A animalização do ser humano!
Por ELANE FERREIRA DE SOUZA | 19/03/2016 | ContosEssa Estória, que bem poderia ser uma História, começa como qualquer outra começaria.
Era uma vez um homem, esposo e pai amoroso, trabalhador e grande lutador em prol de dias melhores para os seus, além de um sonhador - desses que não só vê a vida como algo belo, mas como algo pelo que sempre valerá a pena lutar.
O nome desse homem é José, um José como outro qualquer – só mais um que vive nas favelas desse Brasil imenso; numa grande favela, de uma grande Capital.
Sua esposa se chama Lídia; ela não trabalha fora, de momento – já foi doméstica e vendedora em uma loja; todavia, hoje passa o tempo cuidando dos três filhos pequenos enquanto o marido (José) sai para a lida.
Os filhos do casal têm entre 2 e 8 anos. Os meninos são os dois menores (Iniesta de 2 e Lionel de 4); a menina é a princesa do papai José e se chama Gisele Bárbara.
Os nomes, como já devem ter notado, foi uma homenagem aos jogadores (O Español Iniesta e o Argentino Lionel Messi) feita pelo pai que tanto os admira. Já a menininha, a Gi, como é chamada pelos papais orgulhosos, foi uma homenagem que a mãe fez a Gisele Bundchen – ela ama (é super fã) da modelo e por isso quis eternizar esse amor dando o nome da modelo a menina. Sentiu pena não poder acrescentar também o Bundchen, uma vez que se trata de um sobrenome; o seu, no enquanto, é Lopes da Silva. Dessa forma acrescentou um segundo nome a filha – “Bárbara”, para não ficar,tão distinto do da modelo. Pelo menos ao pronunciá-lo, por completo, soará parecido, é o que pensou Lídia ao batizá-la com esses nomes!
Cap. I - A fatalidade
A vida de Lídia não é nada fácil. Dos três filhos, apenas a pequena Gi vai a escola – não encontrou creche na redondeza para ingressar, também, os dois menores, dessa forma é ela mesma que tem que cuidar deles e ainda levar Gisele a escolinha todas as manhãs e ir buscá-la a tarde (sorte que ainda encontrou uma que a cuida o dia todo). Mesmo assim fica difícil ter que sair todos os dias carregando duas crianças nas costas, pois é impossível conseguir tomar um ônibus onde vive e/ou encontrar alguma vizinha(o) que os cuide enquanto vai (pela manhã e tarde) levar e buscar a filha.
Felizmente Lídia é uma mulher forte, saudável, jovem e de bem com a vida. Faz isso todos os dias sem reclamar – vê os filhos como uma benção e não como um estorvo para seu sucesso pessoal. Mesmo recordando do tempo em que era uma bela mulher, esguia, barriga chapada, cabelos sedosos, sem filho e marido para “atrapalhar”, podendo fazer o que bem entendesse, ela não troca pela vida que hoje tem. Ama o marido e os filhos mais que tudo!
Acredita que tudo que faz hoje lhe será recompensado amanhã. Terá filhos bem criados e educados, mesmo sabendo que vive em uma zona mal vista pelo restante da cidade. Uma área marginalizada onde crêem que não há futuro para ninguém. Uma região esquecida pelo poder público; “tomada e a administrada” por facções criminosas que fazem as vezes de governo, polícia e justiça.
Nos finais de semana estão sempre juntos em casa, vendo televisão com os filhos ou jogando vídeo game no computador ou no celular com eles.
Parece difícil imaginar que pessoas tão pobres, que vivem em áreas marginalizadas e inclusive recebem ajuda do governo, dos programas sociais, para ajudar no sustento possam ter computador e celulares.
Mas é assim mesmo que acontece. A família da Estória em questão tem uma boa TV, bons celulares e um computador com wi fi, apesar da casa estar, literalmente, “caindo aos pedaços”. Todos ao redor vive da mesma forma.
- Mas como pode isso? Tem tanta gente por aí que não tem bom celular, não pode adquirir um computador, muito menos contratar serviço de internet e vive em bairros e em melhores condições – como eles tinham tudo isso?
