A APLICABILIDADE DA LEI 9.099/95 À JUSTIÇA MILITAR SEGUNDO UMA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL PRINCIPIOLÓGICA
Por William Fernandes Araújo | 22/02/2016 | DireitoA APLICABILIDADE DA LEI 9.099/95 À JUSTIÇA MILITAR SEGUNDO UMA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL PRINCIPIOLÓGICA
Resumo
O presente artigo tem por escopo estabelecer uma leitura constitucionalizada da legislação castrense lata, de forma a rechaçar qualquer vedação legal, não contemplada a luz da Constituição Federal de 1988, a direito individual do cidadão. No ponto, insurge a Lei dos Juizados Especiais, Lei 9.099/95 que, ao prever institutos benéficos ao acusado, negou aplicabilidade à justiça militar, ferindo princípios tais como o devido processo legal, igualdade, celeridade e eficiência, conceitos que, por meio de uma hermenêutica constitucional sistêmica, adquiriu força normativa com a vigência hodierna do vanguardista Neoconstitucionalismo.
Palavras-Chave: Juizados Especiais, Justiça Penal Militar, Aplicabilidade, Força Normativa da Constituição Principiológica.
Abstract
This article is scope to establish a constitutionalized reading of the military can legislation in order to reject any legal prohibition , not contemplated the light of the Constitution of 1988, the individual right of citizens . At the point , objected the Law of Special Courts , Law 9.099 / 95 that, by providing institutes , denied applicability to military justice , injuring principles such as due process , equality, speed and efficiency, concepts that , through a systemic constitutional hermeneutics, acquired legal force with today's term of new constitucionalism avant-garde
Keywords: Special Courts, Criminal Military Justice, Applicability, Normative Force principled Constitution.
Sumário: Introdução. 1. Vedação legal de aplicação da lei 9.099/95 à justiça militar X Interpretação Constitucional Sistêmica. 2. Análise do Direito Penal Castrense sob a ótica do da Constituição Federal de 1988: aplicabilidade da lei 9.099/95 à Justiça Militar. Conclusão; Referências bibliográficas.
Introdução
Questão recorrente e sempre instigante concerne à sobreposição de disposição legal expressa em favor de uma interpretação constitucional principiológica contrária.
No âmbito jurídico castrense, predita celeuma ganha relevo no tocante à lei dos juizados especiais que, colacionando institutos despenalizadores e descarcerizadores, nega expressamente, em seu artigo 90-A, aplicabilidade à justiça militar.
Tal realidade destaca, em verdade, discussão profunda, posta em evidência por meio do conflito de incidência estabelecido entre a prescrição legal e a norma jurídica tomada em sentido lato, isto é, aquela que abrange a disposição fria da lei acrescida dos princípios constitucionais que a inspira.
Nessa toada, cabe indagar: revela-se constitucional, em uma hermenêutica literal do artigo 90-A da lei 9.099/95, vedar a aplicação de seus institutos benéficos ao acusado na justiça militar, contrariando a men legis da própria norma, os anseios da sociedade, que clama por uma administração eficiente e uma justiça célere, bem como, em especial, os princípios constitucionais do devido processo legal, celeridade e igualdade?
A resposta indubitavelmente perpassa pela análise da chamada hermenêutica constitucional, que traça as diretrizes básicas a serem utilizadas pelos operadores do direito na interpretação e aplicação da lei, visando à constitucionalização do direito.
1. Vedação legal de aplicação da lei 9.099/95 à Justiça Militar X Interpretação Constitucional Sistêmica
Em que pese presumivelmente constitucional, a lei vigente, aparentemente adequada ao ordenamento jurídico, é corriqueiramente alvo de interpretação e aplicação pelos operadores do direito, que detêm a faculdade de questionar a lei eivada de valores contrários à constituição, no chamado controle difuso de constitucionalidade.
