'provar' E Provar

Por Al Duarte | 20/05/2008 | Filosofia

"PROVAR" E PROVAR.

De Anselmo Caeiro

Anselmo Caeiro não é o meu nome, (o meu nome é uma máscara tão tentadora, tão cheia de tentáculos viscosos, tão sedutora – e tenho o dever de resisti-la) cunhei esse nome como quem forja o brasão do meu clã, ou um elmo para guerrear. Anselmo, porque me proponho a "provar"(o probare de St. Anselmo) e provar: argumentar e saborear, tendo como fim um objetivo um tanto egoísta; meu delectari, ou seja, minha alegria – é que "os de fora" pouco ganham com isso, a não ser que entrem também nesse labor de "provar" e provar. Caeiro, em homenagem à estranha-amizade que mantenho com Alberto Caeiro, e com o seu "não tenho filosofia, tenho sentidos". Pois, eu, como um destino, não consigo ser filósofo devido a minha sensibilidade sinestésica; o meu corpo foi uma pedra de tropeço em minha educação e formação filosófica – o que me fez escandalizar. Meus afetos afinados acima da média recusavam a submeter-se a tal formação – Ai de mim!

Eis o fato terrível do qual nunca consegui fugir – meu corpo não me deixa ter fé nos filósofos, não me deixa assentir às suas proposições, não sou hábil o bastante para ter tal e tal esquema, tão bem arquitetado e fundamentado, como uma morada segura, uma verdade sustentável – E isso não é nada confortável. É tão difícil manobrar o timão dessa minha náusea! Tive de aprender a conviver com minha inaptidão cerebral. Não sei o que se deu comigo para que assim comigo fosse, talvez alguma deficiência na minha infância, não sei. Mas, em todo castelo teórico adivinho fraturas. Talvez seja devido a essa sensibilidade excessiva de minhas vísceras, essa minha cabeça lenta para processar idéias tão abstratas; esse desequilíbrio absurdo entre a absorção instintiva e constante em meus afetos e intuições e a atenção seguida de crença na assimilação de teoremas e sistemas – arrastar o peso da imersão natural e indissolúvel no movimento lúdico de minhas vísceras com o de fora ao desempenho concentrado da assimilação dos filósofos - eis um trabalho hercúleo demais para mim! Sinto como se o peso de minhas vísceras pressionasse essa assimilação e a distorcesse monstruosamente. As entranhas vão sendo empurradas para dentro dos buracos vazios, as lacunas daquilo que não consegue ser assimilado – e o que se vai passando para dentro dessa cachola é uma coisa bem diferente, uma verdadeira aberração. É por essas e outras que jamais poderei me tornar filósofo, embora não me falte desejo.

Mas, paradoxalmente sou um que tem Fé e quer tê-la. O Credo dos Apóstolos, dado momento, conseguiu passar, não sem angústia, para esses miolos desmatematizados. Mas, acredito que essa façanha só teve êxito porque, isto digo eu, não eram conteúdos assimiláveis pelo "orgão mais próximo do céu", sequer eram direcionados a ele. Na verdade, a verdade que experimentei, o Credo só pôde ser crível porque era dirigido ao corpo inteiro, digerido pelo corpo inteiro. Até mesmo o primeiro "Creio": "Creio em Deus Pai, Todo-poderoso, Criador do Céu e da Terra" - que jamais seria assimilável para mim caso fosse "auxiliado" por notas de roda pé contendo as argumentativas "provas da existência de Deus – num dado momento, foi deglutido e saboreado por todos os meus sentidos. Ponha-se aqui que não sou nenhum spinozista; posso até experimentar em alguns instantes, e ter o meu delectari, o "Deus sive natura" de Spinoza, mas "natura" ainda seria um rosto/máscara de Deus. Milagrosamente creio na transcendência de Deus, e a sinto bem imanente, não deixo de jeito nenhum meu empirismo visceral nem me torno um niilista quando creio no Deus transcendente/imanente, como podem suspeitar alguns. Que fazer se a alguns não são dados extra-órgãos sensórios para sentir e perceber essas coisas? O que experimento, experimento neste corpo, nele mesmo, não sei pensar numa substância distinta do corpo e entranhada nele, a alma, a que tanto se referiram a Patrística e a Escolástica. Sinceramente sou um ignorante, não sei tanto onde termina a alma e começa o corpo, e definitivamente não sei onde será guardada minha consciência quando meu corpo descer a cova – Nem me inquieto como essas especulações salgadas. Há um outro "Creio" que me ampara: "Creio na ressurreição do corpo". Às vezes é mesmo de se espantar que eu possa crer numa coisa dessas, mas, em mim, no meu cérebro que pulsa no ritmo do corpo, tudo é bem harmônico apesar da desarmonia; tudo é coerente apesar de um tanto confuso. E que não me façam perguntas que não tenho competência para responder! É comum me colocarem problemas feitos do ponto de vista de toda a parafernália dos filósofos ou da ciência – como posso responder de modo satisfatório se nunca consegui entrar nesse mundo ou, nunca esse mundo conseguiu entrar mim? É como já disse, o meu "provar" só serve ao meu provar, pouco proveito tira disso um ocioso alheio a origem desse gesto de "provar", o tal nada desfrutará do meu delectari. Para que alguém entenda minha "língua estranha" é terminantemente necessário, é um a priori, que " tenha ouvidos para ouvir e olhos para ver". (Quanta gente ouve pelos ouvidos alheios e vê pelos olhos alheios! O que é ser um erudito senão isso? O que é ler e crer num livro senão isso?) Ter ouvidos e olhos próprios, singulares, desnudados das maquinarias filosóficas, das metafísicas que sufocam tudo; mais ainda é necessário, que o corpo inteiro seja ouvidos e olhos, que sejam passivos, fêmeas; e que o que eu diga seja acompanhado de um séquito de experimentações, como se fosse um música que eles dançam – mas é lógico que quando dançarem será cada um no seu passo. E há ainda a necessidade de uma brusca alteração nas probabilidades incalculáveis, pois crer numa coisa absurda dessas, como creio, é realmente impossível. Mas, não há impossíveis que não aconteçam todos os dias. "Quem tem ouvidos para ouvir que ouça"

Al, 05/2008