ADVOGADOS. RECEITA DE PAMONHA E SABRINA SATO
Por Milton Biagioni Furquim | 31/07/2024 | GeralMadrugada, sem sono. Entre ligar a TV e ‘rabiscá’ alguma coisa, ainda que sem nexo, foi essa minha opção. Então me veio na mente, dada a repercussão do famigerado caso da receita de pamonha escondida dentro de uma citação de jurisprudência em uma petição. Lembro-me que um colega magistrado, não recordo-me no momento de seu nome, que sobre a repercussão da receita da pamonha, foi muito feliz em suas observações ao criticar a importância que se dá a fatos insignificantes, como se o juiz, em sua decisão por não fazer referência a citação da pamonha, não desse importância ao pleito do jurisdicionado. Vale a pena conferir.
Creio ser importante trazer um contraponto às várias críticas que foram feitas de todos os lados pelas mídias sociais, considerando minha perspectiva de quem tem 18 anos de magistratura e às vésperas de minha aposentadoria. Aposentadoria não porque assim eu desejo – pois sinto que ainda tenho muita ‘lenha prá queimá’, mas porque não mais vale a pena continuar judicando por uma série de razões que agora não vem ao caso.
‘Bão sô”. Todos se lembram do caso, certo? O advogado escreveu uma receita de pamonha escondida em uma citação de jurisprudência, que passou despercebida pelo juiz, e, em razão disso, propagou-se aos quatro ventos que o juiz não leu a petição inicial integralmente.
Pois é. Vou começar contando um “segredo” proceis: a grande maioria dos juízes não tem tempo de ler petições inteiras. Especialmente a parte “Do Direito” das iniciais quase sempre é integralmente pulada. Não apenas iniciais, mas vários outros documentos do processo, lamentavelmente, a gente acaba tendo que deixar de lado. E é isso o que acontece invariavelmente. Não se iludam, mas afirmo que isso não traz nenhum prejuízo. O nosso volume de trabalho é muito absurdo. Desumano.
Ano passado, quando eu assumi a Primeira Vara Cível e Infância e Juventude como titular, sabem quantos processos existiam conclusos? Quando digo conclusos, são processos para o juiz decidir, despachar, sentenciar; quase 5000 processos aguardando para serem sentenciados há mais de quatro anos nos escaninhos da secretaria. Sim, o número é esse mesmo. Aqui está o que eu encontrei quando assumi a Primeira Vara.
Em cada um desses quase 5000 processos, sem falar os que são distribuídos diariamente, são necessários despachos, decisões, sentenças, audiências, entender o que aconteceu, dar rumo, analisar provas... enfim, oceis sabem. E prazo estipulado pelo CNJ e Corregedorias para apreciação é de noventa dias.
Acham mesmo que tem como ler 100% do conteúdo das petições e documentos, de todos eles, 5000, em noventa dias? Eu poderia até ler tudo. Porém, não nos noventa dias, e a consequência é que em no máximo três meses eu estaria respondendo a inúmeros processos administrativos disciplinares por atraso na prestação jurisdicional, com a Corregedoria no meu pé, OAB no meu pé, CNJ ‘funganu’ na minha ‘nuca’, imprensa etc... Sem falar na fila de advogados na porta do gabinete querendo me matar por causa da demora nos processos, além do monte de representações disciplinares e pedidos de desagravo.
Esse problema de falta de tempo e decisões superficiais é apenas uma das consequências nefastas das inúmeras metas que nos são empurradas sem muito critério ou reflexão pelo CNJ. Eis o que pensaram: a Justiça está lenta, logo, a culpa deve ser dos juízes, então vamos mandá-los trabalhar mais, sob pena de sofrerem punições disciplinares. Brilhante, não? Solução simples. Solução?
Ninguém pensou antes em fazer uma análise estrutural do Judiciário, sobretudo de primeiro grau, ou do nosso sistema processual tanto cível quanto penal absolutamente arcaico e inservível, ou em formas de punir severamente as demandas temerárias e aventuras jurídicas, além de priorizar o processo coletivo. Nada disso. É muito mais fácil botar a culpa no juiz e descer-lhe o sarrafo. E foi o que fizeram.
