O ESTADO MILITAR E O SINDICALISMO

 

 

            Para enfrentar a crise política configurada[1], com o golpe militar, em virtude da ausência de hegemonia por parte daqueles que se estavam do poder, o Estado passou a usar de uma desmedida repressão, como a Doutrina da Segurança Nacional; ela cumpria o papel manipulador, necessário ao regime, mas que, na verdade, representa a insegurança para milhares de brasileiros. Como afirma Afonso:

 

Nesta doutrina, cabe ao capital a responsabilidade e os frutos fundamentais do desenvolvimento; e ao trabalho a responsabilidade e o encargo de não afetar nem desafiar a segurança nacional com suas reivindicações econômicas, políticas e sociais (1977, p. 35).

 

Contestar a política salarial do regime militar e encaminhar a luta, mesmo que apenas no sentido de conquistas econômicas, já significava um atentado contra a Segurança Nacional, como argumentou Afonso, o capital deve estar acima do trabalho. O resultado é visível com a deteriorização do trabalho dentro desta ordem social, a partir, fundamentalmente, de 1964, quando acontece uma redução de 50% em relação ao salário mínimo real, comparado ao salário vigente no início do governo de Goulart, em 1961. Essa queda se dá basicamente, segundo Afonso, devido à política governamental de congelamento salarial instituída pelos militares (1977, p. 36).  Os sindicatos se desarticularam, e pesa também, nesse processo, a anterior ausência de uma prática organizacional autônoma e a repressão desencadeada pela ditadura. Os militares desencadearam uma forte repressão ao movimento operário-sindical: entre abril e dezembro de 1964, 425 sindicatos e 45 federações sofreram intervenções, sendo seus líderes presos ou exilados, além de ser extinta a principal central sindical, o Comando Geral dos Trabalhadores – CGT (HIRATA, 1980, p. 88).

O Estado Militar conservou os mecanismos de controle sobre os sindicatos, restringindo-os ao assistencialismo, predominantemente médico e jurídico. Adotando, entre outras, as seguintes medidas de controle:

 

1) a intervenção direta do Estado na arrecadação do imposto sindical e na fiscalização dos recursos provindos dessa fonte. Os sindicatos ficam obrigados a restringir o uso desses recursos à compra de imóveis e à assistência médico-dentária; 2) o Estado possui também um estreito controle do aparelho sindical, na medida em que vai peneirar, através da exigência de um “atestado de ideologia”, os possíveis concorrentes a cargos de direção. Tal medida fez com que, nos primeiros anos que se sucederam ao golpe, a maior parte dos ativistas que pleiteavam cargos para a direção dos sindicatos fossem oriundos (...) das correntes não contestadoras da ideologia dominante; 3) a proibição através da lei (...) o que torna qualquer greve ilegal e, portanto, sujeita à repressão militar (MANFREDI, 1986, p. 89-90).

 

A Lei 4.330, Lei de Greve, elaborada pelos setores conservadores do Congresso Nacional e promulgada em 01/06/64, com inúmeras prescrições, tornava,   na prática,   qualquer   greve   irrealizável,   ficando , por via de conseqüência, conhecida  como  lei antigreve[2]. A referida lei determinava a ampliação da capacidade de intervenção estatal nos sindicatos e definia um processo ritualístico de editais de convocação para assembléias, votações e notificações ao empregador e às Delegacias Regionais do Trabalho, o que inviabilizava qualquer chance de uma greve ser julgada legal. O rigoroso controle do Imposto Sindical pelo  Estado  fez  com  que os sindicatos ficassem impossibilitados de promover suas campanhas reivindicatórias. Com a  Lei 4.725, de julho de 1965, as empresas passaram a valer-se do ajuste salarial automático para evitarem a discussão sobre questões salariais com os sindicatos, os quais perderam a função de defesa dos salários dos empregados. Utilizando o aparato ideológico e burocrático, o Estado afastou dos Sindicatos seus militantes mais combativos, e a montagem de um forte aparato repressivo – Serviço Nacional de Informações (SNI) e Lei de Segurança Nacional (LSN) – sufocou qualquer contestação ao regime autoritário.