Nessa toada, mostra-se plausível afirmar que toda prescrição legal carece de interpretação, seja em menor ou maior grau de profundidade.
Insurge, assim, a diferenciação estabelecida entre a lei e a norma como critério de manutenção ou expurgação da disposição prescritiva.
Com efeito, nos ditames da ciência hermenêutica, o executor do direito deve atender, antes da letra fria da prescrição legal, aos princípios constitucionais que a inspira, “constitucionalizando” o direito.
Supracitada constitucionalização torna-se possível em virtude da existência do conceito normativo de lei, isto é, aquele que aglutina, num só corpo, a letra fria e expressa da prescrição normativa e os valores constitucionais que funcionam como seu desiderato.
Assim, visando à manutenção formal do ordenamento jurídico, antes da expurgação da lei tida como inconstitucional, é salutar a utilização da interpretação constitucional do comando normativo, visando a suprimir do mundo jurídico não o texto formal, mas sim interpretações que firam a carta magna.
Nessa esteira de ideias, a lição de Marçal Justen Filho, in verbis:
“Vale dizer, as normas jurídicas não se confundem com a letra da lei.
(...)
A lei não é elaborada para bastar-se em si mesma, tal como se os fins do Direito fossem menos relevantes do que as palavras do legislador. Como ensinou Engish, ‘não só a lei pode ser mais inteligente do que o seu autor, como também o intérprete pode ser mais inteligente do que a lei’.” (2002, p. 77-78)
Em um Estado Democrático de Direito marcado pelo constitucionalismo, quando a lei se postar dúbia, com vertentes de aplicação maniqueístas, ora constitucional, ora inconstitucional, quando possível, a face interpretativa contrária à lei maior deve falecer ante os vetores axiológicos que irradiam da constituição, sem supressão formal do texto normativo, o que confere salutar relevância aos princípios basilares que inspiram o ordenamento jurídico, idôneos à correta exegese legal e à justa aplicação do direito.
A isso se denomina “interpretação conforme a constituição sem redução de texto”.
A despeito desta realidade jurídica, por vezes o comando normativo é dotado de interpretação una, inequívoca, por conseguinte.
Em casos tais, se referida exegese vier de encontro aos valores constitucionais, solução outra não haverá que não a declaração da inconstitucionalidade do dispositivo, com a sua conseqüente expurgação formal do ordenamento jurídico.
Eis a realidade da lei dos juizados especiais, que colaciona institutos despenalizadores e descarcerizadores, benesses legais consagradas em favor do cidadão e coadunantes aos princípios constitucionais da celeridade e devido processo legal, mas que veda aplicabilidade ao cidadão militar, rompendo com o constitucional princípio da isonomia.
Prescreve o artigo 90-A da lei 9099/95:
“Art. 90-A. As disposições desta Lei não se aplicam no âmbito da Justiça Militar.”
A Constituição Federal de 1988, por sua vez, inspira:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
(...)
LXXVIII a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”
Pela análise fria do comando legal, estampado na lei 9.009/95, conclui-se, sem maiores esforços, serem inaplicáveis os institutos benéficos da lei dos juizados especiais à justiça castrense.
Todavia, seria crível chegar à mesma conclusão, interpretando o direito ante o quadro de direitos e garantias insertos na carta magna, que não estabelece distinções entre os cidadãos, sejam eles militares ou civis?
A Constituição Federal de 1988 é eloqüente ao citar, em seu artigo 5º, princípios processuais assecuratórios do cidadão, tais como a igualdade, o devido processo legal, a ampla defesa, a celeridade e a eficácia na prestação jurisdicional, que tornam o modelo jurídico brasileiro referência no direito internacional.
Nesse sentido, esse arcabouço principiológico deve ser alçado à condição de viga mestra na exegese legal, de maneira que toda e qualquer prescrição normativa seja, de imediato, constitucionalizada através de uma interpretação que maximize o poderio normativo da constituição.
