''A proximidade e o distanciamento: um olhar crítico sobre a cultura amazônica''
Por Virginia Liebort Nina | 16/02/2010 | Psicologia"Busquei o passado na história, vivi e
relatei o presente, no tempo e no espaço desta pesquisa. É chegado o
momento de procurar o futuro.
Indo buscá-lo, cheguei ao encontro
dos rios, de onde saem muitos igarapés, abrindo um leque e sugerindo
caminhos que podem ser percorridos.
Qual deles seguir? Procurei
alguns indícios que podiam me dar segurança: a cor da água, a largura,
a vegetação ao seu redor. No entanto, não conheço os percursos, nem a
profundidade de suas águas, e não sei o que posso encontrar.
Estou
à mercê da natureza, além de estar nas mãos do motorista do barco. O
controle da máquina depende do controle humano que, por sua vez,
depende de fatores alheios à sua vontade.
Consciente dos desafios
e dos riscos que estou correndo, optei pelo caminho mais viável e
espero encontrar nele condições para continuar navegando.
A força
dessa natureza também ensina que ler e escrever não irá modificar as
estações do ano, com as cheias e as vazantes dos rios, responsáveis
pela sobrevivência desse povo. Entretanto, a paz encontrada demonstra
que o respeito a essa cultura pode surpreender com a riqueza de seu
conhecimento.
Portanto, em meu insignificante lugar, vou aprendendo a aprender com esse mundo de homens e natureza.
Este
trabalho não pretende indicar caminhos. Apenas apresentar algumas
trilhas... antes de o rio encher novamente!" (Nina, Representando a
Educação em Pauini / AM: uma trajetória de descobertas, 2000, p.
155/156)
Trabalhando desde 1997 na região amazônica, onde
desenvolvi a pesquisa para o mestrado, até pouco tempo atrás não havia
descoberto ainda se o caminho que percorria era o 'mais viável' para
continuar navegando por entre os rios do Amazonas. Algo sempre me
inquietava, do início ao fim dos trabalhos. Nunca tive muita clareza
sobre minhas angústias e em minhas avaliações levantava várias
hipóteses, sem conseguir confirmar nenhuma.
Ao rever meu percurso
e minha dissertação de mestrado, percebo que minha visão daquela
realidade sempre esteve respaldada numa concepção errônea da história,
ou melhor, na anti-história, na crença da estagnação, do imobilismo,
pela reprodução dos fatos e dos comportamentos.
Assimilei
e internalizei uma ótica sob a qual a colonização do interior do Estado
foi determinante na criação de uma cultura sem reflexões, que submeteu
passivamente o homem à idéia de uma ordem imposta pela natureza, à qual
atribui um poder maior do que sua própria interferência. Isto é, a
visão de uma cultura como uma prisão da qual o homem amazonense
aparenta ter receio de fugir.
Essa crença foi construída e
internalizada não apenas por meio da literatura e da pesquisa por
ocasião do mestrado, mas principalmente pela observação e nas vivências
em campo.
Também foi reforçada por discursos de lideranças,
representantes políticos e sindicais, que costumam atribuir
dificuldades e obstáculos à inércia, ao propagado "comodismo" do
caboclo. "A figura do agricultor amazonense mais conhecido por
'caboclo', homem forte, corajoso e trabalhador, que (...) por contar,
algumas vezes, com a abundância oferecida pela floresta e pelos rios
assume uma atitude, injustamente interpretada, como comodismo e
displicência"(Instituto de Educação Rural - AM, s/d, p. 14).
Embora
compreendesse que pessoas inseridas em um meio ambiente muito
específico possuem representações e dinâmicas culturais diferenciadas
do 'meu mundo', não conseguia perceber em minhas relações o
distanciamento e a proximidade que efetivamente existe entre esses
'mundos'.
Pensei ter aprendido a lidar com o fato de que é do 'meu
mundo' que as racionalidades impõem o seu contexto e cobram respostas.
São pessoas como eu que elaboram pesquisas, teorias, leis,
regulamentações, detêm o poder e submetem a população a valores e
referências, enquanto cobram, ao mesmo tempo, atitudes adequadas às
transformações sociais impostas.
Parece que a proximidade enquanto
seres humanos da mesma espécie, convivendo em agrupamentos sociais
semelhantes, não nos permite quebrar o distanciamento cultural que
possibilitaria "compreender a compreensão do povo, os talvez
adormecidos códigos reflexivos de sua cultura" (Oliveira J. A. Cultura,
história e memória, Manaus: Editora Valer / Governo do Estado do
Amazonas, 2002, p. 30).
