JUSTIÇA AMBIENTAL: UM CONHECIMENTO MUITO AQUÉM DA REALIDADE DAS PESSOAS SURDAS BRASILEIRAS O conceito de Justiça Ambiental, segundo a Rede Brasileira de Justiça Ambiental – RBJA, refere-se ao tratamento justo e ao envolvimento pleno de todos os grupos sociais, independente de sua origem ou renda nas decisões sobre o acesso, ocupação e uso dos recursos naturais em seus territórios. A Justiça Ambiental é assim: Uma noção emergente que integra o processo histórico de construção subjetiva da cultura dos direitos no bojo de um movimento de expansão semântica dos direitos humanos, sociais, econômicos, culturais e ambientais. Na experiência recente, a justiça ambiental surgiu da criatividade estratégica dos movimentos sociais, alterando a configuração de forças sociais envolvidas nas lutas ambientais e, em determinadas circunstâncias, produzindo mudanças no aparelho estatal e regulatório responsável pela proteção ambiental. (ACSELRAD, 2005, p. 223). Nessa perspectiva, podemos pensar de forma abrangente em Justiça Ambiental como um mecanismo sócio-político-econômico, o qual leva em consideração as peculiaridades contraculturais e subjetivas de grupos sociais, proporcionando a estes, através de dinâmicas sociopolíticas participativas, a construção de uma justiça social. Este tema aponta, portanto, a primordialidade de mobilizar a questão do meio ambiente no que diz respeito à preservação do mesmo modo que da distribuição e justiça. Partindo desse pressuposto, a Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas – ONU, em 1990, afirmou que a devastação ambiental pode desencadear consequências irreversíveis ao meio ambiente, comprometendo a vida planetária e, com isso, a saúde e o bem-estar dos seres humanos. Sabemos que o equilíbrio planetário é substancial para os direitos humanos, que quando violados, provocam as injustiças ambientais. A esse respeito, Carvalho (2006) ressalta: Pode-se dizer que a relação entre a existência do ambiente ecologicamente equilibrado e a dignidade humana é umbilical. A existência de ambiente adequado foi essencial para o início da vida há milhões de anos atrás e continua sendo, hoje e no futuro, essencial para sua manutenção e perpetuação. [...] Não se concebe vida digna, onde se respira ar poluído, se ingere alimento envenenado, se bebe água contaminada, e se está sujeito à ação de substâncias que representam riscos à vida e à saúde. (CARVALHO,2006, p.78). Injustiças ambientais, ao contrário de justiça ambiental, são instrumentos pelos quais sociedades heterogêneas, nos enfoque econômico e social, designam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos raciais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis. De acordo com o primeiro e o segundo principio e prática por justiça ambiental é assegurado: (...) que nenhum grupo social, seja ele étnico, racial ou de classe, suporte uma parcela desproporcional das conseqüências ambientais negativas de operações econômicas, de decisões de políticas e de programas federais, estaduais, locais, assim como da ausência ou omissão de tais políticas; (...) acesso justo e eqüitativo, direto e indireto, aos recursos ambientais do país. (ACSELRAD, 2004, p.13-14). É uma lógica incontestável de segregação racial que afeta diretamente na qualidade de vida dessas populações no que diz respeito à saúde, à educação, à segurança e as demais situações que são vitais para o exercício pleno da cidadania. Na visão de Fernando Sorondo (1991): [...] Os Direitos Humanos constituem um "ideal comum" para todos os povos e para todas as nações e como tal se apresentam como um sistema de valores [...] Este sistema de valores, enquanto produto de ação da coletividade humana acompanha e reflete sua constante evolução e acolhe o clamor de justiça dos povos. Por conseguinte, os Direitos Humanos possuem uma dimensão histórica. (SORONDO, 1991, p. 02). As questões de equilíbrio ecológico, justiça ambiental e direitos humanos estão diretamente ligadas e a sua utilização de forma