O Crime de Aborto no Código Penal Brasileiro
Por Giselle Cristina Lopes da Silva | 23/05/2017 | Direito1. Introdução
Este artigo, sucintamente, versará sobre o delito de aborto no CP, apresentando seus conceitos, o período da permanência do resguardo legal, o elemento subjetivo deste crime, além de outros argumentos abarcados no decorrer deste texto.
Ab Initio, o ser humano se vale de mecanismos contraceptivos como o aborto para evitar gestações indesejadas. Em muitas culturas, essa prática era perfeitamente aceita, como era o caso dos gregos e hebreus. Para eles, o fruto da concepção pertencia ao corpo da mulher, podendo fazer com ele o que melhor lhe prouvesse. Aristóteles (384 a 322 a.C.) chegou a dizer que "se deve fixar o número máximo de procriações e, se alguns casais forem férteis para além do limite, é necessário recorrer ao aborto".
Com o passar dos tempos, essa prática começou a ser reprovada, principalmente com o surgimento do Cristianismo, que proibia terminantemente o feito, punindo severamente os que o realizasse, como é o caso de praticantes que acabaram mortos na fogueira.
O aborto foi condenado também no período da Revolução Francesa, sendo as mulheres até incentivadas a procriarem. Assim transcreve Guilia Galeotti, em História do aborto[1]: "No fim do século 18, após a Revolução Francesa, passou-se a acreditar que um país poderoso era aquele com muitos habitantes. Cada criança era um futuro soldado, trabalhador, contribuinte. Ser mãe era questão patriótica".
Na legislatura brasileira, o assunto só foi introduzido em 1890, condenando somente o terceiro que praticasse o aborto, deixando a gestante livre de acusações. Com o advento do Código Penal de 1940, passa-se a punir tanto os casos de crime de mão-própria e aborto consentido como o aborto provocado por terceiros com ou sem o consentimento da grávida.
O fato é que, mesmo com tantas discordâncias no decurso dos séculos, a humanidade ainda não chegou a um acordo quanto a permissão da prática do aborto, continuando sendo considerado um crime em vários países, inclusive no Brasil.
2. Conceito de aborto
Um dos assuntos mais polêmicos no que tange as infrações penais é indubitavelmente o aborto, pois envolvem uma sucessão de pareceres conflitantes. Essas opiniões contraditórias fazem com que se crie um impasse sobre a permanência do aborto como sendo um crime, permanecendo, desta forma, a prática constante de abortos em clínicas clandestinas, nas quais submetem inúmeras mulheres a um extremo risco de morte.
Alguns grupos religiosos defendem a constância da gestação até o fim, mesmo que esta seja decorrente de um estupro. A igreja Católica, por exemplo, proíbe categoricamente a prática. Para ela, a vida começa a partir do momento em que o óvulo se funde com o espermatozóide, não devendo ser então interrompida. O papa Paulo VI, em 1976, expôs que "o feto tem ?pleno direito à vida? a partir do momento da concepção; que a mulher não tem nenhum direito de abortar, mesmo para salvar sua própria vida[2]".
Diante deste assunto tão complexo, constatamos que existe um vácuo no Código Penal sobre o que é o aborto; o que lhe define. O Código não reproduz claramente o significado, o que deixa o mesmo em aberto para interpretações de diversos doutrinadores.
Enfatiza Fernando Capez (2008, p.119) que aborto seria "a interrupção da gravidez, com a conseqüente destruição do produto. Consiste na eliminação da vida intra-uterina. Não faz parte do conceito de aborto a posterior expulsão do feto, pois pode ocorrer que o embrião seja dissolvido e depois reabsorvido pelo organismo materno em virtude de um processo de autólise; ou então pode suceder que ele sofra processo de mumificação ou maceração, de modo que continue no útero materno".
3. O começo e o fim do amparo legal
Para os estudiosos da medicina, a vida suscitaria a partir da fecundação, isto é, quando o espermatozóide masculino é introduzido no óvulo feminino. Mas para o Direito Penal, a legislação somente inicia o amparo no momento em que, 14 (quatorze) dias depois da fecundação, o ovo encontra-se já fecundado no útero da mãe; a chamada nidação.
