O LVRO X: A VERDADE DA ALMA E O ATAQUE A POETAS E IMITADORES

O Livro X é o último livro de A REPÚBLICA, do pensador grego antigo Platão (427-347 a.C.). Platão quer a verdade, o verdadeiro, aquilo que é puro, e que não se confunde com os sentidos mundanos, precários e falhos da existência. A alma, que está em nós como essência, é o ponto que liga esta à eternidade de onde veio. A educação, conforme Platão, consiste em fazer com que se aprenda a buscar a profundidade de nossa alma (logos) e entender como ela se conecta às essências verdadeiras que estão na Ideia (o MUndo Ideal). Toda República é um texto sobre a justiça e os melhores valores para se construir um governo justo.

Verdade, para Platão, é a contemplação da perfeição que surge quando alma enxerga para além do trivial e dos sentidos. A sabedoria no sentido platônico implica reconhecer a verdade que está fora de nós, mas que dá sentido àquilo que nós somos. “Fora de nós” significa fora dos sentidos, fora da imadiatez da visão audição....A verdade é uma Essência com vida própria, e que não depende de nossas interpretações filosóficas. Como lembra o comentador, “O Livro X contém uma refutação do ateísmo baseada, em última análise, no fato de a alma existir antes do corpo”. [1]A filosofia é o exercício da contemplação e da descoberta da verdade que se encontra no mundo das Essências. Sábio é quem chega à iluminação e percebe que o mundo dos sentidos e da razão humana são enganadores porque fazem o ser humano crer que ele próprio é autor de seu destino e criador de suas imaginações. Perceber que somos apenas cópias falhas de um outro mundo – o mundo real ou mundo das Essências – é o centro da filosofia deste pensador ateniense. Nesse sentido, muitos consideram que a filosofia de Platão assemelha-se a uma religião, pois não busca outra coisa do que reconhecer que a transcendência fundamenta todo o ser (Ver narrativa de Er, aquele que ressuscita e conta como funciona a migração das almas – Útima parte do livro X). Igual uma religião, a filosofia platônica pressupõe o reconhecimento da Autoridade (Idéia, Essência) – de onde tudo provém – e a recordação ou o reconhecimento de há algo além de nós – algo que não é apenas uma imaginação e subjetividade, mas objetivamente existente. Cada nova descoberta da razão humana é apenas uma recordação do que já está nas Essências. Segundo seus pressupostos, não existe propriamente algo com a imaginação criadora. Por isso condena a arte e a poesia. Elas produzem impressões falsas para a educação das pessoas. Pois as pessoas só são capazes de imaginar algo que já lhes está dado a priori. Basta fazer o exercício da contemplação. Assim, o conhecimento está em nós como uma revelação daquilo que já existe como Essência, e o processo de conhecimento nada mais é do olhar para o interior da própria pessoa e perceber os valores eternos e prefeitos já dados, sem a necessidade da intervenção do ser humano. Os valores morais, para Platão, não são circunstanciais e conseqüências de nossas ações sociais, relacionais e de convivência, como a filosofia moral os entenderia atualmente. São Essências verdadeiras – independentemente de nossas vontades ou do modelo cultural do contexto em que se vive. De modo que quando descobrimos algo, apenas estamos desvendando, reconhecendo, vendo, percebendo aquilo que já sempre existiu, a eternidade que sustenta todas as coisas que vemos. Imaginação e reflexão, para o filósofo de Atenas, é recordação e contemplação e elevação da alma para o lugar de onde ela veio.

O livro X, grosso modo, possui 3 partes, mais ou menos distintas, mas que se interligam com a alma e a verdade essencial, que Platão defende para o Governo da Cidade Justa. A primeira parte é formada por um diálogo entre Sócrates e Glauco, os atores principais desse texto platônico, e constitui mais da metade do livro X. Nesse diálogo Platão põe-se a atacar a arte da imitação (Mímese) e também poetas. A segunda parte, conforme entendo, situa-se em elaborar uma maneira de falar dos valores ideais e de como a alma pode se perder. E a última, constitui o desfecho do livro X, em que Platão, valendo-se da narrativa de uma pessoa que esteve morta por dez dias, propõe o que passaria com a alma quando o corpo morre. Nesse caso, trata-se de uma pessoa, um armênio chamado Er, que esteve por vários dias entre os mortos de uma grande batalha. Voltando à vida, Er narrou as peripécias da alma, sua migração, seu sofrimento, sua salvação ou condenação.

O livro X de A República é um livro estranho para quem está acostumado com a filosofia moderna e também com a cultura secular de nossos dias. É preciso se afastar do mundo secularizado e de nossas concepções científicas modernas. Se não o fizermos, corremos o risco de não entender Platão. Os antigos ainda não conheciam a moderna separação entre religião e ciência praticada entre nós hoje. A separação entre filosofia e teologia é algo que só se deu no Renascimento europeu. Estão certos, assim entendo, todos aqueles e aquelas que consideram Sócrates, Platão e Aristóteles, também teólogos. Não teria sido por isso que a teologia cristã valeu-se tanto deles? O que seria de Agostinho sem Platão e de Tomás de Aquino sem Aristóteles?

