RESENHA DE LEITURA: LIVRO VII DE A REPÚBLICA DE PLATÃO, DA SEGUINTE TRADUÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA:

PLATÃO. A República. Tradução de Heloisa da Graça Burati. São Paulo: Editora Riedeel, 2005, p. 187-212. (Coleção: Biblioteca Clássica).[1] 

Werner S. Leber[2] 

O LIVRO VII DE A REPÚBLICA DE PLATÃO, TAMBÉM DENOMINADO ALEGORIA DA CAVERNA  

Desde a morte de Sócrates, Platão andava descontente como o governo dos “homens”. Esses são sempre precários e fadados ao fracasso por carecerem de eternidade essencial. Foi por isso que mataram Sócrates; não entenderam a sua mensagem. O governo dos “homens” baseia-se no que é “mau”. Precisa-se de um governo cujos valores sejam divinos e cujos governantes sejam sábios. É na sua “República Ideal” que Platão formula a sua noção de Governo Ideal, por meio de uma comparação, que denominamos ALEGORIA DA CAVERNA.[3]

O mundo vivido, os sentidos (olfato, visão e audição), o espaço existencial, é comparado por Platão a uma caverna, uma espécie de habitação subterrânea, onde as pessoas vivem desde a sua infância.

É preciso observar que Platão (é Sócrates quem fala) inicia o diálogo dizendo a Glauco “[...] imagina a nossa natureza, relativamente à educação ou à sua falta..[...]”. Observe primeiramente que isso é, para Platão, fundamental. O governo ideal, por ele proposto, terá uma relação direta com o ensino. Essa noção é elementar.

Platão formula a seguinte hipótese: se um prisioneiro fosse levado forçosamente à luz que está fora da caverna, ele lutaria para ficar onde está pois julga a caverna o lugar ideal para viver. Não pode haver outro lugar para quem só conhece a caverna! Mas se o mantivessem forçosamente fora da Caverna (na luz) por algum tempo, acostumar-se-ia, e agora lutaria para não mais regressar porque conseguiria ver o Sol, conseguiria ver com clareza as coisas verdadeiras e não apenas as suas sombras. Porém, se fosse levado de volta à sua antiga habitação subterrânea, nada veria naquela escuridão nos primeiros momentos. Pareceria perdido, sem saber onde está. Seus antigos companheiros de caverna certamente diriam caçoando: “viu, a luz estragou a sua vista; a luz não presta!”. Os prisioneiros fariam ainda pior: eles matariam todos aqueles que tentassem livrá-los da caverna, pois a luz cega, ela estraga as vistas. O que adianta ver a luz e agora não servir mais para morar no subsolo! Afinal, a caverna é um mundo lidíssimo para quem não conhece outro. Eis o dilema da República Ideal! É preciso elevar a alma acima do mundo visível para ver as verdades eternas, os valores com os quais os sábios devem governar a República. Mas é difícil romper os valores instituídos. Sempre haverá quem ama as trevas, a mora subterrânea, as sombras. Sempre haverá aqueles que, convencidos de sua verdade, não quererão de modo algum mudar suas atitudes.