desordenada prejudica os territórios e também os grupos sociais, levando a situações de conflito. Quando o sistema governamental percebe resistência a estas situações, adota medidas, fazendo com que a harmonia seja restabelecida, evitando, assim, o conflito. Geralmente faz uso da mídia como estratégias de manuseio populacional, incorporando discursos ambientais para neutralizar a crítica. O terceiro e quarto princípios e práticas de justiça ambiental contribuem para que a população se informe de questões sócio-político-econômicas e questione as situações de conflito, assegurando: (...) amplo acesso às informações relevantes sobre o uso dos recursos ambientais e a destinação de rejeitos e localização de fontes de riscos ambientais, bem como processos democráticos e participativos na definição de políticas, planos, programas e projetos que lhes dizem respeito; (...) favorecem a constituição de sujeitos coletivos de direitos, movimentos sociais e organizações populares para serem protagonistas na construção de modelos alternativos de desenvolvimento, que assegurem a democratização do acesso aos recursos ambientais e a sustentabilidade do seu uso. (ACSELRAD, 2004, p. 15-20). Os princípios de justiça ambiental são estabelecidos para garantir que não haja injustiças na mediação destes conflitos. No Brasil há diversos focos de conflito como, por exemplo, a ocupação de terras indígenas, a situação dos quilombolas, dilapidação de recursos naturais, desregrada industrialização, agravados níveis de poluições, problemas econômicos e políticos, segregação social e racial e muitos outros embates que encontramos no país. Dentre essas situações de desigualdade, existe um grupo minoritário em específico, onde, muitas vezes, as informações não chegam até eles. Isto não acontece porque vivem em situações econômicas precárias, mas devido à barreira comunicativa. Apesar da Língua Brasileira de Sinais – Libras já ser oficializada em nosso país, juntamente com o Português, as pessoas surdas usuárias desta língua ainda sofrem com a falta de comunicação na família e na sociedade. A Libras foi oficializada com a Lei nº 10.436 de 24 de abril de 2002: Art. 1o É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais - Libras e outros recursos de expressão a ela associados. Parágrafo único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais - Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema lingüístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema lingüístico de transmissão de idéias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil. (BRASIL, 2002, p. 1). Logo após, em 2005, esta lei foi regulamentada através do Decreto 5.626. Ela tornou-se, portanto, não só conhecida pela comunidade surda, mas pensou-se que ela se tornaria visível a toda nossa sociedade. Mas não foi assim que aconteceu. Apesar de já ter se passado mais de 10 anos da sua oficialização, poucas são as pessoas ouvintes que não possuem contato com surdos, que sabem a língua. A Libras utiliza o canal visual- espacial, e, com isso, diferencia-se muito das línguas orais auditivas as quais estamos acostumadas. Por ser uma língua que utiliza um canal diferente, acarreta que o surdo não tem acesso à comunicação nem com a família, nem com a mídia, nem com a sociedade em geral, dificultando seu acesso e participação social. O que para nós é um fato corriqueiro, como ir a um estabelecimento comercial fazer uma compra, para eles pode ser constrangedor, pois dificilmente encontrará alguém que saiba sua língua para lhe dar as informações necessárias. Os artigos 3º e 4º Lei nº 10.436 complementam: Art. 2o Deve ser garantido, por parte do poder público em geral e empresas concessionárias de serviços públicos, formas institucionalizadas de apoiar o uso e difusão da Língua Brasileira de Sinais - Libras como meio de comunicação objetiva e de utilização corrente das comunidades surdas do Brasil. Art. 3o As instituições públicas e empresas concessionárias de serviços públicos de assistência à