Orlandi e Foucault: Interdiscurso e Formação Discursiva

Por ATILIO BORGES NETO | 06/11/2013 | Filosofia

ORLANDI E FOUCAULT: INTERDISCURSO E FORMAÇÃO DISCURSIVA. 

Atilio Borges Neto 

RESUMO

Neste artigo pretendemos deslindar as noções de interdiscurso e formação discursiva normalmente empregadas pela Análise de Discurso. Acreditamos que tal deslindamento poderá ser de muita relevância tanto para a comprensão de fenômenos discursivos como para a ampliação de conhecimentos de iniciantes interessados na Análise do Discurso.  

PALAVRAS-CHAVE: Interdiscurso, formação discursiva, Análise do Discurso.  

ABSTRACT

In this work we intend to clarity to the notions of interdiscourse and discursive formation typically employed by Discourse Analysis. We believe that such unraveling may be very relevant as much to the comprehension of discourse phenomena as for the expansion of knowledge from beginners interested in Discourse Analysis.

KEYWORDS: Interdiscourse, discursive formation, Discourse Analysis.

O Interdiscurso tem íntima ligação com a memória. Para Orlandi (2005), a  memória também faz parte do discurso, logo, a maneira como ela surge induz às condições de produção do discurso, e assim a memória é considerada “interdiscurso”.

            O interdiscurso é algo que fala antes, que surge de um lugar independente, é o que a autora chama de memória discursiva, é algo que já foi dito e que causa efeito no que se está sendo dito.

[...] O fato é que há um já-dito que sustenta a possibilidade mesma de todo dizer , é fundamental para se compreender o funcionamento do discurso, a sua reação com os sujeitos e com a ideologia. A observação do interdiscurso nos permite, remeter o dizer da faixa a toda uma filiação de dizeres, a uma memória, e a identificá-lo em sua historicidade, em sua significância, mostrando seus compromissos políticos e ideológicos. ( ORLANDI, 2005, p. 32).

            No discurso pode-se perceber que há relação  entre o já dito e o que se está sendo dito, ou, em outras palavras, entre a constituição do sentido (memória) e a sua formulação (atualidade). Em todo o dizer  há um já dito, ou seja, em todo o discurso  está presente o interdiscurso, ou melhor, em toda “fala” que ainda está sendo dita, está presente outra que  já é conhecida por quem fala. Convém explicitar que o termo “conhecida” não implica que o sujeito enunciador do discurso tenha se lembrado do “ já dito”, tal sujeito pode estar esquecido, visto que, os “já ditos” formam a nossa memória discursiva, eles podem surgir inconscientemente no discurso. A consciência desse fato  nos leva a compreensão  do funcionamento  do discurso  e sua relação sujeito-ideologia. Para Orlandi, todo o discurso tem um sujeito, e todo sujeito tem uma ideologia.

            Para a autora, o interdiscurso é todo o conjunto de formulações feitas e já esquecidas (já ditos) que determinam o que dizemos. Logo, para se analisar um discurso, devemos considerar os já ditos e assinalar aquilo que não foi dito (sentidos implícitos) que surge no que está sendo dito.

            A relação entre o já dito e o que está sendo dito, conforme Orlandi, é a que existe entre interdiscurso e intradiscurso3.

            A autora deixa explícito que é através da relação entre interdiscurso e intradiscurso que se determina a formulação do discurso. Assim, todo o dizer dá-se do encontro de dois eixos: O da memória  (constituição) e o da atualidade (formulação). Logo, é desse conjunto que podemos averiguar sentidos no discurso.

Formação discursiva:

 

            É a partir da forma como Foucault (2008) concebeu a formação discursiva que a mesma será, nesta exposição, discorrida e relacionada ao interdiscurso.

            No intuito de estabelecer clareza ao conceito de formação discursiva, discorre-se abaixo uma descrição de alguns pontos que compõem o conceito em questão.

            Antes de expor os pontos mais relevantes a respeito da formação discursiva, Foucault vai de encontro ao conceito, livrando-se de um jogo de noções que lhe parecem dispensáveis e que, por esse motivo, aqui, serão apenas explicitadas de modo sintético e não enfático. A primeira noção é a de “tradição” que trata de visualizar a relevância de uma temporalidade específica a um conjunto de fenômenos que são sucessivos, idênticos ou análogos.