Platão compara a luz à alma. Aquele que já elevou sua alma às alturas já não se importa com as brigas mundanas, com as brigas do mundo subterrâneo. Platão tem uma pedagogia, um caminho através do qual pretende ensinar como se faz esse trajeto. Isso ele aprendeu com Sócrates. É preciso educar as pessoas. Educar significa fornecer os meios para que os prisioneiros dirijam de modo correto seus olhares para a luz. Visão eles têm, o problema é que não a usam de maneira correta. Platão não fala apenas de sensibilidade, mas de intuição, de inteligibilidade. “Ver”, em Platão, não é somente “enxergar”. É bem mais. Conhece-te a ti mesmo, dizia Sócrates; alguma relação? Mas aqui está um grande problema. Nem todas as pessoas podem sair da caverna. Há um problema com a educação. Nem todos estão capacitados para enxergar a luz, a bondade e justiça. Platão diz que aqueles que não receberam educação não têm finalidade em suas vidas (p. 191).[4] E mesmo aqueles que a receberam também não exercerão voluntariamente o ofício de governar. Certamente estarão muito mais propensos a curtir as bem-aventuranças. É preciso educá-los, formá-los. Aqui entra a tarefa do filósofo, isto é, forçar “os habitantes mais bem-dotados a voltar-se para a ciência maior” (p.191), para a prática de cultivar o bem, a verdade que só se apresenta na luz. Surge agora a pergunta: por que a cidade administrada pelos filósofos (por aqueles que veem a luz de modo essencial) tende a ser mais pacífica do que aquela governada por aqueles que não têm essas capacidades, ou daqueles que detêm o poder? Primeiro, o poder, nesse caso, é o mal, é competição nas sombras. Só quem está nas trevas vê o poder (a maldade) como coisa boa. O filósofo não precisa do poder. Ele se guia pelos valores revelados pela essencialidade, pela verdade eterna, e não por interesses politiqueiros que vêm das sombras. Os interesses da alma são mansos, pacíficos, não precisam da luta. O poder é perverso (p. 192), ele nos faz acreditar em sombras. O poder está ligado aos sentidos, que freqüentemente provocam enganos. Platão explica então que há um caminho para desenvolver a habilidade de conhecer ou de voltar-se às coisas essenciais sem se perder com as sombras dos objetos. Platão fala agora da geometria, da matemática, da lógica, da aritmética. Esses conhecimentos disciplinam a alma. Mas como isso ocorre? Esses conhecimentos são abstratos, seus conteúdos não têm um paralelo real com os objetos da caverna, do mundo dos sentidos. A geometria é uma ciência que descreve a “eternidade”, aquilo que sempre permanece igual. Por essa razão, esses conhecimentos disciplinam alma, a convidam a elevar-se, isto é, servir da inteligência, para alcançar os mais altos graus da ciência contemplativa. Repetindo, a geometria, para Platão, é a ciência daquilo que já existe sempre (p. 199). É ela que atrai a alma para a verdade e faz com que o pensamento filosófico se volte às alturas. “O verdadeiro se aprende pelo raciocínio e pela inteligência e não pela vista”, diz Platão (p. 201).

Quem é o Demiurgo? É uma artífice, uma espécie de criador que, contemplando as essências verdadeiras, moldou o mundo visível pelos sentidos à imagem das essências que contemplou. É por isso que tudo que vemos apenas pela vista não passa de fotocópia do mundo essencial. Platão quer que o governo ideal possa não apenas se guiar pela visão sensitiva, mas “visão espiritual; inteligível”. Nós, porém, estamos dotados de “alma”, uma essência eterna colocada em nós por demiurgo e que permite que possamos nos dirigir de modo correto à luz.

