SEXUALIDADE E GÊNERO 

 

Werner Schrör Leber [1]

 

RESUMO

Este texto aborda sucintamente uma das questões mais discutidas, problemáticas e desafiadoras de nossos tempos, qual seja, a relação entre gênero e sexualidade. Ao contrário do que se supõe rotineiramente, tanto a sexualidade como o gênero são construções sociais e não meramente fenômenos naturais ou biológicos. É evidente que a sexualidade implica, de algum modo, questões biológicas. Mas a questão biológica da sexualidade está presente também em outros animais. O objetivo do presente artigo é apresentar a sexualidade humana a partir dos papéis que a ela são associados em termos culturais. São desses papéis que, de um modo básico e geral, surgem as temáticas a que se denomina gênero. Disso se segue, pois, que gênero é uma interpretação dos papéis sexuais, sociais e políticos atribuídos a cada um dos sexos humanos. Gênero tem, portanto, também um vínculo com o poder atribuído a cada um dos papéis sociais que o Feminino e o Masculino representam. Não obstante isso, a relação entre gênero e sexualidade tem também uma ligação com o problema familiar. Como se sabe, a família também sofreu mutações históricas e culturais que têm implicações diretas sobre o problema da sexualidade e do gênero. 

[Palavras Chave: Gênero; Família; Sexualidade; Cultura]

 

1 INTRODUÇÃO

 

Sexualidade e gênero devem ser interpretados a partir de uma relação cultural. Em tese, é isso que o pensador e filósofo francês, Michel Foucault[2], em sua importante obra História da Sexualidade, em parte publicada postumamente, nos apresenta (MARCONDES, 2007). O problema entre gênero, portanto, precisa ser visto de modo específico em cada sistema cultural. No nosso caso, trata-se do modelo cultural ocidental, onde se faz fortemente presente a cultura judaico-cristã. A moralidade judaico-cristã, presente no substrato da cultura que chamamos ocidental, é o ponto de partida e de chegada para uma interpretação da questão entre gênero e sexualidade. Primeiramente cabe salientar que por moralidade compreende-se “[....] um conjunto de valores e regras de ação propostas aos indivíduos e aos grupos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos, como podem ser a família, as instituições educativas, as igrejas etc” (FOUCAULT, Apud., MARCONDES, op. cit, p. 147). Os temas que a sexualidade e o gênero encetam são tão focais que mesmo no campo religioso, fenomenológico e filosófico-existencial eles têm lugar assegurado. Esse é o caso, por exemplo, do teólogo e filósofo teuto-americano Paul Tillich (2004) que, em uma de suas obras menos conhecidas, aborda o problema da ontologia e do amor em perspectivas culturais que desembocam nas questões de poder e gênero.[3] No campo educacional não só a família interfere, mas sobretudo a escola com seu sistema de valores. A instituição educacional gradativamente vem tomando o lugar das famílias no que tange à educação sexual. A escola desempenha um papel social, qual seja o de preparar as crianças e jovens para os desafios sociais. A escola funciona, assim, como mediadora entre indivíduo e sociedade (SILVA, 2007). Observa-se que “[....] a escola ensina técnicas, valores e ideais, e cada vez mais substitui as famílias na orientação sexual, profissional, ou seja, a vida como um todo” (Op. cit., p. 55).

 

2 GÊNERO, NATUREZA E CULTURA

 

