''CAMÕES'' SOB A PERSPECTIVA DE JOSÉ SARAMAGO

Por Roseli Gonçalves | 06/07/2009 | Literatura

DESENVOLVIMENTO

Não há como refutar a presença de Camões no ideário português, fundindo-se como elemento inexpurgável da cultura desse povo. A obra do poeta e a sua biografia, bem como a mitologia que as envolvem, transformaram-no em uma dos maiores e mais conhecidos símbolos de Portugal o que o coloca, muitas vezes ao longo da história, na condição de paradigma.

E quando se ler Saramago percebemos um Camões humano que luta para conseguir publicar uma obra, e Saramago usa de umTeatro ao mesmo tempo político e existencial, de idéias e de emoções, mostrando que a dramaturgia de José Saramago, moldada em diálogos afiados e ritmo musical, confirma sua maestria na criação de situações reveladoras das contradições éticas e sociais. O que Farei com este livro? Conta a historia do momento que Luís de Camões retorna das índias tem que negociar com a obtusa Inquisição e com a medíocre corte de Lisboa a permissão para publicar a obra maior da língua portuguesa.

A peça de teatro "Que farei com este livro?", longe de mostra um Camões endeusado , Saramago constrói um Camões indeciso e o coloca em plano de destaque na peça, aproximando e fundindo-o ao leitor. Não é desprovida de intenção a sua última fala: "Que farei com este livro? (...) Que fareis com este livro?" (p. 92). Nesse paralelismo sintático, fundem-se personagem e leitor no mesmo dilema, de que forma devem ser lidos os versos de "Os Lusiadas" e, ainda mais longe, qual leitura Saramago propõe para "Os Lusíadas" e para a sua peça? As vítimas do sistema, ou heróis saramaguianos na peça, indicam cada qual a uma opção de leitura. Ana de Sá, mãe do poeta, ouve nos versos do filho a voz do povo português, questionando as ambições de D. Sebastião. ANA DE SÁ:

Então quando vós dizeis que a Índia será uma doença de Portugal, estás declarando doutro modo aquilo que meu filho disse nas oitavas que me leu. (Que farei com este livro? p. 29)

Diogo do Couto, entusiasta dos versos camonianos pela sua beleza e erudição, sugere que, apesar de grandioso, o poema não encerra em si toda a verdade e beleza do mundo. DIOGO DO COUTO: "O mundo ai tem mais para ver e admirar". (Que farei com este livro? p. 28)

Damião de Góis vê os Lusíadas sob um prisma histórico multifacetado. DAMIAO DE GÓIS:

O que trouxestes da Índia, Luís Vaz, foi a história do antigo Portugal, mais a grande navegação. Tudo isso que acrescentastes são casos dos nossos dias de agora, deste tempo em que não sabemos para onde Portugal vai. (Que farei com este livro? p. 54)

Em seus escritos, José Saramago dessacraliza os elementos mitológicos constituídos ao longo de quatro séculos de recepção dos versos camonianos. A ele interessa a representação do sujeito nacional português e reavaliação da identidade nacional. Com a manipulação irônica dos fatos históricos, ou recriação histórica, opera-se a interrogação explícita sobre o presente e o diálogo transformador com o modelo de Camões. Nesta oscilação do discurso e da história.

Somando-se esses pontos de vista e possibilidades de recepção, Saramago propõe uma leitura na qual, aproximando o contexto histórico da produção camoniana do contemporâneo. E faz isso mostrando o perigo de uma leitura inocente ou conduzida por ideologias manipuladoras que transformaram, ao longo dos anos, Camões e a sua obra em mitos de Portugal. É exatamente essa condição de mito que Saramago vem dessacraliza quando nos dá um Camões fraco, hesitante e confuso, mas não um mártir. Um Camões humano que, como qualquer um de nós, aprende com os exemplos de outras pessoas, sofre transformações na busca pelos seus ideais e quando consegue atingir os seus objetivos se questiona: E agora, que farei?

REFERÊNCIA

SARAMAGO, José. Que Farei com este Livro. São Paulo: Companhia das letras,1998.