            A outra é a de “influência” que, segundo o autor, atribui os elementos de semelhança ou de repetição a um processo que liga as unidades definidas como indivíduos através do tempo e a distância.

            Foucault passa à noção de “desenvolvimento” e de “evolução” que permite reagrupar uma sucessão de acontecimentos dispersos. Depois é a vez da noção de “mentalidade” e de “espírito” que permite estabelecer uma comunidade de sentidos e uniões simbólicas para os fenômenos sucessivos ou simultâneos de uma época específica.   

            Após essas noções, o autor começa a se dirigir ao conceito de formação discursiva não diretamente, mas, sim, com rodeios em que alega haver recortes que são admitidos e outros que são contemporâneos e todos são sempre categorias reflexivas e princípios de classificação, são regras normativas e tipos institucionalizados. Além disso, tais recortes são fatos de discursos que merecem ser analisados ao lado de outros discursos com os quais mantêm relações complexas. Assim, tais fatos passam a ser tratados por unidades. Para Foucault, essas unidades podem, por exemplo, atribuir uma obra a um autor mesmo que este esteja fazendo uso de um pseudônimo.

Em meio a reflexões dessa natureza, o autor procura expor as singularidades daquilo que ele define por unidades discursivas. Estas são consideradas como um feixe de relações, as quais não são idênticas, elas são variáveis e relativas, construídas a partir de um campo complexo de discursos. Tais unidades são constituídas por uma operação interpretativa e revela em um texto a transcrição de algo que o texto manifesta e esconde ao mesmo tempo.    

            Nesse ponto, Foucault explica que para melhor estudar as unidades, às quais se refere, é necessário acolher a cada instante do discurso em sua irrupção de acontecimentos, na sua emergência e na sua dispersão temporal, esta é a responsável pela repetição de discursos, pelas transformações de discursos, também pelos discursos serem sabidos, assim como pelo seu esquecimento ou apagamento.     

            Todas as pistas lançadas, até este ponto, são alusões feitas deliberadamente por Foucault e fundidas à formação discursiva. Porém o que merece destaque é a afirmativa de que as unidades discursivas são construídas no campo dos fatos do discurso e que a partir delas outras unidades são formadas. Disso surgem, para Foucault, indagações como, por exemplo, sob quais regras um enunciado foi construído e, de forma consecutiva, sob quais regras outros enunciados semelhantes poderiam ser construídos. É focado em questões dessa especificidade que Foucault discorre sobre relações entre enunciados, descrevendo, a princípio, a relevância da irrupção referente ao enunciado, disso resulta uma afirmação que consiste em:

[...] Por mais banal que seja, por menos importante que o imaginemos em suas consequências, por mais facilmente esquecido que possa ser sua aparição, por menos entendido ou mal decifrado que o suponhamos, um enunciado é sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente. Trata-se de um acontecimento estranho, por certo: inicialmente porque está ligado, de um lado, a um gesto de escrita ou à articulação de uma palavra, mas, por outro lado, abre a si mesmo uma existência remanescente no campo de uma memória, ou na materialidade dos manuscritos, dos livros e de qualquer forma de registro; em seguida, porque é único como todo acontecimento, mas está aberto à repetição, à transformação, à reativação. (FOUCAULT, 2008, p. 32)

  

            Relativo à irrupção, o fragmento citado coincide com a descrição da forma como o interdiscurso é concebido por Orlandi. Tal fato infere-se devido Foucault afirmar que um enunciado é inesgotável e que o mesmo propicia a si próprio a condição de ficar alojado em uma memória assim como em qualquer superfície material que sirva como registro, além disso, o autor expõe que o enunciado está aberto à repetição, à reativação ou à transformação. Todas estas especificidades condizem com a forma como o interdiscurso é apresentado por Orlandi, ou seja, trata-se de um já-dito alojado em uma memória definida como memória discursiva.

            Conforme Foucault, um enunciado formulado em uma área do conhecimento como a medicina, ao surgir no discurso dessa área, ou no de outra área do conhecimento, abre a si próprio a condição de se alojar no campo de uma memória que, para Orlandi, é a memória discursiva. A partir disso, o enunciado está aberto à repetição, à reativação ou à transformação. Assim, um enunciado que é parte de um determinado discurso, ao surgir, acaba se articulando aos enunciados de outras espécies de discurso, reconfigurando-se e podendo provocar efeitos de sentido no discurso em que acabou surgindo.