          Em 1968, com todo o aparato ideológico, burocrático e repressivo imposto pelos militares, o Sindicato dos metalúrgicos de Osasco (SP) tentou redirecionar o movimento sindical: deflagrou uma greve, acreditando na possibilidade de extensão para outras regiões, mas o Ministério do Trabalho declarou a greve ilegal e interveio no sindicato. As  forças militares controlavam as saídas de Osasco e cercavam as fábricas que aderiam à paralisação e no quarto dia de greve os operários retornaram ao trabalho. A repressão dos militares derrotara o movimento grevista. Mesmo com o fracasso de Osasco, em outubro de 1968, em Contagem (MG), foi deflagrada outra greve, porém no quarto dia, sob repressão violenta e intervenção no sindicato, os grevistas voltaram ao trabalho.

            Com  a    intervenção   nos  sindicatos  e  tendo  reprimido  o   movimento  sindical, os militares completavam, em 1968, com a instituição do AI-5[3], o quadro de repressão social do regime. O ensaio de retomada às lutas sindicais, tentado pelos trabalhadores malograra, obviamente reprimido com truculência.

O regime lançou mão, em seguida, de alguns mecanismos legais visando a consolidação de um sindicato acomodado, passivo e tutelado, tais como:

 

A  proibição de greves, seguida de repressão aos grevistas (...); reajustes salariais anuais, com índices controlados e determinados pelo governo (...); e a proibição das negociações diretas com o patronato, que passaram a ser intermediadas pela Justiça do Trabalho. Foi criado também o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, FGTS (...), que eliminou a estabilidade do trabalhador (...).” O FGTS, “facilitou dispensas sumárias de líderes e ativistas sindicais, promoveu a rotatividade  entre  os  trabalhadores  e,  em  conseqüência,  a insegurança entre eles (CHAIA, 1992, p.134).

 

Esses expedientes transformaram os sindicatos em simples agências prestadoras de serviços assistenciais e, a institucionalização destes mecanismos, gerou violento arrocho salarial. Em 1969, no governo  do  General  Emílio  Garrastazu Médici, a situação agravou-se ainda mais, quando  Delfim Netto é reconduzido ao Ministério  da Fazenda e implanta uma política econômica que fica conhecida como O Milagre Econômico Brasileiro, em alusão aos milagres alemão e japonês das décadas de 1950 e 1960. Esse período é marcado por taxas de crescimento excepcionalmente elevadas, que foram mantidas, enquanto a inflação,  controlada e institucionalizada, declinava, estabilizando-se em torno de20 a 25% ao ano.

O crescimento econômico ocorreu apenas na classe dominante; contudo para os operários e para a maioria do povo brasileiro a expressão, não do milagre, mas do inferno e da miséria. Delfim Netto costumava dizer que o bolo (a riqueza do país) precisava crescer para depois ser dividido, mas isso não ocorreu. O inverso, sim,  houve uma grande concentração de riquezas e aumentou desmesuradamente a pobreza das  classes  trabalhadoras. 

Nessa época, Luís  Inácio Lula da Silva, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, em 1978, um dos destaques do período histórico do Novo Sindicalismo, descreveu o limite suportável da classe trabalhadora: quando somos chamados, contribuímos e até demos ouro para o bem do Brasil. Mas, chega o momento em que qualquer trabalhador quer viver com dignidade. Queremos recuperar o que nos foi tirado na época do chamado milagre brasileiro, as constantes perdas salariais (LULA,1977, p.73).

A crise do “milagre" levou à desmistificação da ideologia implantada pelos militares nos slogans ufanistas do tipo Brasil grande, Brasil que vai pra frente, ninguém segura esse país, ora com frases como  Brasil ame-o ou deixe-o, uma adaptação do dístico conservador norte-americano Love it or leave it[4].  A ideologia que ajudou a fazer o bolo crescer – com o sacrifício de todos, mas que jamais seria repartido – começou a ser desmascarada. E as greves refletem a percepção do engodo. Para enfatizar o sacrifício do trabalhador, mantendo o “milagre”, a tabela abaixo demonstra a defasagem salarial crescente a cada ano,  após o golpe de 1964, com a política econômica adotada pelos militares  e  seus  aliados:

 

 

TABELA Nº. 01 – DISTRIBUIÇÃO DE RENDA NO BRASIL

COMPARAÇÃO DA DISTRIBUIÇÃO RENDA NO BRASIL – 1960, 1970 E 1976.

