TEOLOGIA E RAZÃO: A UNIVERSALIDADE DA PROCLAMAÇÃO CRISTÃ E AS INCONGRUÊNCIAS CULTURAIS ADVINDAS DE PERSPECTIVAS FILOSÓFICAS

Werner Leber

I - PROBLEMA E SITUAÇÃO

Os cristãos proclamam que a mensagem cristã é universal e unívoca. O que isso significa, afinal? Em minha modesta opinião, discutir a universalidade e univocidade de Jesus Cristo é, certamente, o ponto mais crucial, nevrálgico e apaixonante também da tradição cristã. Só há cristianismo, tradição cristã, teologia cristã por causa dessa intrigante questão. Mas eu vejo um problema logo de partida. O que nos complica nem é tanto a Universalidade que os cristãos reivindicam, mas a forma que utilizamos para expressá-la. Digo que a nossa tradição filosófica é o ponto que nos complica, o nosso calcanhar de Aquiles. Já no Renascimento, Lutero quis nos livrar dessa tradição. Era tarde e, talvez, nem pudesse mesmo ter sido diferente. Lutero também sabia pouco de filosofia para poder condená-la. Desculpem-me pela afirmação. A metafísica incrustada em nossos discursos nos trai porque a pregação cristã teve de fazer uso da cultura em cuja surgiu. O cristianismo, a rigor, nada tem a ver com a metafísica grega e a visão grega de mundo, mas pôde evitá-las? Precisamos ter clareza sobre um ponto: sob o aspecto religioso, não há dúvidas da novidade que Jesus traz. Ninguém fez algo semelhante antes dele. Ninguém se autointitulou “Filho do Homem”, ninguém proclamou que o Reino de Deus é formado pelos que creem, sejam aleijados, escravos, pobres ou ricos, ninguém, antes dele, tratou as mulheres como ele as tratou. Ninguém proclamou tão claramente que o mundo está pronto para o fogo se não aceitar de modo incondicional o poder de Deus, em nome do qual ele estava aí entre nós. Ninguém proclamou como ele que seu Reino não era deste mundo. Mas o que nos complica são os contextos culturais em que essa “verdade revelada” aconteceu: o mundo helenista marcado pelo dualismo ou isso ou aquilo. “O ser é, e o não-ser, não é” do poema de Parmênides marcaria toda a nossa cultura posterior. Nietzsche chamou isso de cultura de controle, de moral dos fracos e doentes, cultura de Apolo, cultura inquisidora. Propôs o erro, a festa, a alegria como oposição. Queria uma cultura dionisíaca onde a eterna luta Falso/Verdadeiro não fosse a única norma. Esse dualismo Verdade X falso marcaria a nossa tradição de pensamento, onde, afirmar Um, exclui, necessariamente, o Outro. Sócrates, Platão e Aristóteles mantém a noção parmenídea do “ou isso”, “ou aquilo” e entre eles não se interpõe um terceiro termo: assim, “o que é, é; e o que não é, simplesmente é o não-ser; não há meio termo”. A nossa tradição científica aprofunda esse dualismo. A verdade é sempre Una. É preciso haver quem esteja certo, para que se possa proclamar quem está errado. Funciona isso com a Revelação Cristã? Qualquer um que queira tratar a proclamação evangélica cristã como ou “isso” ou “aquilo” (se é A não pode ser B), já está de antemão adotando uma metodologia errada. Ainda que a salvação proclamada e oferecida por Deus a todas as pessoas por meio da Revelação de que Jesus é o Cristo esperado, o Messias, seja válida para todas as pessoas, como querem os cristãos desde Paulo, é certo também que há várias maneiras de tratar-se dessa questão. E é justamente sob esse ponto que teólogos, filósofos, exegetas, pregadores, antropólogos, pastores e sacerdotes têm divergido. Alguns aferram-se à literalidade das palavras bíblicas como se elas por si só dessem conta do problema. Daí a afirmação que ouvi muitas vezes: “será que a Bíblia foi treaduzida corretamente”?  Como se houvesse uma forma única de captar o sentido dos escritos, ou como se as palavras fossem termos absolutos para revelar a mensagem apenas pela leitura. No que me diz respeito, rejeito essa maneira de ver as coisas. Outros, entre eles eu, estão convictos de que a mensagem cristã precisa ser interpretada em vários contextos, com diferentes enfoques para manter sua validade. Não é possível ignorar a cultura, os processos culturais dentro dos quais as religiões surgem, são estruturadas, aceitas e seguidas.