O que nós não sabemos é que, algumas pessoas que vivem em áreas marginalizadas priorizam bens como TVs, celulares, microondas, lavadoras tudo de média a boa qualidade, enquanto isso, muita das vezes, não tem o que comer e/ou vestir; na casa falta até partes do telhado, além da pintura e do reboco. O banheiro nem se fala – é o caos, chega a colocar crianças e idosos em perigo. A luz, a água, a TV a cabo e o sinal de internet são fornecidos pelo “gato” que fizeram do serviço pago pelo vizinho que tem mais condições, ou do poste da rua e em alguns casos financiadas pelo “poder paralelo”- eles fornecem esse tipo de “serviço” ao povo – não é o caso da família, protagonista dessa história, eles tinham porque haviam adquirido, com muito custo e trabalho, já a wi fi era “gato” (na verdade, partilhamento de senha entre muitos moradores).
Infelizmente o conceito de honestidade de muita gente não abarca tudo – fazer gato de energia, água, TV à cabo e internet é bastante comum; a maioria acredita que não estará cometendo nenhum delito ao fazer ligações clandestinas; não pagar e consumir é algo bastante comum em certos bairros no Brasil. Quando um curto circuito destói um quarteirão inteiro, e até mata pessoas por causa disso a culpa, muitas das vezes, é direcionada aos governantes pelo desserviço. Alguma razão terão por pensar assim pois, se o Estado não está não há lei, não há limites – “é cada um por si”, até o dia em que a milícia chega e toma conta!
Um final de semana, quando toda a família de Seu José estava reunida em casa, as crianças sairam para tomar ar e brincar um pouco com os amiguinhos da vizinhança; já estavam cansados de estar dentro, vendo TV e jogando no computador num dia de verão inteso.
Havia muito calor, todos as crianças que foram brincar na rua vestiam roupas leves – os meninos só shorts e as meninas algo mais na parte de cima – afinal, a pequena Gi (de 8 anos) e algumas de suas amiguinhas de mesma idade ou pouco mais velhas, já se viam mocinhas, portanto nada de sair a rua mostrando os pequenos e quase invisíveis peitos (ali, ainda não havia nada que se pudesse chamar de seios), todavia a pequena Gisele já se envergonhava de ficar com eles à mostra.
Fazia ela muito bem pois, onde a maioria comum não consegue ver nada é um turbilhão de fantasias na cabeça doente dos pedófilos e tarados.
Esconder-se por detrás de uma blusinha humilde e uns calções surrados não foram o bastante para tirar os encantos de Gisele. Naquele mesmo dia ela foi levada por um desses indivídulos inescrupulosos que sentem desejos e tem fantasias com crianças. Um pequeno descuido da família fez com que Gi nunca mais fosse vista com vida nas redondezas.
Após longos dias de busca, na maioria das vezes, buscas essas realizadas mais pela própria família e amigos que, mobilizaram a TV, a mídia inteira e as redes sociais com fotos e pedidos de “socorro” a qualquer um que pudesse fornecer informações acerca do paradeiro da pequena Gisele, uma mensagem anônima chega pelo telefone!
- Uma menina, com as características da desaparecida tinha sido encontrada, sem vida, num matagal próximo ao bairro onde a família vivia.
Imediatamente a família leva a conhecimento da polícia tais informações.
A polícia vai ao local e realmente encontra o cadáver de uma menininha, com as mesmas vestes da desaparecida, com o mesmo tamanho, mesma textura e cor de cabelo.
Após exames de DNA ficou constatado que era mesmo o cadáver de Gisele Bárbara; a princesinha do papai José estava morta; tinha sido violentada, e as partes do corpo que ela mais presava e sentia vergonha de expôr foram arrancados dela, com vida (seus pequenos e inocentes seios).
Cap. II - A reação da família com a perda
A família nunca mais foi a mesma. O sofrimento de todos era visível.
Lídia, a mãe altiva e batalhadora dona de casa não tinha mais sua filhinha para levar e buscar ao colégio. José, o pai, estava cada dia mais embrutecido. Suas feições mudaram. Mesmo sabendo que tinha duas pequenas crianças em casa para criar e educar ele passou a agir de forma distinta da do pai carinhoso, presente e responsável que sempre foi.