A sexualidade humana, tratada estritamente do ponto de vista biológico e físico, em nada difere da de outros animais. Ela é simplesmente um mecanismo da natureza através do qual a própria natureza se encarrega de perpetuar as espécies. O princípio do prazer torna-se um meio através do qual a natureza, por assim dizer, nos usa para seus desígnios (ARANHA & MARTINS, 1996). Mas a sexualidade não pode ficar reduzida a uma visão fisicalista. Como lembra Mondin (2003, p. 28), “[...] o corpo do homem não pode ser reduzido a uma coisa”. E pelo fato de nosso corpo não ser uma mera “coisa” é que a dimensão cultural, espiritual, antropológica e transcendental se torna o ponto primeiro da questão relativa à sexualidade ao gênero. Não será possível e nem necessário percorrer todos os caminhos que o ser humano trilhou até tornar-se esse animal biologicamente tão semelhante, mas culturalmente tão diferente de todos os outros seres vivos que se encontram com ele em uma relação de vida e morte neste planeta. Mas o que importa é perceber que o ser humano é um animal produtor de cultura e receptor de cultura. O ser humano  é um ser simbólico que mora em seus símbolos (MONDIN, 2003). O ser humano está posto de tal modo no mundo que “mundo” não é só o espaço que ele habita em termos físicos e geográficos, mas o mundo é o espaço que o ser humano habita em termos culturais. A noção de espaço no ser humano transcende a mera noção física. Disso se segue, portanto, que tanto a sexualidade e o gênero são criações culturais, mediadas por interpretações simbólico-morais, que se manifestam, por sua vez, em uma relação de poder entre o feminino e o masculino. Como lembra a psicóloga “o conceito de gênero é baseado nas relações sociais desiguais de poder entre homens e mulheres” (SILVA, 2007, p. 74). Mas é preciso dizer ainda mais. A sexualidade e o gênero não possuem uma forma fixa, variando de cultura para cultura. Também o que se entende por “poder” varia de uma cultura a outra. Como sabemos, as sociedades ocidentais têm valores muitos diferentes das orientais, seja em função da religião judaico-cristã ou de outros elementos simbólicos que caracterizam cada uma dessas culturas. O ser humano compensa a sua pouca aptidão instintiva com a sua cultura, com a sua criatividade sobre o problema de gênero e sexual, chamado também de “corporeidade” na visão de antropólogos e filósofos (MONDIN, 2003, p. 32). A visão dos papéis relativos ao gênero certamente é muito variada se a compararmos, por exemplo, à visão que brasileiros e determinados povos africanos têm sobre o sexo, namoro, família e casamento. O que pode ser visto como imposição, machismo, androgenia aqui nos trópicos ocidentalizados não é necessariamente visto assim por grupos específicos de africanos ou de aborígines australianos. As diferentes culturas nos permitem dizer que “a distinção entre o homem e o animal se dá pelo trabalho e pela linguagem, por meio dos quais o homem se realiza como ser cultural, superando o mundo da pura natureza” (ARANAHA & MARTINS, 1996, p. 324).

 

3 GÊNERO, CULTURA E SEXUALIDADE

 

As sociedades são hoje planetárias, globalizadas, interligadas por uma extensa rede de informações, mas apesar disso muito diferentes entre si do ponto de vista cultural. Integração informacional não implica, necessariamente, uma anulação das diferenças culturais e morais. Como nos lembra a autora: “A natureza problemática da sexualidade reside no fato de qualquer comportamento sexual tem, na sociedade, seu ponto de partida e de chegada, sexo sempre foi e será, acima de tudo, uma questão social” (SILVA, 2007, p. 71). Como ficou dito na parte introdutória deste escrito, as famílias, as igrejas, as escolas e seus sistemas de ensino ocupam hoje espaços muito diferentes daqueles de poucas décadas atrás. Essas mudanças grandiosas, se boas ou más, vai depender da perspectiva da análise. Em nossa cultura ocidentalizada, evidentemente, elas foram vistas como transformações positivas à medida que representam a luta histórica das mulheres na diminuição ou esvaziamento do poder “natural” dos homens sobre as mulheres. Todavia, a validade ético-moral, isto é, análise valorativa das mudanças não é o nosso foco agora. Esta, antes, já é parte da problemática que envolve o gênero e a sexualidade. O que importa é que a visão da sexualidade e do gênero tem uma relação estreita com os fatores culturais, morais e sociais dentro dos quais se convive. E sempre há de se conviver em contexto mediado por mim (por um eu) e pelo outro. Disso decorrem as proibições, as restrições sociais e os papéis de cada sexo.

 

3.1 CULTURA, PROIBIÇÃO E CONTROLE

 

Em todas as sociedades conhecidas, desde que o ser humano tornou-se um animal com tele-encéfalo altamente desenvolvido, ainda a milhões de anos, a cultura sempre se deu sob a égide da lei moral, tanto para a permissão como para a proibição. As proibições são responsáveis pelas regras que procuram controlar os impulsos sexuais, seus excessos, sua agressividade. A sexualidade é extremamente forte em nós, constituindo-se em impulsos vitais. É justamente por isso que todas as culturas conhecidas atribuem papéis aos sexos, papéis esses que são conhecidos como gênero. Assim, sempre houve atividades específicas para pessoas do sexo feminino e do sexo masculino. As leis culturais, os princípios ético-morais que norteiam as permissões e as proibições sexuais se apresentam de forma ambígua para ambos os sexos. Para Freud, somos movidos pela libido, uma espécie de força primária que nos guia, isto é, “[...] a energia de natureza sexual orientada pelo princípio do prazer [...]. O contato com as normas sociais determina, no entanto, a formação do superego, que interioriza as forças inibidoras do mundo exterior” (ARANAHA & MARTINS, 1996, p. 324). Ainda na esteira na compreensão freudiana da sexualidade cabe a seguinte afirmação:

 

A cultura se torna possível, portanto, pelo controle do desejo, e uma dessas formas é a sublimação, pela qual a força primária da libido é desviada para um alvo não-sexual caracterizado por atividades valorizadas socialmente. Assim, Freud considera como formas sublimadas da utilização da libido as diversas atividades como o trabalho, o jogo, a investigação intelectual, a produção artística, entre outras (Op. cit., p. 324).