Trata-se de um enunciado formulado e surgido em um local e tempo específicos que ficou alojado em uma superfície material (livros, etc.) ou no campo de uma memória, por isso, tal enunciado pode, então, surgir em outro local, em outra época e no discurso de outras áreas do conhecimento, ou seja, o enunciado pode surgir em outra época e em outro local porque ele é, segundo Orlandi, um já dito, um enunciado que foi formulado e que ao emergir ficou alojado na memória discursiva. Nessa acepção, o enunciado equivale à parte de um determinado discurso que surge em uma outra espécie de discurso, ele é um interdiscurso.

A prévia correlação efetuada entre os dizeres de Foucault e Orlandi pareceu-nos pertinente para dar transparência ao percurso que visa explicar a formação discursiva porque, para Orlandi, os interdiscursos são recortes de formações discursivas. 

            De forma sintetizada, algumas formas de regularidades que se referem às relações entre enunciados são, por Foucault, apontadas como às relações entre grupos de enunciados mesmo que tais grupos não apontem para domínios equivalentes nem para domínios aproximados; mesmo que os grupos não possuam o mesmo nível de formação e mesmo que tais grupos não constituam o lugar de trocas que podem ser estabelecidas.

As relações entre os enunciados podem escapar à consciência do autor, as relações podem ser entre enunciados que não possuem o mesmo autor, podem ser entre enunciados de autores que sequer têm conhecimento sobre o outro. Então, em termos de regularidades, algumas relações são entre enunciados, grupos de enunciados ou relações entre acontecimentos de ordens distintas (econômica, social, política, etc.).  Sobre relações entre enunciados e entre acontecimentos, é cabível expor que, para Foucault, transformações decorrentes no meio social podem acarretar em mudanças nos enunciados:

[...] a enunciação descritiva não passava de uma das formulações presentes no discurso médico. Foi preciso, também reconhecer que essa descrição não parou de se deslocar: seja porque, de Bichat à patologia celular, deslocaram-se as escalas e os marcos; seja porque, da inspeção visual, da auscultação e da palpação ao uso do microscópio e dos testes biológicos, o sistema da informação foi modificado; seja porque, da simples correlação anatomoclínica à análise refinada dos processos fisiopatológicos, o léxico dos signos e sua decifração foram inteiramente reconstituídos; seja finalmente, porque o médico, pouco a pouco, deixou de ser o lugar de registro e de interpretação da informação e porque, ao lado dele, fora dele, constituíram-se massas documentarias, instrumentos de correlação e técnicas de análise que ele tem, certamente, de utilizar. (FOUCAULT, 2008, p. 38)

            Logo, em um quadro de análise estabelecido por Foucault, surgem importantes afirmações entre as diversas indagações formuladas por ele. E devido ao fato de que tanto as afirmações quanto as indagações são diversas, faz-se necessário discutir apenas algumas afirmações que parecem mais pertinentes aos propósitos desta exposição como a afirmação de que diferentes enunciados dispersos no tempo formam um conjunto quando se referem a apenas um objeto, porém o autor manifesta que o objeto não possibilita individualizar um conjunto de enunciados e designar entre eles uma relação persistente e descritível ao mesmo tempo.

Primeiro, isso se dá pelo fato de que no conjunto de todos os enunciados, que descreve um objeto, que lhe dá nome, que o exemplifica e desenvolve, há relações diversas. Por isso, segundo Foucault, o objeto é constituído pelo conjunto de tudo o que foi dito a seu respeito.

            O outro fator que inibe uma relação descritível, e ao mesmo tempo consistente, a um conjunto de enunciados, é a ocorrência de que um conjunto de enunciados não se relaciona exatamente com o mesmo objeto. Esta situação se dá no sentido de que um objeto não é visto apenas sob uma face e isso se firma na seguinte citação:

[...] esse conjunto de enunciados está longe de se relacionar com um único objeto, formado de maneira definitiva, e de conservá-lo indefinidamente como seu horizonte de idealidade inesgotável; o objeto que é colocado como seu correlato pelos enunciados médicos dos séculos XVII ou XVIII não é idêntico ao objeto que se delineia através das sentenças jurídicas ou das  medidas policiais. (FOUCAULT, 2008, p. 36)

              

            Vale mencionar que o objeto, ao qual o autor se refere, é a loucura, ou seja, a loucura era o objeto que, mesmo sendo mais pertencente ao discurso psicopatológico, tinha uma representação traçada de diversas maneiras em experiências individuais ou sociais dos séculos dezessete e dezoito.