Trata-se de uma visão imperativa, ante o conceito pós-positivista de constituição, que tende a maximizar a força normativa do preceito constitucional, alçando o princípio da juridicidade à condição de vetor hermenêutico de todo o ordenamento jurídico.
Nessa esteira de ideias, ante a inevitabilidade da interpretação unívoca contida no artigo 90-A da lei 9099/95, que veda aplicação dos seus institutos à Justiça Militar, sob o pálio de uma interpretação constitucional sistêmica e assecuratória da força normativa dos princípios constitucionais, conclui-se que supracitado dispositivo é natimorto, posto que inconstitucional, de invalidade congênita, portanto.
2. Análise do Direito Penal Castrense sob a ótica do da Constituição Federal de 1988: aplicabilidade da lei 9.099/95 à Justiça Militar
Muito se discute acerca da aplicabilidade dos institutos previstos na lei 9.099/96 à Justiça Militar, mormente seus institutos descarcerizadores e despenalizadores, tais como a transação penal, a necessidade da representação no crime de lesão corporal culposa e leve, suspensão condicional do processo, composição civil dos danos, dentre outros.
Os defensores da inaplicabilidade dos institutos supracitados aduzem, para além da letra fria do artigo 90-A da lei 9099/95, que a especialidade do processo penal castrense em relação ao processo penal comum funciona como fator impediente.
Enquanto seara especializada do direito penal, Jorge Alberto Romeiro define:
"O direito penal militar é um direito especial, porque a maioria de suas normas, diversamente das de direito penal comum, destinadas a todos os cidadãos, se aplicam exclusivamente aos militares, que têm especiais deveres para com o Estado, indispensáveis à sua defesa armada e à existência de suas instituições militares” (1994, p. 6)
A despeito da inconteste realidade especial do direito penal militar, a utilização pura e simples deste fundamento como critério de segregação dos militares, afastando deles os institutos benéficos da lei 9.099/95, além de não se sustentar no plano da coerência, implica contrariar todo o arcabouço constitucional brasileiro.
Com efeito, ante o quadro instalado pelo denominado neoconstitucionalismo, que apregoa, eminentemente, a ideia da força normativa da constituição principiológica, é indubitável que a prescrição legal que contrarie os princípios insertos na Constituição Federal padece de inconstitucionalidade.
Nessa senda, e no que toca à análise do presente artigo, não somente os tipos penais apregoados no Código Penal Militar devem guardar consonância com a carta magna, mas toda e qualquer legislação que traga disposição relativa ao direito penal castrense, a exemplo do artigo 90-A da lei 9099/95.
É certo que a Lei dos Juizados Especiais foi editada sob o sigma da potencialização da celeridade processual e da composição alternativa de conflitos, anseios não somente da justiça comum, mas, vale destacar, hodiernamente também da justiça militar, que vem padecendo dos mesmos males inerentes à justiça comum, relativos à burocratização processual, o abarrotamento de feitos e a inflacionada população carcerária.
Dessa forma, o legislador infraconstitucional, ao vedar a aplicabilidade das disposições inerentes à Lei dos Juizados Especiais à justiça militar, para além de contrariar toda a ideia em que se inspirou a lei 9.099/95, acabou por ferir a Constituição Federal de 1988, haja vista que a especialização da justiça castrense não constitui critério de discrímen idôneo a desigualar o cidadão civil em relação ao cidadão militar, no que tangencia às benesses instituídas em lei.
Celso Antônio Bandeira de Melo, em sua clássica Monografia sobre o Princípio da Igualdade, elenca os três fatores de observância obrigatória a determinar a aplicação do princípio da igualdade:
“a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação; b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado; c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados” (2004, p. 23-43)
Ora, não se pode dizer que os pilares sob os quais repousam o militarismo, a hierarquia e a disciplina, sejam fatores erigidos em critério, nas palavras de Celso de Melo, de desigualação, a estabelecer distinção entre civis e militares, impedindo a aplicação das benesses da lei dos juizados especiais à justiça castrense.