Nas lições de Heleno Cláudio Fragoso (1981, p.116), ele ressalta que aborto seria "pois, a interrupção do processo fisiológico da gravidez desde a implantação do ovo no útero materno até o início do parto". Já nos casos em que ocorre a chamada gravidez extra-uterina, ou como Jorge de Rezende (1998, p.717) define como sendo uma "prenhez ectópica", ou então no caso de reprodução in vitro, no qual ambos os casos a gestação é desenvolvida fora do útero materno, a lei penal não caracteriza como sendo um crime de aborto, pois a lei somente prevê infração no caso de gravidez intra-uterina, sendo então um fato atípico.
O crime, outrossim, só começa a ser praticado no absoluto instante em que dá-se o início do ataque ao bem jurídico, que é a vida intra-uterina. Antes disso, não há que se pensar em fato típico.
O término da possibilidade de ocorrência de aborto dá-se com o início do parto, quando, no caso de parto normal, há a dilatação do colo uterino e o rompimento da membrana amniótica ou quando há a abertura das camadas do abdômen, no caso de cesariana. Depois disso, ocorrendo a morte do nascituro, será caracterizado, segundo a situação imposta, como crime de infanticídio ou de homicídio.
Vale ressaltar que, se em decorrência da utilização direta dos meios abortivos, o feto vier a nascer e logo em seguida morrer, neste caso, não poderá caracterizar, como um caso de infanticídio ou homicídio, posto que foi em decorrência destes métodos que o feto foi expelido e logo em seguida extinto, caracterizando ainda crime de aborto, pois, segundo Fernando Capez (2008, p.124), "embora o resultado morte tenha se produzido após o nascimento, a agressão foi dirigida contra a vida humana intra-uterina, com violação desse bem jurídico".
Em concordância com as preleções de Sebastian Soler (1973, p.91): "se deduce que la acción debe ser ejecutada sobre un sujeito que no pueda aun ser calificado como sujeito pasivo posibile de homicicio, condición que, según sabemos, principia com el comienzo del parte. Toda acción destructiva de la vida, anterior a esse momento, es calificada de aborto, sea que importe la muerte del feto en el clustro materno, sea que la muerte se produzca como consecuencia de la expulsión prematura".
Se mesmo valendo-se destes meios, não há a interrupção da gravidez ou, por estar no final da gestação, o feto nasce e mesmo prematuro, consegue sobreviver, será caracterizado como uma tentativa de aborto.
4. Componentes
O crime de aborto se encontra no Capítulo I, que trata dos crimes contra a vida, que pertence ao Título I do Código Penal, classificando a vida do produto da fecundação como sendo o bem juridicamente protegido mais importante, sendo a vida da gestante, no caso de aborto sem o consentimento da mesma ou qualificado pelo resultado, o segundo bem juridicamente protegido.
Já o objeto material do crime pode ser o óvulo germinado (até dois meses de gestação), o embrião (de dois a quatro meses) ou o feto (a partir dos cinco meses até o final da gravidez).
O aborto pode ocorrer de duas maneiras, espontaneamente quando ocorre de forma natural; sem nenhuma intervenção humana ou, como preleciona Rogério Greco (2008, p.243), "quando o próprio organismo materno se encarrega de expulsar o produto da concepção". Esta espécie de aborto não interessa para a lei penal, importando-se somente com a outra forma, o aborto provocado, que pode ser tanto doloso quanto culposo.
A Provocação dolosa ocorre no caso dos artigos 124 (auto-aborto e aborto consentido), 125 (aborto sem o consentimento) e 126 (aborto com o consentimento) do Código Penal. O caso de provocação culposa, o CP brasileiro não prevê nenhuma hipótese de aborto.
O sujeito passivo pode ser somente o produto da fecundação (no caso de auto-aborto e aborto feito por terceiro com o consentimento da gestante) ou pode ser tanto o produto da fecundação como a gestante (no caso de aborto provocado por terceiro sem o consentimento da grávida). No caso da gestante consentir o aborto mas acabar por ser gravemente lesionada e chegar a óbito, tornar-se-á também sujeito passivo, pelo fato de ser invalidado o seu consentimento diante do grave resultado (art. 127, CP).
[...]