            Passando a algumas relações entre objetos, como a transformação, pode-se notar que, buscando a unidade dos discursos referentes à loucura, Foucault concebe a possibilidade de haver transformações entre os objetos por meio de relações tangentes entre eles em um dado espaço. Assim, conforme o autor, todos os objetos do discurso psicopatológico foram modificados pelo fato de não serem delineados de forma idêntica pelas sentenças jurídicas ou pelas policiais, etc.

            Trata-se de uma não-identidade dos objetos através do tempo ligada às rupturas nos objetos. Tais rupturas implicam uma não continuidade no interior dos objetos e disso resulta uma desestabilidade na sua identidade. Ou seja, o objeto tem sua permanência suspendida:

[...] a unidade dos discursos sobre a loucura seria o jogo das regras que definem as transformações desses diferentes objetos, sua não-identidade através do tempo, a ruptura que neles se produz, a descontinuidade interna que suspende sua permanência. (FOUCAULT, 2008, p. 37)

            Afastando-se efetivamente dos objetos e remetendo-se aos temas e conceitos é viável expor que se tratam dos últimos elementos descritos por Foucault para formalizar a sua teoria de formação discursiva. Em razão ao que é relevante expor sobre os conceitos4, Foucault explica que até mesmo os conceitos se alteram e, que diante do aparecimento de novos conceitos, verifica-se que alguns, entre eles, são derivados daqueles que os precederam. Todavia, em relação aos  conceitos precedentes, há outros heterogêneos e alguns até mesmo incompatíveis. É a partir dessa averiguação que Foucault propõe a busca de uma unidade discursiva não na coerência dos conceitos, mas, sim, na análise do jogo de emergência de tais conceitos e, da mesma forma, no jogo de suas dispersões.

            O tema5 está entre uma das propostas de Foucault, para a busca de uma unidade discursiva, e, em primeiro momento, o tema é tido, pelo autor citado, como uma potência de união e de animação a um conjunto de discurso:

[...] é legítimo, em primeira instância, supor que uma certa temática seja capaz de ligar e de animar, como um organismo que tem suas necessidades, sua força interna e suas capacidades de sobrevivência, um conjunto de discursos. (FOUCAULT, 2008, p. 40) 

            O tema, porém, pode surgir partindo de dois tipos distintos de discursos, fato este que o autor concebe ao passo que faz estudos abarcando a ideia evolucionista em dois momentos. Um se refere ao século dezoito em que a ideia evolucionista, segundo Foucault, é definida a partir de um parentesco das espécies, ou seja, a formação de novos seres da mesma essência é tida por um processo de seleção natural.

            O outro momento se refere ao século dezenove em que o tema evolucionista se refere mais à descrição de grupos descontínuos e também à análise das modalidades de interação entre um organismo do que se refere à constituição do quadro contínuo das espécies.

            Após constatar que um único tema era tratado a partir de dois tipos de discurso, Foucault não demonstra dúvida em concluir que não se deve buscar os princípios de unidade discursiva na existência dos temas, contudo, ele sugere que é preciso buscar essa unidade na dispersão de pontos de escolha libertos por um tema e não apenas nessa possibilidade, mas também na situação possível que os temas abrem para reanimar temas que os precederam,  para dar início às estratégias opostas ou para desempenhar diferentes papéis.

            Foi de toda uma gama de ordens, correlações, funcionamentos e transformações entre elementos como os objetos, enunciados, conceitos e escolhas temáticas que Foucault fundou a ideia de descrever as dispersões e de, entre tais elementos, detectar regularidades quanto às suas correlações simultâneas, posições, aos aparecimentos sucessivos e ordenados, ao espaço comum, ao funcionamento recíproco e quanto às suas transformações intrínsecas e hierarquizadas. Foi diante de todo esse repertório teórico que Foucault concebeu a formação discursiva como:

[...] No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações) diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva. (FOUCAULT, 2008, p. 43)

           