II - ESTOICOS

Quem chamou a minha atenção para os estoicos foi o Paul Tillich. Aquilo que Karl Barth tanto nele condenou é, em meu ponto de vista, a expressão mais crítica de sua teologia. Para mim, Tillich é a mais brilhante voz da teologia protestante nos últimos 100 anos. Mas foram justamente os protestantes, europeus e norte-americanos (os evangélicos, se assim ficar melhor) que condenaram Tillich pela sua ligação com a filosofia grega. Acharam-no católico, muito filósofo, ontólogo, fenomenólogo. Que problemas há nisso? Os protestantes e evangélicos preferem pastores, como Barth e Brunner. Nada contra eles, mas esses permaneceram protestantes demais e não deixaram-se tocar por outras perspectivas. Pelo contrário, viram em outras perspectivas o perigo de diluir o Cristo em várias vertentes, destruindo seu significado por completo. Não ignoremos que esse perigo existe, contudo, não vejo como seria possível evitá-lo a não ser se queira praticar uma teologia rasteira e pouco fundamentada. Os católicos também preferem pessoas como Karol Woitijla a Karl Rahner ou Bruno Forte. Teólogos brilhantes como Karl Rahner, Has Uhrs von Baltazar, Paul Tillich, Carl Braaten são no mais das vezes ignorados pela prática teológica mais recente. Hans Küng então é quase um demônio. Nos Estados Unidos, Tillich chegou a pensar em tornar-se católico em função de que haveria mais facilidade em apresentar a sua teologia e a correlação desta com a questão existencial. Se não me engano, Tillich é o único teólogo de todo o século XX a empregar o termo Logos Encarnado para Jesus Cristo, como haviam feito os teólogos da Patrística, Irineu, Orígenes, Eusébio e outros. Segundo essa percepção, não havia como os primeiros cristãos evitar o confronto com a filosofia grega. Ainda que o cristianismo nada tenha a ver com a visão grega de mundo, bem ao contrário, a radicalidade da proclamação de Jesus impede uma associação direta com a metafísica universalista dos gregos, o encontro deu-se, e não podemos negar que as consequências desse encontro ainda estão vivas. Os estoicos foram os intelectuais do mundo helênico que interpretaram a presença do Logos Universal manifestando-se no pequeno logos particular, as pessoas individualmente (o menos-ser de Platão). Para eles, nisso residia a coragem de viver, que os cristãos, mais tarde, reconhecerão como a fé incondicional e absoluta no Cristo. Assim, segundo a doutrina estoica, estar integrado com o grande Logos Universal, significava tomar parte na verdade universal. Em grande parte, também os hedonistas (aqueles do princípio do prazer) assim pensavam. Prazer é reconhecer a essência da vida, a sua transcendência, que encontra-se no Logos Universal. Saber disso, é o prazer supremo do ser humano, ou seja, reconhecer que a finitude da existência não é o fim de tudo. Como lembra Tillich, a intelectualidade dos helenos, sobretudo dos estoicos, sua coragem de viver e saber que a vida não termina na morte física, foi um ponto importante incorporado à doutrina cristã posterior e que a ajudou resistir às investidas romanas. Os cristãos já tinham, portanto, uma base construída. Se a vida não termina na morte física, como queriam os estoicos, porque sua essência está integrada ao Grande Logos ou Logos Universal, ficou aberto o caminho para que os cristãos reivindicassem a noção “Logos Universal”, dos estoicos, “Logos Encarnado”, para o Cristo. Os “Pais da Igreja” foram hábeis ao estabelecer essa ligação. 

III – REVELAÇÃO CRISTÃ E ONTOLOGIA

Como já afirmei antes, a filosofia grega não trata da revelação e nem a teologia cristã quer apresentar-se em moldes filosóficos. Paulo, como sabemos, procurou evitar os postulados gregos como, por exemplo, em Gálatas quando chama os cristãos da galácia de “Óh Descabeçados Gálatas! Quem vos enfeitiçou?”. Paulo sabia do perigo que era anunciar a proclamação cristã em solo helenista. O perigo de transformar Jesus, o Cristo, em apenas “Mais Um” era grande. Estão vendo como o Relativismo Cultural da Salvação tem raízes bem antigas? Acontece que aqui algo ocorreu. Reconhecer-se como pecador, querendo ou não, implica uma ontologia. Reconhecer o senhorio de Jesus significa reconhecer que não posso com meus pecados, significa que reconheço a minha finitude, a minha pouca coragem, a minha covardia, a minha fraqueza, a minha finitude e também a minha culpa por não crer naquele que veio me salvar. Por mim mesmo, não posso crer. Foi aqui que Bultmann inseriu o contexto da filosofia existencialista para a exegese de sua interpretação do Novo Testamento. Poucos entenderam isso, mas muitos o condenaram, como fariam com Tillich, e depois com Hiedegger, naquele texto de 1921 “Fenomenologia e Teologia”. Ontologia é reconhecimento de nossa situação existencial e a dependência dele, da infinitude, isto é, de Deus. Ora, os cristãos então reconheceram que o Cristo é o Salvador, o Redentor de todo mundo. O logos estoico agora recebe uma potencialização que só o Filho do Deus Vivo pôde trazer. O logos grego torna-se Kairós, um tempo diferenciado na história. A própria história cíclica sucumbe. Um novo tempo começou. Tillich disse que os textos bíblicos demandam uma ontologia, ainda que nada tenham diretamente a ver com a filosofia grega. Foi o que o condenou. Para muitos teólogos, Tillich promoveu uma relação descabida entre a proclamação cristã e a ontologia. Para muitos, disse eu. Para mim, não.