Retornava do trabalho; mal entrava em casa, comia algo e sumia no “mundo”. Lídia nunca sabia onde o marido ia e o que fazia nesses momentos de ausência.
Nos momentos em que conseguia parar em casa era somente para discutir com a esposa.
Ela queria saber onde ele ia. Ele não queria dar satisfações. Ela exigia a presença dele para ajudar na educação dos filhos e estar presente ao lado deles. Ele já não via sentido nisso pois, Gi era a mais importante dentre os filhos, sem ela a vida não tinha mais sentido – educar os outros para que? Para alguém levar, tirar a vida e sair impune como se nada houvesse passado? Agora, era essa a “crença” de Jose´. Não acreditava mais que o mundo pudesse ser um lugar melhor, que podíamos transformá-lo em um bom local de se viver.
Cap. III – As andanças de José
Um dia, vendo o noticiário, Lídia ficou sabendo que um homem, suposto assassino de sua filha, havia sido morto de uma forma cruel. Fora torturado e teve suas partes íntimas retiradas e enfiadas na boca com ele ainda em vida.
Pela data e hora da morte, a forma que ela se deu Lídia logo supôs a autoria do homicídio.
- Era seu marido, ele tinha se transformado num assassino.
O homem doce, gentil, amável, carinhoso que ela havia casado não se parecia, em nada, com aquele que foi capaz de cometer, como vingança, uma atrocidade, se igualando ao assassino de sua filha, agora sua vítima.
Quando se deparou com ele pela primeira vez, após ficar sabendo do homicídio nem sequer teve coragem para encará-lo. Sentiu medo, todavia o amava e não teria coragem para delatá-lo a polícia.
Decidiu sozinha, mesmo antes do pedido que o marido viria fazer, de servir-se de álibe.
Quando foi inquirida sobre o fato e a presença do marido no dia fatídico, ela disse que ele esteve com ela todo o tempo e que quase nunca saia de casa – coisa que eles saberiam não fosse a vizinhança toda resolver “mentir junto” – de forma coerente, pois todos estavam “felizes” com o fim que levou o pedófilo!
Gi não teria sido a sua primeira vítima! Se não “morresse logo” outras morreriam em suas mãos – foi melhor assim é o que a maioria pensou quando resolveu servir de “álibe” indireto para José, afinal todos os vizinhos, os mais próximos, já sabiam que ele não mais parava em casa depois do ocorrido com Gisele – e no dia do homicídio não foi diferente.
Cap.IV – Eis que surge um “vingador”
Para quem vive numa área de violência “epidêmica”, como é o caso da família de José, o surgimento de um “vingador desconhecido” não é algo ruim.
As pessoas sentem que a Justiça foi feita quando o assassino do filho, marido, esposa, cunhado, primo, amigo tem o mesmo fim. Não querem esperar pela prisão e julgamento, muito menos crêem que ela seria feita.
- “A justiça é lenta e ninguém se importa com favelado”! É o que pensam a maioria dos que vivem ali, próximos de José – onde o poder público não entra. Lugar esquecido pela polícia, pela Justiça e pelos programas de inserção social.
Não há políticas públicas de prevenção primária que é a principal, pois trata-se do Estado proporcionar educação, saúde, segurança, trabalho e qualidade de vida ao povo do lugar – isso tudo, a médio e longo prazo garante um local mais tranquilo para se viver. Infelizmente, também, não se nota uma política de prevenção secundária, destinada a gerir os conflitos de grupos e subgrupos; a presença da polícia nessas áreas de maior violência é quase nula – se houvesse, a curto ou médio prazo também se poderia perceber uma mudança, para melhor!
Segundo a Criminologia ainda existe o modo de prevenção denominada de terciária, que seria àquela aplicada à população carcerária, a que cumpre pena. Essa visa a recuperação do preso, tenta evitar que ele reincida na vida do crime quando estiver fora do sistema; infelizmente há um estigma que “rodeia” o ex presidiário – ele nunca será um ex-criminoso, sempre será um criminoso que cumpriu pena, e só.