            Atentando para alguns recortes em que a dispersão dos enunciados foi empregada por Foucault, torna-se oportuno, nesse ponto, dispor que a mesma pode ser vista com especificidade temporal, ou seja, trata-se da dispersão de enunciados que podem, de certa forma, estar associados a uma data de surgimento determinada e que se referem à dadas disciplinas ou organizações. Isto se constata no seguinte fragmento:

[...] a outra, às relações que podem ser legitimamente descritas entre esses enunciados, deixados em seu agrupamento provisório e visível. Há, por exemplo, enunciados que se apresentam -  e isso a partir de uma data que se pode determinar facilmente - como referentes à economia política, ou à biologia, ou à psicopatologia. (FOUCAULT, 2008, p. 35)

           

            Porém, se há enunciados que se apresentam a partir de uma data que pode ser determinada, da mesma forma, há aqueles que se apresentam como continuidades remotas e que não existe como determinar uma possível data de suas aparições. Segundo Foucault, trata-se de enunciados de continuidades milenárias e quase sem origem, estas são, por exemplo, a gramática e a medicina.

            O autor também expõe a dispersão dos enunciados, em outra circunstância, como algo desprendido de uma funcionalidade rigorosa, ou seja, os enunciados podem derivar outros enunciados e nessa perspectiva a dispersão é tida como forma de deslocamentos e propagação porque a partir do momento em que um enunciado emerge, por menor que seja essa emergência, ele coloca a si próprio a condição de pertencer ao campo de uma memória, assim como a um manuscrito, livros ou em qualquer outra forma de registro, o que lhe garante continuidade ou esquecimento. Logo se há continuidade há, também, propagação.

            Na perspectiva de se esvair da questão da dispersão, surge a precisão de realçar o parágrafo anterior, recorrendo a um fragmento teórico anteriormente citado que consiste em:

[...] Por mais banal que seja, por menos importante que o imaginemos em suas consequências, por mais facilmente esquecido que possa ser sua aparição, por menos entendido ou mal decifrado que o suponhamos, um enunciado é sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente. Trata-se de um acontecimento estranho, por certo: inicialmente porque está ligado, de um lado, a um gesto de escrita ou à articulação de uma palavra, mas, por outro lado, abre a si mesmo uma existência remanescente no campo de uma memória, ou na materialidade dos manuscritos, dos livros e de qualquer forma de registro; em seguida, porque é único como todo acontecimento, mas está aberto à repetição, à transformação, à reativação. (FOUCAULT, 2008, p. 32)

            Para que o conceito de formação discursiva surta um efeito adequado nesta exposição, faz-se preciso um entendimento sobre a maneira como Orlandi (2005) concebe os efeitos gerados pelas formações discursivas. 

             A autora manifesta, afirmativamente, que os sentidos são determinados por posições ideológicas em jogo no processo histórico-social no qual as palavras são produzidas.

            Nessa perspectiva, as palavras ganham sentido ou mudam de sentido em acordo com as posições tomadas pelos seres que as empregam. As palavras, então, tiram seus sentidos dessas posições e as posições adotadas pelos sujeitos estão relacionadas às formações ideológicas, ou seja, há ideologias em todas as formações discursivas, disso resulta que há ideologia em qualquer posição em que o sujeito se inscreva. Então, a partir de uma posição dada em uma determinada conjuntura sócio-histórica, a formação discursiva determina aquilo que pode e deve ser dito. 

            Para Orlandi (2005), o que é dito pelos sujeitos está inscrito em uma formação discursiva e não em outra e é disso que o discurso se constitui em seus sentidos. Percebe-se dessa ocorrência que as palavras derivam seus sentidos das formações discursivas nas quais se inscrevem. No discurso, as formações discursivas representam, ou seja, coincidem com formações ideológicas, assim os sentidos são sempre definidos ideologicamente. Nesta acepção, vale expor que a ideologia aparece não como conjunto de representações, visão de mundo ou ocultação da realidade, mas como o efeito da relação necessária do sujeito com a língua e com a história para que, então, haja sentido e é também a ideologia que faz com que haja sujeitos:

[...] O sentido é assim uma relação determinada do sujeito – afetado pela língua – com a história. É o gesto de interpretação que realiza essa relação do sujeito com a língua, com a história, com os sentidos. Esta é a marca da subjetivação e, ao mesmo tempo, o traço da relação da língua com a exterioridade: não há discurso sem sujeito. E não há sujeito sem ideologia  (ORLANDI, 2005, p.47).