saúde devem garantir atendimento e tratamento adequado aos portadores de deficiência auditiva, de acordo com as normas legais em vigor. (BRASIL, 2002, p. 1). Mesmo a Libras sendo reconhecida por lei como o segundo idioma do país, ela ainda não percorre todos os espaço, pois a mídia não dispõe de intérpretes, os documentos oficiais escritos em português não possuem tradução em língua de sinais, o comércio, a indústria, setores jurídicos e de saúde, também não dispõe do recurso documental em Libras e nem o serviço de interpretes para intermediar comunicação, impossibilitando esse grupo de ser inserido na sociedade brasileira. Nesse contexto, Enrique Leff (2002) destaca: “O novo saber ambiental requer o rompimento com antigos paradigmas em busca de um novo conhecimento que objetive, principalmente o desenvolvimento sustentável, a cidadania plena e justiça ambiental. Isto implica “um processo de desconstrução do pensado para se pensar o ainda não pensado, para se desentranhar o mais entranhável dos nossos saberes e para dar curso ao inédito.” (LEFF, 2002, p. 196). Estas medidas são uma solução aparentemente eficaz, visto que ela semi-inlcui o individuo surdo. Fala-se em semi-inclusão, pois no momento em que a LIBRAS é fomentada nos espaços públicos e educacionais a população a desconhece. Esse fato destitui essa população política minoritária de produzir relações sociais de qualidade, de buscar as mesmas chances que os cidadãos ouvintes, mas devido à sua condição diferente, buscam isso de modos distintos, no caso dos surdos eles possuem barreiras comunicativas que dificultam acesso a bens e serviços. O uso da Língua Brasileira de Sinais assegura aos surdos o tratamento adequado nos órgãos públicos e privados onde necessitem expor suas idéias, ocorrências, dúvidas, esclarecimentos, onde a sociedade possa prestar seus serviços sem que haja prejuízo pelo fato de não haver comunicação adequada. Isto é uma grande problemática de injustiça ambiental existente na sociedade brasileira, pois é uma violação do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (Caput do Art. 5° da Constituição federal de 1998). Nesse contexto, começam as reivindicações desse grupo minoritário, os surdos, que engendram seu movimento racial que visa lutar por políticas de inclusão, oportunidades igualitárias e espaço para diferença na escola, demandando seus direitos em detrimento da sua cultura e identidade. O movimento surdo tem sido caracterizado como local de gestação da política e identidade surda contra a coesão ouvinte, através de lutas que objetivam, entre outras coisas, questionar a natureza ideológica das experiências surdas e descobrir interconexões entre essa comunidade cultural e o contexto social, em geral. (PERLIN, 1998, p. 70). Uma vez que um indivíduo, seja ele quem for, possui deveres, este também possui direitos. Assim como seus deveres enquanto cidadãos precisam ser cumpridos por que seus direitos não são exercidos? O direito ao exercício da cidadania plena é um direito de todos, mas no caso dos surdos esses direitos não são respeitados por diversos motivos sócio-políticos, mas o mais considerável é a barreira comunicativa entre a Libras e a língua portuguesa, barreira a qual o governo não propicia sua difusão. Nessa situação de conflito Henri Acselrad (2009) acrescenta na definição do movimento de justiça ambiental: É a condição de existência social configurada através do tratamento justo e do desenvolvimento significativo de todas as pessoas, independentemente de sua raça, cor ou renda no que diz respeito à elaboração, desenvolvimento, implementação e aplicação de políticas, leis e regulações ambientais. (ACSELRAD, 2009, p. 16). O sujeito surdo precisa ter sua acessibilidade garantida, que é a presença do profissional intérprete ou, então e ainda melhor, pessoas que saibam sua língua, sua cultura. Isto é o mínimo e o ideal para acontecer nos espaços sociais públicos e privados que facilitem sua inserção e efetiva participação consciente na