 

É desses papéis atribuídos aos sexos que surge a questão de gênero como uma relação de poder entre os sexos. É inegável a influência da cultura greco-romana e judaico-cristã na dita cultura ocidental. A cultura ocidental, grosso modo, é o cruzamento das perspectivas políticas greco-romanas e das perspectivas religiosas judaico-cristãs. A influência do platonismo na cultura cristã, por exemplo, leva Santo Agostinho a ver a sexualidade apenas como uma instância ligada à reprodução. Grande parte do papel submisso atribuído à mulher vem da tradição platônica presente no cristianismo.

 

3.2 MUDANÇAS DE PARADIGMAS

 

O capitalismo moderno que se institui a partir da Revolução Industrial do século XVIII, passa a exercer um controle sobre a sexualidade porque precisava de mão-de-obra disponível para atender as demandas do capital. Pode-se falar que o capitalismo buscou o adestramento do corpo em função do rendimento e da produtividade industrial. Também aqui o gênero esteve presente. À mulher coube o papel de “boa mãe”, de “rainha do lar”. Esse é o papel da fêmea, ser doce, meiga e cuidar da prole. Daí advém, preconceituosamente, a expressão “sexo frágil” atribuído à feminilidade. Aos “machos” cabe o papel de “fortes”, “rudes”, “competentes” que o adestramento industrial exige. Disso segue uma dupla moral, definidas assim pelas filósofas:

O pai é o provedor da casa, aquele que garante a subsistência da família, e seu espaço é público (o trabalho e a política). A mulher, “protegida” pelo homem, desempenha o papel biológico que lhe é destinado e fica confinada ao lar. A consequência disso é a chamada dupla moral, isto é, a existência de uma moral para a mulher e outra para o homem. Para que a mulher possa desempenhar o papel de mãe, a educação da menina é orientada como se ela fosse assexuada. Sua vida sexual deve começar apenas no casamento e, muitas vezes, sem os “prazeres da luxúria”. A virgindade e valorizada, o adultério punido (até bem pouco tempo até no Código Penal) e sempre os homens aceitaram com naturalidade as justificativas de “matar para lavar a honra”. [...] Também é ambíguo o papel da prostituta: condenada e ridicularizada é, no entanto, o contraponto da virgindade “das moças de boa família” (ARANHA & MARTINS, 1996, p. 326-327).[4]

A passagem citada acima é sintomática para os nossos dias. De uma determinada forma, aqueles papéis sexuais permanecem presentes. Todavia, de outra forma, houve mudanças grandes nos últimos anos. A família encontra-se hoje em situação diferente daquela de 30, 40 ou mais anos atrás. O capitalismo também se modificou, criou exigências que não existiam nas décadas passadas. Com isso os papéis sexuais tradicionais foram também modificados. Não houve necessariamente “melhoras”, mas avanços que podem ser melhores para um dos sexos em determinadas perspectiva, ou ainda piores do que já eram para o outro. Os homens, por exemplo, já não são mais os provedores do lar de forma exclusiva. Essa tarefa é compartilhada com a mulher, com as mães, o que exige do homem um espaço maior “[...] na educação dos filhos e no espaço privado” (SILVA, 2007, p. 51). É inegável que os “machos” perderam poder aqui. Em contrapartida, o Novo Código Civil brasileiro atribuiu tarefas iguais a homens e mulheres tanto no provento como na educação, quando da separação judicial ou do divórcio. Essa parece ser uma inovação positiva. No Código Antigo, apenas a mulher tinha esse direito. Salvo raríssimas exceções, o “pátrio poder” sobre os filhos ficavam sempre com as mulheres. Uma outra questão importante foi a entrada em vigor, em 1990, da Lei 8089, mais conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A referida Lei pautou direitos e obrigações de jovens adolescentes e crianças que antes ficavam restritas às formas subjetivas das famílias. Entre as muitas obrigações que essa Lei estabelece está a obrigatoriedade de matricular os filhos e acompanhar, diga-se, ser corresponsável com a escola, pela educação e aprendizagem da criança nos termos da Lei, podendo ser penalizada caso não a cumpra. A família passa a ter um papel educativo oficial, o que antes de dava de modo subjetivo e não podia ser fiscalizado pelas autoridades (SILVA, 2007). Parece que o grande avanço da questão de gênero encontra-se na interpretação da homossexualidade. A homossexualidade sempre esteve presente em todas as gerações e sempre foi problemática e discriminada. Em quase a totalidade das sociedades conhecidas, o homossexualismo sempre foi visto como desvio de personalidade, como doença. Esse é outro tema complexo sobre o qual há muitas pesquisas, estudos, muitas vezes controversos e polêmicos. Tratá-la como opção sexual, no entanto, e não mais como doença constitui um avanço significativo em relação às décadas passadas.