IV – EPISTEMOLOGIA E HISTORICISMO: DUELO IMPRODUTIVO

O lado mais complicado dessa situação está justamente na metafísica subjacente, isto é, nas concepções metafísicas implícitas nesses termos, digo melhor, na concepção de história que aparece nos termos Exclusivismo, Inclusivismo, Relativismo Cultural que engendramos para falar da Revelação e da Salvação presente no Cristo. Essas abordagens epistêmicas quero rejeitar aqui porque entendo que elas são inadequadas para tratar o assunto. Relendo o texto de Brakemeier, esse de 1990, que eu já conhecia, percebi que os temas Exclusivismo e Inclusivismo  não são novos. A Igreja Antiga já havia se deparado com eles. Relendo outro texto dele, Estudos Teológicos, 42(2): 23-47, 2002, sob o título “Fé cristã e pluralidade religiosa – onde está a verdade?” constato uma vez mais a genialidade de Tillich ao rejeitar a veia  historicista e reivindicar a fenomenologia como mais cabível para falar do Cristo, o Logos Encarnado. Onde está a verdade, diz o subtítulo do texto de Brakemeier. Aí está o dodói meus amigos. Queremos fazer da faticidade existencial de nossa fé, uma questão acadêmica nos moldes das ciências particulares: utilizando o paradigma matemático certo/errado cujo esboço final é o Discurso do Método de Descartes. Erro fatal. Isso só produzirá duelos inúteis pela verdade. E Tillich, ao rejeitar o historicismo, rejeita também a concepção de Brakemeier. Por que tanto esses dois textos de Brakemeier, como também aquela parte final da Dogmática Cristã, volume 1 (dos Editores Braaten e Jenson), discutem a questão sempre sob esse prisma: univocidade, universalidade de Jesus Cristo em sentido histórico, sem considerar a temporalidade em que o sentido da história se manifesta. Todos devem aceitar a revelação e a salvação presente no Cristo? Só há salvação por meio do Cristo, pois ninguém vai ao Pai se não por intermédio dele? O relativismo proclama que a salvação pode estar também em outras tradições e por aí vai. O que eu quero dizer é que a herança grega de nossas concepções epistemológicas não servem para discutir a questão. Os gregos tiveram sua importância na formação da tradição cristã. Mas a discussão posterior, aquela posição aristotélica medieval de onde sairão as nossas concepções epistemológicas de nossos padrões de entendimento nas ciências atuais, não fazem bem à teologia cristã. Queremos discutir problemas fenomenológicos como se fossem objetos mensuráveis. Jesus é a aceitação, a proclamação radical da finitude humana, a mais clara indicação do desespero existencial de todos nós. Daí a Salvação por ele oferecida ser Universal. O “eu estou perdido” de Isaías, fica mais radical na pregação de Jesus. As pessoas reconheceram que ele pelo seu jeito de ser é a verdade, o fundamento ontológico de nosso existir. Nem mesmo Nietzsche, que quis negar a essência dessa ontologia, pôde faze-lo. Nietzsche só pôde ser anti-cristão em termos cristãos. A ontologia é um círculo de ferro do qual nem mesmo os “ateus” podem escapar. Jesus, o Cristo, não veio pregar moralismo, mas a radical separação entre o ser humano e Deus. Isso é uma ontologia, meus caros colegas. Não importa o quanto gostem da filosofia ou não. Não importa o quanto acham descabidas minhas colocações. Não há como negar esse abismo radical entre o essencial e o existencial. Nós clamamos por Deus, sabemos que ele é nossa fortaleza, nosso refúgio e nossa salvação. Isso é universal. Todos os humanos, seja de que cultura forem, reconhecem isso. O fenômeno humano ultrapassa a história. Até a biologia nos define como Homo Sapiens Sapiens, quer dizer “O homem que sabe de seu saber”. E o que ele sabe? Que está perdido, que não sabe tudo, que depende de Deus. Ainda que viva alegre e feliz, em última instância não ignora a sua finitude. O saber de sua morte física é o indício mais claro disso. O pecado não é só falta moral, mas sobretudo uma ontologia. O pecado indica claramente que não posso salvar-me, a não ser que Deus o faça. O Cristo é a resposta a essa situação e é válida a todas as pessoas à medida que ninguém, absolutamente ninguém, independentemente de tradição religiosa a que pertencer, pode vencer seu desespero existencial, senão por meio do Logos Encarnado, aquele que toma sobre si o fosso existencial entre humanidade e Deus e diz que Deus agora chegou mais perto. O “reino está próximo”, diz o