a aplicação do raciocínio relativo ao princípio da insignificância ao tipo do art. 334 do Código Penal. Existem fatos considerados como de bagatela, nos quais, certamente, restará ausente a tipicidade material” (GRECO, 2013, p. 560).

A grande discussão está pautada nos valores adotados pelos Tribunais Superiores pátrios, que atingem um limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais). O caso concreto deve ser levado em consideração não permitindo uma banalização de tais crimes em virtude da aplicação do princípio da insignificância, o que de certa forma proporciona uma insegurança jurídica, uma vez que tais crimes estão previstos no Código Penal e, portanto, devem ser punidos e não descriminalizados.

Destarte, fica evidente que o princípio da insignificância é de grande relevância para o Direito Penal, pois sua aplicação pode afastar a injustiça no caso concreto. Entretanto, tal aplicabilidade não deve ser banalizada, possibilitando dessa maneira reiteradas e incontroláveis práticas criminosas (GRECO, 2011, p. 65).

5      Considerações finais

 

Existe certa discussão quanto à aplicabilidade do princípio da insignificância aos crimes contra a Administração Pública, em especial no caso em estudo, sobre os crimes de contrabando e descaminho. É certo que o caso concreto, aliado também ao princípio da razoabilidade, será de suma relevância para determinar sobre a possibilidade ou não do reconhecimento do supracitado princípio.

Pontua-se que há certa preocupação acerca do trancamento da ação penal pela atipicidade, em virtude do limite imposto pela Lei nº 10.522/2002 no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), uma vez que poderá ocasionar um aumento dos crimes de contrabando e descaminho em decorrência da ausência da responsabilização penal para a conduta.

Percebe-se que o aumento do limite para o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), consequentemente um maior número de pessoas deixará de responder por sua conduta que é considerada como criminosa, possibilitando um estímulo à prática de delitos, em virtude de sua descriminalização.

Ressalta-se que mesmo sendo essa posição dominante nos Tribunais Superiores do Brasil, não seria correta a aplicação do princípio da insignificância, em situações de sonegação de impostos de valores elevados, mesmo que tais valores não atinjam o valor mínimo para a cobrança, elencados pela Administração Pública.

Entretanto, não se deve desconsiderar o princípio da insignificância para o Poder Judiciário. Porém, a sua aplicabilidade deve ser rigorosa no intuito de impedir a banalização dos crimes de contrabando e descaminho.

 

REFERÊNCIAS

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[1] Paper apresentado à disciplina de Direito Penal Especial III, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB.

[2] Alunas do 9º período do Curso de Direito Noturno, da UNDB.

[3] Professora, Especialista em Metodologia do Ensino Superior, Orientadora.

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