 

4 CONCLUSÃO

 

A nova sociedade é constituída pela família nuclear e os papéis do homem como único provedor da casa estão enfraquecidos. Ambos os sexos, hoje, desempenham o papel duplo de estar na vida pública e privada. A “exclusividade” de ambos os sexos sobre espaços socialmente definidos como “próprios” e adequados, está descartada. Não há mulher exclusivamente “do lar” como também não há homens “exclusivamente” do espaço público. A economia moderna exige homens e mulheres diferentes, mais dinâmicos e abertos às mudanças em curso. O problema relativo ao gênero instaurou uma crise, sobretudo, na educação dos meninos. O papel do “macho forte” desapareceu e as escolas, as famílias, a sociedade como um todo, têm dificuldades em encontrar um novo paradigma para o gênero masculino. Essa dever ser uma luta “coletiva” de homens e mulheres, professoras e professoras, pais e mães. Entretanto, não nos enganemos. A sexualidade atribui papéis naturais distintos aos sexos. Isso não precisa significar uma relação de “superioridade” do masculino sobre o feminino. Mas também não pode significar uma anulação das diferenças. Ser diferente não implica em “melhor e pior”, em “fraco e forte”, mas apenas diferentes. Ser diferente é uma questão qualitativa e não de grau, traduzidos sempre como “superioridade” e “inferioridade” na cultura machista. Os homens e as mulheres são diferentes e essa é grandeza de toda questão sexual. Dela resultaram as discrepâncias, os papéis sexuais de submissão da mulher ao homem agora justamente denunciados e não mais aceitos como “naturais”. Contudo, só a liberdade, a criatividade cultural, o exercício pleno de nossa subjetividade pode apontar caminhos que até agora permanecem apenas esboços. Verifica-se ainda que há muito por fazer. Estudos recentes apontam que os salários pagos a mulheres em cargos equivalentes àqueles ocupados por homens, são, em média, 30% menores. Os ranços machistas incrustados na nossa cultura ainda perduram em grande número de situações. O século XIX chegou com a mulher mais forte, mais apta, mais preparada. Isso é fruto de sua luta histórica contra a opressão machista. São os homens que agora não tem mais um papel sexual “naturalmente dado”. Ainda há muito a ser feito, mas já houve avanços significativos.

 

5 REFERÊNCIAS

ARANHA, Maria de Arruda & MARTINS, Maria Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1996.

MARCONDES, Danilo. Textos básicos de ética: de Platão a Foucault. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.

MONDIN, Battista. O homem, quem é ele? Elementos de antropologia filosófica. 11ª edição. São Paulo: Paulus, 2003.

SILVA, Daniela Regina. Psicologia geral e do desenvolvimento. Indaial: Editora da Uniasselvi, 2007. (NEAD, Caderno de Estudos).

TILLICH, Paul. Amor, poder e justiça: análises ontológicas e aplicações éticas. São Paulo: Novo Século, 2004.

 

 

 

[1] O autor é Bacharel em Teologia, licenciado em Língua Portuguesa e em Filosofia. Possui também Pós-graduação Stricto Sensu em nível de Mestrado em Filosofia. É professor de filosofia na Educação Pública do Estado de Santa Catarina e também professor do Sistema Positivo de Ensino, em Joinville, SC.

[2] Michel Foucault (1926-1984). Trata-se de um dos mais expressivos pensadores de todo o século XX. Escreveu inúmeras obras das quais se destacam a sua monumental História da Loucura e História da Sexualidade. Desta segunda, uma parte só veio a público depois da morte do filósofo.

[3] No caso citado, trata-se de Amor, Poder e Justiça, por exemplo, as páginas 84-95. Tillich era alemão, mas exilou-se nos Estados Unidos em função da perseguição nazista, em 1993. A mencionada obra é uma compilação de palestras que Tillich proferiu Estados Unidos na década de 50.

[4] As partes destacadas com aspas e colchetes constam assim mesmo no texto citado.