sociedade brasileira. Isto está garantido na Lei. Esta ótica nos move a fazer-nos questionamentos: Como esse sujeito estabelece uma comunicação ao tratar da sua saúde no médico? Como vai ir a uma farmácia comprar um medicamento necessário a sua saúde? Como ir ao mercado para prover sua alimentação ou de sua família? Como freqüentar a escola em condição de igualdade: Tirar dúvidas, sanar dificuldades de aprendizagem, como utilizar o serviço jurídico? E no caso de segurança pública? Em uma entrevista feita com surdos, destaco: “Temos dificuldades de ser atendidos em lojas, supermercados, DETRAN, bancos, hospitais, restaurantes, hotéis, agências de viagens, correios e demais órgãos tanto público quanto privados [...] A dificuldade é sempre a mesma: A comunicação, pois as instituições não dispõe de Tradutores e Intérpretes de LIBRAS [...] Dentre as outras experiências que tive, relato uma bastante traumática: Fui num pronto atendimento com cólica renal e por estar tonto e com vômitos os médicos acharam que eu estava bêbado. Foi uma grande dificuldade explicar que estava com uma crise renal. Uma verdadeira falta de respeito!” Fonte: Minoria, direito dos excluídos – Novembro de 2013. Esses cenários sucedem o cotidiano em diversos outros setores sociais, econômicos e políticos. Esses fatos tolhem o artigo 5º da Constituição Federal onde consta que todos os indivíduos são iguais perante a lei, independentemente de qualquer natureza e fere um dos direitos humanos fundamentais o qual alicerça os demais que é o direito à vida, à saúde e alimentação adequada. O processo de globalização, entendido como novo e complexo momento das relações entre nações e povos, tem resultado na concentração da riqueza, beneficiando apenas um terço da humanidade, em prejuízo e especialmente, dos habitantes dos países do Sul, onde se aprofundam a desigualdade e a exclusão social, o que compromete a justiça distributiva e a paz (PNEDH, 2008, p.21). Como a sociedade ainda não é acessível aos surdos, muitas são as barreiras e entraves que eles enfrentam diariamente. Por isso, os surdos ainda estão empenhados, através de movimentos, lutas e resistências, a garantir a visibilidade e o acesso a sua língua. Raros são os surdos que compreendem questões ligadas ao ambiente, pois eles ainda não chegaram neste patamar de informação. E isto, na atualidade, é inconcebível! Esta insatisfação e falta de acessibilidade serve se alavanque para que haja muitos outros movimentos por justiça ambiental no Brasil. Referências ACSELRAD, Henri. Justiça ambiental - ação coletiva e estratégias argumentativas. In: ___. et al. (Org.) Justiça ambiental e cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. ACSELRAD, Henri. Justiça Ambiental: Narrativas de Resistência ao Risco Social Adquirido in Encontros e Caminhos: Formação de Educadoras (es) Ambientais e Coletivos Educadores. Brasília: MMA, 2005. ACSELRAD, Henri. O que é justiça ambiental? Rio de Janeiro: Garamond, 2009. BRASIL, LEI FEDERAL Nº10.436, de 24 de abril de 2002. Disponível em: http://www.libras.org.br/leilibras.htm. CAMARGO, Daniela. Minoria, direito dos excluídos. Trabalho de conclusão de curso de Técnico Tradutor e Intérprete da LIBBRAS. Escola de Educação profissional São Jorge: Rio Grande, 2013. CARVALHO, Edson Ferreira de. Meio ambiente & direitos humanos. Curitiba: Juruá, 2006. LEFF, Enrique. Epistemologia ambiental. Tradução de Sandra Valenzuela. São Paulo: Cortez, 2002. REDE BRASILEIRA DE JUSTIÇA AMBIENTAL. Declaração de Princípios da Rede Brasileira de Justiça Ambiental http://www.justicaambiental.org.br/_justicaambiental/pagina.php?id=229 http://www.onu.org.br/a-onu-em-acao/a-onu-e-os-direitos-humanos/ http://www.dhnet.org.br/educar/pnedh/integral/introducao.htm SORONDO, Fernando. Os Direitos Humanos através da História. Disponível em http://www.dhnet.org.br/dados/livros/edh/mundo/sorondo/sorondo3.htm PERLIN, G. Identidades surdas. In: SKLIAR, C. (Org.). A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 1998.