Sim, há alguns péssimos juízes, que não honram suas togas e não trabalham adequadamente. Mas são uma ínfima minoria. A absoluta maioria trabalha feito camelo, em regime de escravidão, muito além de seu mero horário de expediente. Quem não acredita, convido-o para passar um dia no gabinete de algum juiz.
Enfim. Obviamente que a celeridade que eles (CNJ) exigem não iria sair de graça, e a má qualidade das decisões é o resultado mais que óbvio, já que as metas não vieram acompanhadas de investimentos estruturais no Judiciário. É como se diz: as coisas podem ser rápidas, bem feitas e baratas, mas só podemos escolher duas dentre as três. Pra fazer rápido e “barato” (sem que sejam nomeados mais juízes, contratados mais assessores, mais funcionários em geral), não tem como fazer bem feito. Bom e rápido custa caro, e, infelizmente, não há interesse político em um Judiciário forte e eficiente.
Por hora, o que é relevante dizer é simplesmente o óbvio: não adianta ficar querendo escancarar o quanto a cozinha do restaurante é suja; você vai ter que almoçar nele. E tem mais: só está suja porque você almoça ali. Não existe outro Judiciário no Brasil. E o que existe, apesar do enorme esforço pessoal de muitos Juízes e servidores, não é o ideal. Nem perto disso. Tem muitos problemas por inúmeras causas. E somos todos parcialmente culpados por isso.
Nós sabemos disso. Acreditem! Não é sacanagem nem maldade. Não temos prazer algum em fazer decisões superficiais sem abordagem minuciosa de todos os fatos. Não é legal assinar o despacho que o estagiário fez sem corrigir atentamente.
Quando assumi a Primeira Vara atolada de processos paralisados o que mais me doía era saber que era impossível dar toda a atenção que cada processo merece, e da forma que merece, e o trabalho não raras vezes acabava saindo meio “nas coxas”. Isso ‘memu’, nas ‘coxas’. Isso me causa stress, depressão, sentimento de impotência. Creio, apesar de tudo, estar fazendo um excelente trabalho, colocando a Vara ‘em dia’, enfim, cumprindo com o que prometi à sociedade e advogados em um ano e, por certo, com pouquíssimas ‘burradas’ (mas ‘burradas’).
Mas depois de muito me incomodar com cobranças injustas que não levavam em conta o quanto eu já estava me matando de trabalhar por todas as Comarcas que judiquei, agora resolvi priorizar minha própria saúde, família, os poucos amigos (como é bão ter poucos amigos, mas amigos de qualidade) e, então, preparar-me para aposentar-me e aproveitar o tempo que resta-me e, sobretudo “aproveitá prá gastá o dinhero sogra”. Quem sabe poder dedicar-me a ‘rabiscar’ bobagens literárias.
Voltando ao caso. Gente, realmente não tem como ler tudo em processo. Repito, não tem como, embora o contrário devesse ser. Com a estrutura atual do Poder Judiciário, ou se faz no prazo (nas coxas) ou se faz bem feito (e sofre-se punições disciplinares). É um OU outro. Eu também gostaria que fosse diferente, mas não é. Então, meus amigos, ou a gente fica reclamando e continua dando murro em ponta de faca, ou tratamos de ajudar a ser parte da solução. A segunda opção é o ideal, mas infelizmente ainda não se deram conta disso.
Falando novamente das petições, convenhamos, vem muita baboseira escrita! Nossa, como tem baboseira. Muita coisa totalmente desnecessária. E aqui aproveito para afirmar que o juiz aprende com os bons advogados, até porque não tem tempo para estudar, ler, pesquisar. Então bons advogados ensinem os juízes.
Acha que a gente precisa que alguém nos diga que a prática de ato ilícito prevista no art. 186 do CC implica o dever de indenizar, conforme o art. 927 do CC, e trazer dez páginas de citações de doutrina desde as Ordenações Afonsinas até o Código Teixeira de Freitas e citar o anteprojeto do Código de Obrigações de Caio Mário da Silva Pereira??? Ou que o Código de Defesa do Consumidor se aplica às instituições financeiras, juntando ‘trocentos’ julgados a respeito, sendo que é matéria sumulada? Alguma coisa a gente até “passa os olhos”, an passant ... uma ou outra jurisprudência muito atualizada e do Tribunal local, e olhe lá. Mas ler com atenção letra por letra, infelizmente, não tem como.