POPULAÇÃO ECONOMICAMENTE ATIVA (%)

PARTICIPAÇÃO NA RENDA

      1960           1970                    1976

50% mais pobres

30% Seguintes

15% Seguintes

5% mais ricos

      17,71%        14,91%                11,8%

      27,92%        22,85%                21,2%

      26,66%        27,38%                28%

      27, 69%       34,86%                39%

 Fonte: ALENCAR, 1985, p. 319.

 

            Segundo os dados apresentados  por  Alencar,  o   que   aconteceu   com   os rendimentos no Brasil no período 1960 –1976 ficaram assim distribuídas: os 5% daqueles que detinham maior renda (cerca de 5 milhões de brasileiros em 1976, incluindo dependentes) tiveram sua participação aumentada em mais de 10%, enquanto a fatia dos 80% mais pobres da população (cerca de 76 milhões, em 1976) diminuiu em mais de 10% seus rendimentos. Os índices estatísticos mostram que os verdadeiros santos responsáveis pelo milagre econômico foram os trabalhadores brasileiros. Fato também confirmado e comprovado pelos economistas Celso Furtado e Paul Singer. Os operários das fábricas, fazendas e empresas de serviços produziram as riquezas, entretanto, ganhavam cada vez menos. Mesmo contribuindo com o aumento da renda das empresas onde trabalhavam, eram nas mãos dos padrões e entre  a classe alta que concentrava a renda, estes adquiriram maior poder de compra passando a consumir mais. A indústria automobilística é um exemplo claro desse processo de expansão: diversificou intensamente seus modelos, sempre visando a um mercado cada vez mais exigente em sofisticação.

Outro dado, que demonstra a forte repressão da ditadura militar foi a manipulação de informações, especialmente no governo Médici, quando foram freqüentes casos de cassações e exílios, seguidos de morte, como ressalta a Fundação Getúlio Vargas - FGV - e o  Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea - CPDOC:

 

Segundo o dossiê dos exilados, citado pela Revista  Isto É, em 1978, no período de 1969 a 1973 registraram-se 77 casos de mortes de presos políticos por tortura. Da extensa lista de desaparecidos - aqueles cuja prisão ou morte não foram reconhecidas pelas autoridades - elaborada pelo Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA) e relativa ao período, constava, entre os casos mais conhecidos, o do jornalista Mário Alves, preso no Rio em janeiro de 1970, e o do ex-deputado Rubens Paiva, também preso no Rio em janeiro em 1971 (http://www.cpdoc.fgv.br/dhbb/verbetes_htm/3388_5.asp – 15/05/2002 – 20 Horas). 

 

 

Embora os militares tendo se utilizado de muitos subterfúgios para manipular a opinião pública, estes foram desmascarados. No caso específico do movimento sindical, a recuperação dos sindicatos acontece com o surgimento do Novo Sindicalismo, com o combate ao Estado autoritário e às Leis, que privilegiavam a classe patronal desvendando a farsa do milagre econômico, partindo em defesa dos salários dos trabalhadores e definindo a estratégia grevista como forma de reconquistar a cidadania política. Essas ações começam a se concretizar devido ao apoio das lideranças políticas da sociedade, notadamente das de oposição, que despontavam no cenário político nacional:

Parcelas das lideranças políticas do Movimento Democrático Brasileiro - MDB, partido de oposição à ditadura militar, de associações da sociedade civil e, sobretudo a simpatia de parte considerável da população evidenciavam que o crescimento do movimento em favor da democracia não se restringiria ao protesto pelo voto, nas eleições de 1974 (o MDB venceu em 15 dos 21 estados brasileiros às eleições de senadores e deputados; pela  primeira  vez,  desde  a  última  eleição presidencial, de 1955-60, a população  posicionava-se nacionalmente)[5] e em 1976, no pleito municipal, quando também o MDB elegeu milhares de prefeitos e vereadores (BOITO Jr., 1991, p.104).