O que nos diz Platão no Livro X de A República? Muitas coisas, mas, sobretudo, duas: a) que o governo ideal e a boa educação precisam conhecer o que a alma nos revela; b) que a arte praticada por artistas e poetas não ajuda para a edificação de uma cidade justa e ideal. Por que a Mímese (arte de imitar; daí vem a palavra mímica) deve ser condenada? As coisas que vemos são cópias de ideias, mas os sentidos não sabem disso. Só alma o saberá se for educada para isso. Platão quer uma educação ideal, ou seja, uma educação que se sirva dos valores que estão nas essências eternas. Para Platão, ao homem não cabe a criação de valores novos, mas encontrar os valores que alma perdeu, quando veio para o mundo existencial. Mas por que a alma veio para esse mundo então? Platão não é claro sobre isso. Pelo menos, não no livro X. (Mas eu sei meus alunos...eu sei...Direi em aula). A imitação só causa mais confusão à medida que não ensina a buscar fundamento algum e imitar o que já é cópia. Desse modo, a alma não aprende o valor verdadeiro e nem aprende a buscar na razão, na alma, os fundamentos de toda a existência.  Desse mesmo modo, os poetas valem-se das coisas existências, percebidas pelos sentidos. Quando narram as grandes epopéias, o fazem sob o crivo do visível, dos sentidos e defendem valores medíocres. Os verdadeiros valores da Cidade Justa não estão na vontade e no desejo humano, mas na capacidade de alma elevar-se e ver que a justiça e bondade, que deve ser o centro do governo de Atenas, não está nas coisas e sim na alma humana quando ela medida profundamente sobre o sentido de tudo que há. Só a razão pode nos fazer ver que o mundo justo existe longe de nós. A justiça e a bondade não são valores deduzidos das práticas da existência. O que os homens acham bom e justo, varia de acordo com o lugar, a região e a cultura. Platão quer valores que ultrapassem a relatividade histórica de lugar e momento cultural. Os valores ideias de cidade justa precisam ser encontrados na alma e suas manifestações. Todo o livro X é uma análise da função da alma como fundamento do que é eterno, duradouro em contraposição à existência, sempre cambaleante e precária.

O OUTRO LADO DA VIDA: A NARRAÇÃO DE ER – O ARMÊNIO

A narrativa do armênio, Er, funciona em Platão como uma espécie de doutrinação da alma para o exercício do bom governo. Porém, agora Platão acrescenta os castigos das almas que não se portaram dignamente. As três virgens lá citadas funcionam como julgadora das almas. Platão, conforme alguns comentadores, era fortemente influenciado por narrativas míticas. De que Mito tirou  esses aspectos, permanece controverso. No Livro X, o julgamento das almas narradas por Er dá-se justamente entre o espaço entre o firmamento e a terra. Para o interior da terra vão as almas que erraram, que estão cheias de culpa. Para o alto no firmamento vão as almas que corretamente se comportaram. Acreditar no que vê causa destruição da alma. A alma fica viciada e não consegue livrar-se do corpo que a aprisiona. A inveja, a culpa, a competição são algumas das coisas que tornam a alma doente e incapaz de ver as coisas para além dos sentidos. A alma humana tem três partes: irascível, concupiscível e racional. Apenas a última importa. As duas primeiras são as mais utilizados, porém as menos importantes.  Por isso o homem é medíocre, pequeno e covarde, diz nos Platão.  Sair das aparências e dedicar-se ao pensamento meditativo é o desejável. Enxergar muito para além do óbvio, dos sentidos, constitui o fundamento e os valores do governo ideal.

O que aqui está, prezados leitores, é apenas um resumo bem primário. Não torna indispensável a leitura do texto original. Penso que um resumo ajuda, mas não pode fazer o que só o estudante mesmo pode fazer: ler os textos e aperceber-se de como o autor engendra seu discurso em torno dos valores eternos que a alma deve buscar. Aperceber-se também como o mundo dos poetas, artistas e governos mundanos, ainda que bem intencionados, só atrapalham a educação e formação do homem ideal. Os artistas e poetas, à medida que só confiam no que vêem, afastam as pessoas dos ensinamentos mais importantes. E como já dissemos “ver”, em Platão, é bem mais do que um nervo ótico em bom estado é capaz. Ver é ser sábio, ter capacidade de intuir as coisas de cujas os sentidos frequentemente nos afastam.

REFERÊNCIA

 PLATÃO. A República. Tradução de Leonel Villandro. Edição Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014. (Clube do Livro). 

[1]. PLATÃO. Fedro. São Paulo: Martin Claret, 2007.  Comentário de Paul Tannery, A vida, a obra e a doutrina de Platão, p. 11-46. A citação é da página 26.