A uma porquanto não é dado ao legislador infraconstitucional estabelecer restrições não supedaneadas pelo legislador constituinte, mormente quando limitativas de direitos (in casu, dos militares); a duas porque as inspirações que permearam a criação da lei 9.099/95, mormente aquelas relacionadas à celeridade na resposta judicial aos ilícitos praticados, com muito mais razão devem se aplicar à seara castrense que, em muitos casos, possuem a administração militar como sujeito passivo, pelo que, garantir a celeridade processual no processo penal militar, implica concretizar, em verdade, o próprio princípio constitucional da eficiência, que tem na celeridade uma de suas vertentes.
Esse o entendimento de Damásio Evangelista de Jesus, que leciona:
"A Suspensão condicional do processo é aplicável aos delitos militares arrolados pelo art. 89 da lei especial, sendo a competência da Justiça Militar.” (1996. p.109)
Na mesma toada, destacando a celeridade processual como mandamento constitucional geral, a orientar toda a legislação infraconstitucional, destaca Grinover:
“Esses meios devem ser inquestionavelmente oferecidos pelas leis processuais, de modo que a reforma constitucional fica umbilicalmente ligada à constitucional, derivando de ordem expressa da Emenda n. 45/2004. Trata-se, portanto, de fazer com que a legislação processual ofereça soluções hábeis à desburocratização e simplificação do processo, para garantia da celeridade de sua tramitação” (2005, p. 501).
Dessa forma, por meio de uma leitura constitucional da legislação penal castrense, referendada nos princípios constitucionais da igualdade, celeridade e devido processo legal, conclui-se que os institutos previstos na lei dos juizados especiais devem se aplicados ao processo penal militar, sob pena de ter-se malferido, ainda que potencialmente, direito de locomoção do indivíduo, a ser sanado mediante impetração de Habeas Corpus.
Conclusão
Em que pese a existência e vigência das leis, o trabalho hemenêutico-constitucional estabelecido no comando frio do texto legal por vezes revela sua invalidade.
O processo legislativo requer do legislador trabalho sério e minucioso, espelhado na constituição e fundado nos valores explícitos e implícitos que dela irradiam.
Nesta seara, toda prescrição legal que fira os vetores constitucionais axiológicos devem ser expurgados do ordenamento jurídico, uma vez que, a despeito de vigentes, revelam-se, em verdade, inválidos.
No contexto da lei dos juizados especiais, vê-se, com solar clareza, que o artigo 90-A, ao vedar a aplicação dos seus institutos à justiça militar, feriu princípios constitucionais como o devido processo legal, igualdade, ampla defesa, celeridade e a eficiência na prestação jurisdicional, haja vista não ser possível tratar de forma desigual aqueles que se encontram em um mesmo patamar, já que inexistente o discrímen razoável .
Lado outro, a atividade legislativa infraconstitucional não pode estabelecer restrições onde o poder constituinte não o fez, de forma que a celeridade processual, um dos corolários do princípio da eficiência, deve ser concretizada em todos os diplomas infraconstitucionais.
Nesse sentido, conclui-se que o artigo 90-A da Lei 9.099/95 é materialmente inconstitucional, haja vista contrariar princípios constitucionais diversos, analisados sob a ótica da força normativa da constituição principiológica, devendo o judiciário a ele negar validade por meio da aplicação dos institutos previstos na lei 9.099/99 aos acusados na justiça militar.
Com isso, maximiza-se a força normativa da constituição, assegurando a isonomia e o devido processo legal regente do processo penal.
Referências Bibliográficas
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BRASIL. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9099.htm
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GRINOVER, Ada Pellegrini. A necessária reforma infraconstitucional, in André Ramos Tavares, Pedro Lenza, Pietro de Jesus Lora Alarcon (coord.), Reforma do Judiciário. São Paulo: Método, 2005.
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