Evangelho de Marcos. Essa é a universalidade de Deus presente na pregação e ação de Jesus. O reino está mais próximo, porque Deus tomou a iniciativa de se aproximar de nós. Para mim, não há como discutir exclusivismo, inclusivismo e relativismo cultural se não colocarmos as coisas na situação de uma ontologia. Afinal, proclamar a existência de Deus é uma afirmação ontológica. A filosofia grega, portanto, em meu ponto de vista nos forneceu duas perspectivas: uma ontológica, que é a que eu defendo; e a epistemológica, mais próxima de Aristóteles, da Cosmologia de Aquino, que nos conduz a um beco sem saída: ou Cristo é Exclusivo ou é Inclusivo ou Cultural Relativo. Ele pode ser os três ou nenhum deles. O que importa mesmo é o reconhecimento da finitude. Em Jesus, a noção de pecado é aprofundada. Sai-se da configuração moral do profetismo do AT (claro, nem todos profetas viam o pecado apenas como falta moral) e chega-se ao abismo que nos separa do fundamento de nossa existência. Não importa o quanto creiamos nisso. Aqui concordo com Brakemeier. É isso que dá ao Cristo o caráter de Salvador Universal. Se muitas propostas foram apresentadas, apresento aqui a minha: considero que uma ontologia existencial como a correlação de Tillich propõe tem mais elementos para tratar da Universalidade e Univocidade de Cristo que esses duelos epistemológicos e historicistas invocam. Hegel, certamente, é uma voz brilhante, mas o historicismo de sua filosofia dialética o derrubou. A razão não pode chegar ao Absoluto, mas ela só pode reconhecer que o Absoluto, só por ele mesmo, pode chegar ao ser humano. Estranho, mas aqui Barth diria o mesmo que Tillich. Por essa razão, em minha visão certamente destoante da maioria da de vocês, vejo que filósofos como Gianni Vattimo, Heidegger, Derrida, Hebeche, Caputo entre outos, tiveram mais ousadia para abordar a questão cristológica por um viés que condena o historicismo como o caminho adequado. O sentido da história não é histórico; é fenômeno, doação de sentido que nada tem a ver com questões históricas. Ao rejeitar a metafísica (da história), esses filósofos não estão proclamando que filosofia e teologia não se relacionam, mas que a segunda nem é mesmo possível sem a primeira. Ai, agora nos pegaram! Não se trata de inverter o legado medieval, segundo o qual a filosofia (conhecimento natural) era dependente da teologia (conhecimento sobrenatural). Mas a afirmação de que as questões racionais se põem como essenciais para a prática teológica. Sem elas não há teologia. Sem a estrutura do logos razão, não surge a Estrutura do Logos Encarnado, a Revelação Incondicional de Deus, a Salvação total e definitiva da humanidade. Isso não depende de nós. Aqui filósofos e teólogos já não podem enfrentar-se como no passado. Aqui o ateísmo fácil de nossas modas científicas também sucumbem. Se Aristóteles disse que éramos animais políticos, agora podemos dizer que somos animais religiosamente transcendentais. Não importa o quanto o mundo, as pessoas crêem nisso. Essa é uma situação dada. O Cristo veio não por escolha nossa, mas por razões que ainda desconhecemos na totalidade. Apenas percebemos o quanto isso nos toca e identifica. Estamos jogados nela. Quem faz do Cristo a sua prática, sem se importar tanto com a “verdade epistemológica” (aquela do Exclusivismo/Inclusivismo e outras formas), sabe que chegou à porta da salvação e pede socorro. O universalismo do Cristo não depende de aceitação somente. Essa questão é menor. O universalismo, questão que aqui em meu ponto de vista transformei em problema ontológico, é universal à medida que não ser humano que o possa vencer apenas por si mesmo. Isso não é dogmatismo barato. É o reconhecimento daquilo que cristão denominam pecado, e filósofos, alienação existencial.

Bem, meu amigos, eu tratei do tema por um viés. Claro, há outros. O exclusivismo, certamente, é o mais dogmático e aquele que também mais repudio. Mas uma ontologia como a que defendi não faz apologia do exclusivismo à medida que aponta a radical separação (o pecado como ontologia) do fundamento? Afirmar que o Cristo é a porta para a superação do fosso entre existência e essência, não é o mesmo que afirmar o tacanho Exclusivismo por outras vias? Faço como Derrida. Dou minhas parcas palavras como simples palavras e deixo que as pessoas inteligentes descubram se elas têm algo de útil ou não.