Ao contrário, nossas diferenças
induzem a criar, manter e reforçar um olhar crítico sobre a 'outra'
cultura - olhar do 'nosso mundo' - como uma cultura que aprisiona, que
não reflete e que reproduz ações, atitudes, comportamentos não
condizentes com o modelo de desenvolvimento capitalista.
Dessa
forma, encontrava na população o que parecia ser descrença nos
resultados dos trabalhos, pior ainda, descrença no futuro, e era minha
própria descrença que via refletida em suas atitudes. Por outro lado, a
estranha felicidade, que estava sempre estampada naqueles rostos, era
minha esperança e meu desafio para continuar. Compreender e preservar
aquele sentimento, muito em falta na atualidade, tornou-se minha
'causa'.
Hoje entendo a força da ideologia, dos sistemas
dominantes que nos ensinam a construir nossas próprias armadilhas,
percebo a importância de buscar e refletir constantemente sobre o
passado, pois é dessa forma que podemos compreender o presente e talvez
encontrar caminhos para o futuro.
Atualmente estou tentando
achar um novo caminho, não mais o meu caminho, mas o caminho onde os
rios se cruzam, onde é possível 'compreender a compreensão do povo'. É
preciso o silêncio das minhas referências para que eu possa 'ouvir'
esse povo. É preciso aprisionar o orgulho, construído em tantos anos de
estudo, e manter a curiosidade frente a tantas possibilidades de
conhecimento. É preciso, por fim, manter em estado de alerta minha
autocrítica, pois é fácil cair na armadilha de achar que estou fazendo
o que é melhor para o outro, difícil é perceber que na maioria das
vezes esse outro sabe o que é melhor para ele. Esteja ele onde estiver,
seja de que cultura for.
Como um importante instrumento para o
trabalho de campo, sugiro a utilização da história. Não apenas da
história política e social ensinada nas escolas, mas da outra versão da
história por meio da qual se "busca sentido para sua própria natureza
em mudança" (Thompson, P. A Voz do Passado. São Paulo : Paz e Terra,
1992, p. 21).
Páginas da história são escritas todos os dias,
provocando conflitos que geralmente significam mudanças. Mudanças pelas
quais muitas vezes somos responsáveis e que não devem ficar limitadas
aos muros das diferenças culturais. Muito menos reproduzir a ordem
estabelecida, pois as mudanças devem produzir dinâmicas
integralizadoras das culturas envolvidas. Isso, no entanto, só é
possível promovendo reflexões sobre os padrões que geralmente são
utilizados para conceituá-las: de forma linear e valorativa, como
'boas' ou 'ruins', 'desenvolvidas' ou 'atrasadas', que 'aprisionam' ou
que 'libertam'.
Todas as comunidades têm sua história,
constituída de forma coletiva. Essa história não é buscada,
reconhecida, valorizada como um espaço de interlocução e de
possibilidades de novas construções sobre a mesma base.
Nada pode
ser construído sobre o nada. Portanto, faz-se necessário um espaço de
diálogo entre o passado e o presente, revelando, nesse espaço temporal,
a intemporalidade da memória. Memória que pode, certamente, "ser um
meio de transformar tanto o conteúdo quanto a finalidade da história".
Dessa forma, é possível "devolver às pessoas que fizeram e vivenciaram
a história um lugar fundamental, mediante suas próprias palavras."
(Thompson, P. A voz do passado. São Paulo : Paz e Terra, 1992, p. 22)
Portanto,
sob a ótica da história continuo lutando pela minha 'causa'. Busco
compreender a história que constrói e é construída, transforma e é
transformada por culturas e civilizações. Pretendo assim desenvolver um
novo 'olhar' sobre um interessante cenário, composto de uma exuberante
natureza e de atores muito especiais que preservam a afetividade nas
relações humanas, como sua maior riqueza.
Possivelmente desviarei
do caminho muitas vezes, afinal em todos esses anos não aprendi ainda a
navegar por entre aqueles rios, mas com certeza estarei muito mais
atenta aos detalhes do percurso. Durante esse percurso, estarei
construindo minha história. "Essas coisas que aqui contei já se
passaram há muitos anos. Já tenho 85. Às vezes volto em meu pensamento
e tudo me parece um sonho. Custo a acreditar que faça tanto tempo e que
tudo já passou. Muitas vezes não sinto o peso da idade. O peso da
saudade é que é imenso." (Minha Vida no Seringal. Manaus : Prograf,
1996, p. 111). Assim como dona Ocirema Rabelo, também quero ter do que
sentir saudade um dia.