 

A vitória político-eleitoral do MDB, nas eleições de 1974 e 1976, e a iniciativa governamental  conhecida como “distensão”[6]– mais tarde ”Abertura Política”- iniciaram um novo ciclo nas relações sindicais. Esse processo evidenciava o reconhecimento pelas autoridades de que, apesar e por causa das iniciativas de controle desse estado autoritário, a sociedade resistia e criava dificuldades para que os mecanismos mais arbitrários fossem constantemente usados, obrigando o governo a adaptar-se, à nova realidade. O resultado das eleições de 1974 e 1976 demonstra essa resistência.

 



[1] A crise do Estado se define do ponto da concepção de Estado de Gramsci, pelo rompimento da articulação do conjunto de frações da classe dominante no bloco histórico.

 

[2] “Essa alcunha deve-se ao rigor e os óbices nela prescritos para a realização de greves, já que inserida em todo um contexto, em uma engrenagem contra a organização, contra a mobilização, contra a greve. Enfim, erigida num cenário falacioso e nada discreto quanto aos interesses do capital em relação ao trabalho, a referida lei estabelece que a greve não pode ser deflagrada durante a negociação”. (http://www.ub.es/geocrit/sn-5.htm – 25/04/2002 – 22horas)

 

[3]Ato Institucional era instrumento jurídico excepcional, permitindo o governo militar impor iniciativas contrárias à Constituição vigente. Durante o Regime Militar de 1964, foram 17 Atos Institucionais, ampliando o autoritarismo e a centralização do poder.   O AI-1, de 09/04/64, cassou mandatos legislativos e suspendeu direitos políticos. O AI-2, de 27/12/65, extinguiu os partidos políticos e criou as novas agremiações do Regime (Arena e MDB), vigentes até 1979. O AI-4, de 07/12/66, compeliu o Congresso Nacional a votar o projeto de Constituição. O AI-5 foi o mais abrangente dos atos. Editado em 13/12/1968, promoveu o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais, definiu intervenção nos Estados e Municípios, suspendeu direitos políticos, eliminou prerrogativas inerentes às funções públicas (jurídicas, universitárias, etc.), previu possibilidades de aposentadorias compulsórias e suspendeu a aplicação de habeas-corpus nos   crimes políticos. Foi um ‘golpe dentro do golpe’, pois, era um ato que deu prerrogativas ao Presidente da República para fechar o Congresso, cassar mandatos e direitos políticos. Ou seja, o presidente passa a governar com poderes praticamente absolutos. O AI-5 gerou os demais 12 atos. Ele somente foi revogado em 01/01/79, pela Emenda n.º 11 (MAIA, 1998, p.75).

[4] Esses slogans e frases eram veiculados maciçamente  pelos órgãos de comunicação, conjugados com uma censura implacável, procurando perpetuar a imagem favorável do governo, tentando compensar as insatisfações populares com a divulgação de planos grandiosos, dentre eles o do milagre.

[5] Na vigência do Regime Militar (1964-1985) ocorre o bi-partidarismo (ARENA e MDB), perdurando até1980. A Aliança Renovadora Nacional (ARENA) atuava como partido de situação, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) exercia a função de oposição. Esta oposição era consentida porque mesmo abrigando em seus seios comunistas de diferentes matizes era composta, em sua maioria, por liberais que, embora discordassem da ditadura, não se colocavam em  contradição ao ideário defendido pela ARENA.

 

[6] Ernesto Geisel, empossado em 15 de março de 1974, esse processo era entendido como diminuição da pressão e seria executado em várias etapas: suspensão parcial da censura previa, estabelecimento de limites para o desrespeito aos direitos humanos, reformas eleitorais para melhorar o nível da representação política. O processo estaria completo quando se revogasse o AI-5 e os instrumentos de controle políticos fossem incorporados à constituição.