Machado de Assis

Na verdade tinha pensado em nomear este texto como “bons dias” do mesmo jeito que Machado de Assis denominava suas crônicas publicadas no jornal “Gazeta de Notícias” do Rio de Janeiro, na época da libertação dos escravos. Essas crônicas foram compiladas no livro que também recebeu o título de “Bons dias”. Tive acesso à obra pelo site do Domínio Público:  <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1875>. Os escritos também estão disponíveis num site do MEC: <machado.mec.gov.br/images/stories/pdf/cronica/macr11.pdf>

Nessas crônicas Machado de Assis comenta o cotidiano, na maioria das vezes com um tom irônico e uma inigualável tonalidade de crítica social. Entre outras interessou-me seu escritos do dia 19 de maio de 1888, seis dias depois da abolição dos escravos. Chamou-me a atenção a crueza do fato: os escravos libertos continuavam cativos. Ou, o que foi muito pior: abandonados à própria sorte. Esse foi o drama comentado pelo Machadão, dizendo que mesmo antes da abolição ele já havia libertado seu escravo Pancrácio. O problema se manifestou no momento mesmo da alforria. Vou transcrever o trecho que agora nos interessa:

No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:

- Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que...

- Oh! meu sinhô! Fico.

- Um ordenado pequeno, mas que de crescer. Tudo cresce neste mundo: tu cresceste imensamente. Quando nasceste eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos...

- Artura não qué dizê nada, não, sinhô...

- Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis: mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.

- Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.

Pancrácio aceitou tudo: aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.

Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio: daí para cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas. Chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do diabo; cousas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.

Quer dizer: se as pessoas não se transformarem, a situação em que elas se encontram também não mudarão. E, como transformação é coisa difícil de acontecer, as transformações sociais também são muito raras. Por isso os escravos atuais continuam recebendo seus petelecos, pontapés e puxões de orelha...

Mas não trouxe Machado de Assis para nossa conversa por causa da escravidão que se atualiza em outras roupas. Trouxe-o por causa de uma frase, no final dessa crônica.

No parágrafo final o velho Machado caracteriza o homem de virtude, aquele que deveria estar mergulhado na política. Diz ele: os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários

Eis o mistério que impede a construção da sociedade justa e igualitária, onde as pessoas não sobrevivam da exploração do outro: antecipam-se ao problema. Mas nossa dificuldade é que ficamos na dependência da lei e, por isso, deixamos de fazer o que é correto, o que deve ser feito, para nos escondermos nas limitações e proibições da lei. E assim não nos damos conta que a liberdade ocorre antes e acima da lei.

Neri de Paula Carneiro

mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

rolim de moura -ro