Eis que surge a dialética no diálogo de Platão. Platão explica que os mestres da dialética são peritos em argumentar. Sabem concatenar problemas, elencar idéias, desde as mais simples às mais complexas, para construir deduções, tratar de proposições contrárias, enfim, raciocinar para além da “visão”. A dialética de Platão pode ser traduzida como um esforço para servir-se da inteligência mais profunda. A verdadeira inteligência não está nos sentidos imediatos, visão, audição e olfato. Isso todos os outros animais também possuem, e mais apurado do que em nós, em muitos casos. Mas animais não humanos não praticam dialética. Eles não têm uma alma inteligente. Dialética é a arte de partir de questões mais simples, acrescentar-lhe contrários ou complementos sempre mais complexos até atingir a abstração pura, o exercício puramente intelectual. É um exercício criativo. Em cada movimento, o antigo argumento não é simplesmente descartado, mas incorporado ao novo. Ele permanece de modo implícito na nova formulação. É por isso também que a matemática, aritmética e a geometria são importantes. Elas partem de elementos simples e acrescentam sempre mais e mais complexidades, até atingir a inteligência total, o esplendor, a luz, o ser de modo incontestável. Elas (a geometria, a lógica, a aritmética) ajudam a preparar o caminho, por meio de abstrações cada vez mais complexas, até a alma atingir a iluminação plena, o Bem, a Bondade, a Justiça (p. 203). Para Platão, só serve para ser Rei Filósofo (Sábio; apto a governar a República Ideal) quem aprendeu a arte da dialética. Ela é o único caminho seguro, nos diz Platão. E Platão nos diz ainda mais: “só quem tem agudeza de espírito não tem dificuldades em aprender” (p. 205). Os nobres de espírito não aprendem como se o aprendizado fosse uma violência, uma questão de escravos. Só é livre quem é sábio porque aprende livremente a elevar a alma acima dos poderes das aparências, das lutas nas trevas. A ciência da dialética não é um ofício de escravos, mas de livres. Platão agora ensina que devemos educar também as crianças na arte da dialética, mas de forma pacífica. O corpo, pela ginástica, só pode ser disciplinado pela força e pela violência dos exercícios, mas na alma não entra nada de modo violento (p. 208). A educação da alma, portanto, deve ser diferente da dos guerreiros e da ginástica. 

Platão nos diz ainda que a dialética tem um perigo: depois de escolhidos aqueles que têm habilidades na arte da dialética, aqueles que “prescindindo dos olhos e dos outros sentidos, de caminham em direção ao próprio ser pela verdade”, como diz (p. 208), começa o problema da aprendizagem familiar. Todos nós aprendemos ideais de justiça em casa, na escola e etc e tal. Mas a justiça da dialética platônica choca-se com a justiça dos sentidos, aquela ensinada na família e nas escolas. Aprendemos ser obediente às leis. Quem aprende a arte da dialética gera, primeiramente, conflitos, pois terá comportamentos diferentes daqueles tidos como normais. Torna-se semelhante àquele que se acostumou à luz e, ao regressar à caverna de modo súbito, é tido pelos seus antigos companheiros como “cego”. Como lembra Platão: “De pessoa obediente à lei, que era, dará a impressão de se transformar numa rebelde” (p. 210). Assim termina Platão sua alegoria, nas palavras de Sócrates com  seguinte pergunta a Glauco: “Concordais que não são inteiramente utopias o que estivemos dizendo sobre a cidade e a constituição; que, embora difíceis, eram de algum modo possíveis, mas não de outra maneira que não seja a que dissemos, quando os governantes, um ou vários, forem filósofos verdadeiros, que desprezem as honrarias atuais, por as considerarem impróprias de um homem livre e destituídas de valor, mas, por outro lado, que atribuem a máxima importância à retidão e às honrarias que dela derivam, e consideram o mais alto e o mais necessário dos bens a justiça, à qual servirão e farão prosperar, organizando assim a sua cidade? E Glauco responde “É evidente. [...] e conforme a tua pergunta, parece-me que atingimos o termo da discussão” (p. 212).

Para Platão, portanto, a República ideal, a República de Sábios (Sofocracia) precisa surgir da capacidade de treinar a alma (razão) a voltar-se às coisas abstratas. Isso porque os sentidos são enganosos e não sabem ater-se ao que é eterno, perfeito e imutável. Contemplar a Luz Ideal levaria, conforma Platão, a tornar-se sábio, ou seja, um conhecedor que governaria conforme as essências que contempla e não conforme os sentidos, que são sempre fonte de enganos, problemas e conflitos

[1] As páginas, quando referidas, dizem, portanto, respeito a esta versão do texto platônico.

[2] Professor de Filosofia na Educação Estadual pública do Estado de Santa Catarina.

[3] Em diversos comentários de filosofia aparece também menção ao texto platônico como “Mito da Caverna”. Hoje, porém, a maioria dos comentadores prefere o termo Alegoria.

[4] PLATÃO, A República, 2005, p. 187-212.