            Para a autora, em um discurso, as palavras se relacionam com outras palavras que são parte de um outro discurso. Logo, os discursos são delineados em relação com outros discursos. Ao revelar que as palavras significam em relação a outras palavras, Orlandi afirma que a articulação de formações discursivas são dominadas pelo interdiscurso e estão sempre se configurando e  reconfigurando-se em suas relações.

            As formações discursivas podem ser visualizadas como partes específicas do interdiscurso, ou seja, específicas configurações dos discursos em suas relações. É o interdiscurso que permiti dizeres, através do já-dito, definindo o que constitui uma formação discursiva em relação à outra formação.

            As relações entre formações discursivas estão intimamente ligadas aos processos de formação de sentidos e para que seja possível averiguar tais relações nos discursos é imprescindível fazer uma breve descrição a repeito da noção de metáfora, revelada por Orlandi, porque a mesma possibilita um foco confiável para averiguar fatos interdiscursivos nos discursos. Tal metáfora se define, na análise do discurso, como transferência:

[…] o sentido é sempre uma palavra, uma expressão ou uma proposição por outra palavra, uma outra expressão ou proposição; é por este relacionamento, essa superposição, essa transferência (metaphora), que elementos significantes passam a  se confrontar, de modo   que  se  revestem  de  sentido

(PÊCHEUX apud ORLANDI , 2005, p. 44)

            Baseado na noção de metáfora é possível entender que as palavras não têm um sentido próprio e fixo a sua literalidade, o sentido existe nas relações de metáfora.

            Vale enfatizar que a relação de metáfora, descrita pela autora, são relações de efeito de substituições, paráfrases e formações sinonímicas, isto é, formação de relação entre palavras sinônimas. Segundo Orlandi, no funcionamento discursivo é possível compreender os sentidos devido ao fato das formações discursivas serem os pontos de referência. Em razão disso, palavras iguais podem ter diferentes significados e isso vai depender, exatamente, da formação discursiva em que tais palavras se inscrevem.    

            Nessa perspectiva, o trabalho de um analista é verificar as diferentes condições de produção do discurso, assinalando o funcionamento da memória. Com isso o analista deve remeter o dizer a determinada formação discursiva. Este procedimento permite compreender o sentido do que está dito no dizer remetido a dada formação discursiva.

            Esperamos que essa exposição a respeito do interdiscurso e da formação discursiva tenha surtido entendimento para os leitores iniciantes da AD. E que, além disso, ela possa trazer luz ao uso de tais conceitos em estudos acadêmicos. Vale ressaltar que o estudo de tais conceitos não se esgota em apresentações como esta aqui realizada, sendo necessário buscar outros tipos de exposição para, de fato, compreender a abrangência desses conceitos dentro da

Análise do Discurso.  

REFERÊNCIAS

FAIRCLOUGH, Norman. Language and Power. Londres: Longman,1989.

FOUCAULT, Michel: A Arqueologia do Saber, 1926-1984; tradução de Luiz Felipe Baeta Neves, -7ed. - Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.  

LIMA , Maria Cecilia: Leitura e Escrita como Práticas Discursivas: Ensino, Discurso e Mudança Da Prática Discursiva e Social. Pelotas: Educat,2001.

MAINGUENEAU, Dominique: Novas Tendências em Análise do Discurso. Campinas, S.P: Pontes: 1997.

MARILEI, Resmini Grantham. Discurso e Sociedade: Leitura e Repetição. Pelotas:EDUCAT, 2001.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, 2005.

PECHEUX, M e FUCHS, C. A propósito da análise automática do Discurso. In  GADET E HAK (org). Por uma análise automática do discurso. Campinas: Ed Unicamp, 1990.



3  O intradiscurso é uma oposição ao interdiscurso. As problemáticas do dialogismo ou da heterogeneidade constitutiva mostram que o intradiscurso é atravessado pelo interdiscurso. (MAINGUENEAU, 2006, p. 90)

4 Foucault utiliza o termo conceito, de modo abrangente, para designar uma formulação de ideias por meio dos enunciados.

5 Foucault utiliza o termo tema, de modo abrangente, como unidade de sentido que propicia o aparecimento de enunciados que possuem correlações entre si e, de modo específico, o tema a que se refere é o evolucionista.