Ninguém dá emprego para quem já cumpriu condena e, se essa pessoa vai, ou simplesmente volta para uma área de risco como é a de José ele terá tudo para um dia voltar a deliquir, ser preso ou morto por outro que vive a vida como ele ou nas mãos de um “vingador”, como esse que agora perambula pelo pela favela onde vive os protagonistas de Estória.
Mas, e o Vingador, esse também não é um assassino cruel?
- Com certeza que sim, todavia é um herói para a população que vive assustada, sem justiça pela perda dos entes queridos, assim acabam aceitando qualquer forma de vingança que venha acalentar seus corações; não percebem que com essa aceitação, com essa alegria pelo morte do assassino de quem amavam se tornam vazios e animalescos, só não piores que o “Vingador” que decidiram endeusar.
Alguém que se autodenomina, ou se aceita e age como “vingador” é tão cruel, tão bárbaro quanto o próprio meliante que extermina. Ao fazer o mesmo, ou pior para se vingar deixa de ser vítima, passa a ser apenas mais um bandido que deve ser buscado e “enjaulado”!
Quem começa nessa vida de vingança vai chegar um momento que não mais se reconhecerá. Passará a sentir alegria, prazer, felicidade em matar. Nunca mais será o mesmo; tomará gosto pela coisa e por mais que se imagine superior, melhor que o assassino, estuprador, violador que pois fim a vida, a justiça o verá de forma igual.
Se antes era difícil matar para vingar a morte de um filho, mas acabou conseguindo fazê-lo, mais cedo ou mais tarde acabará fazendo outra e outra vez. Será para vingar a morte de um amigo, vizinho, parente e até por uma olhadura de cara feia – a vida do outro, do desafeto, deixará de ter importância – seja por qual questão for, matar passará a fazer parte do vocabulário, do cotidiano dessa pessoa.
Esse é o de José, que um dia foi um homem bom mas resolveu fazer “justiça com as próprias mãos” – sujou-se do sague de outro ser humano, hoje é tão assassino quanto o pedófilo que um dia exterminou!
Da mesma caso forma, assassino também é a pessoa que participa do linchamento de outro ser humano. Não existe coisa mais baixa, mais vil, mais vergonhosa e arrepiante que ver uma multidão enfurecida, em forma de “manada”; um bando de “marias vão com as outras” atirando pedras, socando, dando pauladas, facadas, machadadas numa única pessoa – deixando-a sem a mínima chance de defesa.
Cap. V – Considerações finais e Jurídicas
Não seria mais humano, MAIS CRISTÃO, prendê-la e entregá-la a polícia? Por mais dramático, por mais hediondo que tenha sido o crime que ela (o linchado) praticou merece uma chance de ir a justiça responder por isso!
Não somos a Arábia Saudita nem o Irã que ainda pratica a pena de morte, somos um país, em tese, civilizado, que é signatário da Carta das Nações Unidas, da DUDH, e da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Resolução 39/46 da Assembléia Geral das Nações Unidas) que foi estabelecida em 10 de dezembro de 1984 e ratificada pelo Brasil em 28 de setembro de 1989. É constituída por 33 artigos, neles há repudio para todas as formas de tortura.
Além disso, a Anistia Internacional trava uma batalha diária para o extermínio da pena de morte no mundo, pois essa não pune ninguém, apenas mostra ao mundo o quão sem valor é o ser humano - o quão impossível é a sua "redenção" - apesar da pregação diária pelo mundo, em forma de religião, falando o contrário, ao aceitá-la e concretizá-la só estarão demonstrando o quanto contraditórios e sem amor ao próximo são em suas "convicções" teístas. "O mundo precisa de mais amor, não de falsos moralistas"!
Autoria: Elane F. de Souza - Advogada-CE e Administradora do Blog Cotidiano e o direito - http://endireitandoasideias.blogspot.com
Obs.: Essa NÃO é uma história real, nem os personagens são reais; qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. O texto em questão tem trechos relativos à Criminologia e aos Direitos Humanos.