Pedidos de Busca e Apreensão em Alienação Fiduciária por exemplo, que são totalmente repetitivos e entram meia dúzia por dia, bastava passar os olhos em poucos segundos. Vendo na capa dos autos que era busca e apreensão, eu basicamente só vejo se o contrato financeiro foi juntado e se há notificação do devedor no endereço constante do contrato. Só. Nada mais. Desnecessária a leitura de qualquer outra coisa – seja doutrina, jurisprudência e quejandos. Feito isso, tudo em termos: sentença, e vamos pro próximo! Podia ter fotos da Sabrina Sato pelada no meio que eu (infelizmente) não teria visto! E, sejamos francos, provavelmente ninguém veria. Garanto que a maioria vai achar esse texto muito grande e não vai ler inteiro!!! Ou se ler, lê com o pensamento voltado para as dificuldades do dia a dia, a dívida com o banco, os filhos fumando maconha, etc. Os ‘zóios’ no texto e a mente divagando a mil por hora.
Além do mais, a gente confia na boa fé dos advogados. Acreditamos que não virão artifícios, ardis, surpresas, receitas de pamonha, de camarão empanado... Enfim, a sempre desejada boa fé; objetiva e subjetiva. Ao passar os olhos rapidamente sobre a petição, com a experiência que temos, já sabemos do que se trata. Não precisamos conferir palavra por palavra, e nem há tempo para isso. Então imagina fazendo isso em 5000 processos paralisados?
As vezes vem algum pedido muito fora do comum ou que cause certa perplexidade, que não é nem revisão de contrato bancário, nem indenização por nome no SERASA, usucapião e demais casos do dia-a-dia. Aí sim vale a pena caprichar trazendo julgados recentes e explicar um pouco melhor para refrescar nossa sofrida memória.
Fora dessas hipóteses muito excepcionais, podem ter certeza de que aquela história de que o Juiz conhece o Direito (da mihi factum dabo tibi jus) quase sempre é verdade, ainda mais em uma Vara de competência mista e em pedido corriqueiro. Não precisamos de grandes ensaios acadêmicos. Precisamos de colaboração!
É também verdade que a gente aprende na faculdade, como eu aprendi com o querido e genial professor Dr. Fábio Macedo Garcia, hoje colega de magistratura, que a inicial é o momento de você expor toda a sua causa, com todos os argumentos possíveis e imagináveis, em razão do conhecido Princípio da Eventualidade. Isso nos trouxe uma neurose coletiva de fazer da petição inicial um palco para os mais amplos e variados ensaios jurídicos. Pior do que isso: é ou não é verdade que se a gente termina a petição inicial e ela tem quatro, cinco, seis páginas... dá uma insegurança, uma sensação de que não está boa? E como resolver? Dá-lhe encher linguiça!
Mas é aí que está o maior engano! Petição inicial boa não é aquela gigantesca, em papel cartonado, toda colorida, citando dez tipos de doutrinas diferentes e jurisprudências de todos os Tribunais do País.
Sabem qual é a petição inicial boa? É a direta, clara e objetiva. Todo mundo já sabe que a maioria dos juízes não tem como ler cada nota de rodapé das petições. Isso é fato. Não vai mudar. Então pra que continuar escrevendo cinquenta páginas não diretamente relacionadas ao processo? Só pra continuar reclamando que o juiz não lê? Já tive oportunidade de chamar a atenção do procurador e determinar que resumisse as 98 laudas da petição inicial em no máximo meia dúzia. Se certo ou não assim determinei.
Já disse ninguém menos que Albert Einstein que é insanidade fazer sempre a mesma coisa e esperar um resultado diferente!
Ao invés de continuar insistindo no erro e reclamando, vamos nos adaptar à realidade! Isso só vai fazer de vocês advogados melhores e trazer bons resultados aos seus clientes! Vou citar dois exemplos de comarcas por onde passei há alguns anos.
