A ALIENAÇÃO DE TODOS NÓS DENUNCIADA EM FILME
Por João Valente | 07/04/2010 | ArteA ALIENAÇÃO DE TODOS NÓS DENUNCIADA EM FILME
Como John Carpenter fez uma obra-prima com relativamente baixo orçamento e ainda conseguiu levar seus espectadores a uma reflexão portentosa e até certo ponto assombrosa.
A partir da "consciência adormecida" de todos nós da Era das Comunicações, hipnotizados pelo feixe luminoso da telinha por onde a mídia nos inocula tudo o que quer, John Carpenter, grande diretor médio hollywoodiano, realizou uma das mais bem sucedidas obras-primas da sétima arte, cujo resultado bilhetérico – relativamente baixo – por si só responde à denúncia que o próprio filme faz, como a cristalizar uma profecia sobre si mesmo, com dia e hora para acabar.
É uma obra eivada de filosofia e tecnologia de ponta, a ponto de se situar milhões de anos à frente de nosso tempo, vez que traduz uma evolução tecnológica de um planeta distante, o qual nem precisava de discos voadores para levar e trazer ETs à Terra. Uma simples subida ao pedestal envidraçado de um subterrâneo metropolitano dos EUA (que lembra as máquinas tubulares de vidro de seriados como Perdidos no Espaço e Jornada nas Estrelas) tele-transportava qualquer cidadão – no sentido de aliado dos ETs – para o mundo paradisíaco dos alienígenas. E era um paraíso mesmo, na mais exata expressão do termo, e bem afinado com o sentido de paraíso do homem capitalista pós-moderno, cujo significado perfaz apenas o gozo dos prazeres carnais regados a muito álcool e grana preta. E Carpenter não se esquivou de mostrar isso bem claro, com cenas onde as elites de hoje são mostradas usando a velha Lei do Gérson, na qual levar vantagem em tudo ($) e conquistar muitas mulhere$ e toda uma vida de luxo e conforto não é apenas sonho e busca frenética, mas algo a que todas as pessoas estariam dispostas a arriscar, e muitas até a matar para conseguir tal coisa.
Esta conclusão exposta com clareza ofuscante deveria chocar a todos, como disse, mas a alienação fabricada pela TV e a mídia de massa é e foi tão eficiente que quase ninguém (com honrosas e temerosas exceções) se tocou e se viu naquele espelho cru de Carpenter, ao ponto de nenhuma ação na prática lhe ter sido lançada em processo judicial para desmoralizar-lhe a ousadia, a qual foi até o ponto de confessar, sem disfarce algum, que "diretores como John Carpenter devem ser silenciados". Dizem que aí reside o grande benefício de quem denuncia a verdade através de ficção: "Se as coisas saírem errado e se voltarem contra o denunciante, ele sempre terá o recurso de dizer que tudo não passou de ficção, e qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais é mera coincidência".
O filme conta a história de uma raça alienígena que invadiu a Terra sutilmente, sem nenhum alarde ou mesmo naves avistadas por populares sem expressão (na vida real, segundo os milhões de testemunhas ao redor do mundo, é assim que ocorre), de tal modo que mesmo depois de todos os anos de desembarque e de preparo da infra-estrutura de dominação, jamais foram detectados por ninguém, nem mesmo pelos mais avançados sistemas de detecção militar e nem tampouco pelos cientistas do Projeto SETI. Desembarcados e fixados residência entre nós, com sua aparência exterior idêntica à nossa e o "controle consciencial da mídia", passaram a compor com perfeição o quadro de pessoal da Terra, exceto por um único detalhe: algum 'nerd' ou "gênio da info-oftalmologia" poderia inventar um sistema de visão que restaurasse a consciência plena dos usuários do mesmo, o qual poderia ser um remédio, um tipo de hipnose, óculos especiais ou lentes de contato 'transvisuais'.
O primeiro usuário não descoberto e não assassinado é assim, o personagem central do filme. Carpenter chamou Roddy Piper para o papel central, um louro forte com cara de lutador de boxe chamado 'John Nada', o qual tinha a vantagem de ser simultaneamente paciente e curioso ao extremo (poucos de nós conseguimos ser as duas coisas ao mesmo tempo), e por isso dar de cara com a casa de abelha de quem tinha ou usava os óculos.
Ao colocar pela primeira vez aquilo no rosto (a dor de cabeça era terrível e o choque foi brutal, e é sem dúvida a cena mais magistral do filme), John Nada viu o mundo como realmente é, e talvez tenha visto o mundo como nunca nenhum de nós viu! Eis aqui por que o filme de Carpenter é tão genial e grandioso, certamente único na imensa galeria de ficções espaciais. E daí as lições resultantes são: "Eles vivem, nós dormimos"; "Eles estão transformando a atmosfera de nosso planeta na atmosfera do planeta deles, pois lá eles não usam camada de ozônio para se proteger"; "Vocês só terão paz enquanto estiverem incógnitos" [disto depende a sua sobrevivência]; etc.. São todas noções e lições que hoje reputo imprescindíveis ao homem pós-moderno, quando este acordar de sua alienação e entender bem o que queria dizer o subtítulo do 1º Longa Metragem de Arquivo X ("Resista ao Futuro"). Provavelmente Chris Carter "ouviu" Carpenter para pincelar aquela epígrafe.
A maldade humana exposta com crueza detalhista (até um padre cego é cruelmente surrado até a morte pela polícia a serviço dos ETs), a trilha sonora irritante e propositalmente cansativa – para mostrar um mundo alienado que nem se toca com algo que se repete à exaustão (a música-tema foi composta pelo próprio Carpenter) – e a eterna manutenção da pobreza explorada pelo capital são outros pontos altos de "Eles Vivem", cujo título curtíssimo faz de si mesmo um resumo ao mesmo tempo claro e oculto, sem o uso da consciência sadia. "A regra de ouro é esta: quem tem o ouro faz a regra", é outra pérola filosofal inserida no enredo (pronunciada por 'Frank', o ator Keith David), esbofeteando todos nós mortais, desde a foice de Carl Marx até a mão de ferro de Margareth Thatcher, com a sombra subliminar de Gérson.
Como disse em relação ao orçamento, não foi um filme baseado em grandes somas de dinheiro, cuja 'modéstia' refletiu-se numa fotografia apenas razoável, locações limitadas e elenco sem estrelas (Meg Foster, Peter Jason, George Flower, Jason Robards III, e só). Porém, como os antigos diziam, quem disse que bons livros são livros caros?...
Por último, "cineastas como John Carpenter precisam ser contidos" a qualquer custo, deve ter sido palavra ouvida pelo próprio Diretor, seja em telefone, seja ao pé do ouvido, seja em conversa com militares de seu país, ou até em sonho (pesadelo), quando as conseqüências do que fazemos costumam acordar à noite e zumbir em nosso travesseiro, sobretudo quando decidimos levar a público uma denúncia contra quem jamais poderíamos vencer num confronto corpo a corpo. Eis a razão dela virar filme e filme de ficção, para que quem fez o alerta possa ao final ter um mínimo de sossego, já que conseguiu não alienar-se com as ondas de outro mundo.
Prof. João Valente de Miranda.