De um lado, havia vários processos patrocinados por um famoso advogado militante por esse País de meu Deus, cujas petições mais sucintas passavam sempre das 50 laudas. É o tal que citei agora pouco. Iniciais de mais de cem laudas, impugnações de cinquenta (pra piorar, sempre impressas e digitalizadas! Assassinando o meio ambiente!). Nunca menos de cinquenta. E sempre as mesmas, enormemente repetitivas. Iguaizinhas. Uma chatice. E pouco se aproveitava das centenas de páginas, pois contavam apenas com doutrina e jurisprudência totalmente superada. E eram as mesmas pelo Estado todo. Sabem o resultado? Ficava sempre por último. Prá depois. Pegava no processo e então pensava, ‘ah deixa prá depois’. Pra quando desse tempo. Li inteira uma vez só e percebi que era tempo perdido. Nas demais só passava os olhos (an passant) por alto, basicamente vendo só o pedido e me valendo de modelos de decisões disponibilizados por outros colegas que já tinham se deparado com petições idênticas em outras comarcas. Ah, deixa eu fazer um confidencia, mas comenta não: casos assim são frequentemente motivos de piadas nos bastidores. E são ‘memu’.
De outro lado, havia o Dr. Carlos Xavier veterano com mais de cinquenta anos de experiência. A mais extensa de suas petições que vi tinha três laudas. O normal era ter apenas uma. Duas, se a causa fosse complexa. Dr. Xavier tinha confiança em seu trabalho, na capacidade do juiz e no direito da parte. Simplesmente expunha os fatos, com as explicações estritamente necessárias, e fazia o pedido. O resultado? Seus processos acabavam passando na frente, dada a facilidade e simplicidade de exame. E acho que nunca julguei improcedente um pedido dele. Era sempre tão claro, simples e direto que era até difícil de discordar.
Obviamente há causas e causas. Algumas são muito complexas e não há como explicar em dois ou três parágrafos. O parâmetro ideal é o bom senso.
Há até uma piadinha do meio jurídico que calha bem ao assunto em tela, a respeito de Mandado de Segurança: “Se o sujeito precisa de mais de dez páginas pra dizer que tem direito líquido e certo, é porque não tem direito líquido e certo!”
Sejam diretos e caprichem no que é realmente importante: Narrem com detalhes os fatos, com tudo que é importante sobre os acontecimentos. Limitem-se a apontar brevemente as consequências jurídicas. Jurisprudência é bom, desde que recente (menos de dois anos), em pequena quantidade (três tá ótimo e óia lá heim) e, preferencialmente, do próprio Tribunal ao qual está vinculado o Juiz e/ou STJ/STF. Se o seu pedido for fundamentado em Súmula, cite apenas ela, em letra tamanho vinte e negrito. Mais nada. E peça os efeitos do art. 518, § 1º do CPC e antecipação dos efeitos da tutela na sentença, para tentar evitar o efeito suspensivo da apelação.
E atentem para o mais importante: o pedido. É o pedido que vincula, limita e condiciona a prestação jurisdicional, pelo princípio da correlação. Mas é a parte onde está a maioria dos erros, das falhas, e que muitas vezes parece ter sido feita “de qualquer jeito” porque o autor já estava cansado de escrever.
Sabe aquela citação de um artigo publicado numa RT de 1982, do Min. Aldir Passarinho, do STF? Pode ter certeza que não vai ter serventia nenhuma se você narrou uma situação de descumprimento contratual que enseja indenização, mas, ao final, pede a declaração de nulidade do contrato! Sim, já vi isso acontecer!!!
O advogado é indispensável à administração da Justiça, certo? Então, citando o grande Ben Parker, tio do Peter Parker (Homem-Aranha): com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades. Colaborem com a Justiça nessa difícil tarefa de enfrentar as montanhas infindáveis de processos. Sejam diretos e objetivos. E sem maldades. Sem receitas de pamonhas, sem fotos da Sabrina Sato, etc.
Sei que as vezes é difícil escrever pouco, ainda mais quando o assunto é apaixonante. Basta ver o tamanho que ficou esse artigo...Bão perdi o sono ‘memu’. Mas o lugar de “viajar” é aqui, na produção acadêmica e literária. Não na petição.
O dia que os advogados perceberem que estão do mesmo lado dos Juízes na consecução da Justiça, e não como antagonistas, teremos um Estado de Direito pleno para todos. E só depende de nós. Eu estou aqui tentando fazer a minha parte. Façam a de vocês também.
Guaxupé, (3 da matina), 02/07/14.
Milton Biagioni Furquim