Vinny Sousa de Queiroz[1]

Não é mediante a apatia nem através do protesto extremado que chegaremos a ter dias melhores

I. Breve introito

O presente texto não visa a trazer verdades absolutas[2] a respeito dos assuntos abaixo delineados. Não tem o autor tamanha pretensão. Naquilo que me foi possível expor com o mínimo de clareza, fi-lo. Em todo o restante, mantive-me silente.

Gostaria apenas de colocar luzes sobre alguns pontos que recebem o status de tabus no âmago da vida da Igreja[3]. Serei exitoso se ao menos a discussão for provocada.

Pretendo dar vida a um debate que parece, injustamente, latente, apagado, em nossas congregações. Aliás, retifico o que venho de dizer: existe, sim, um debate, porém desmedido, no qual grupos religiosos vociferam, de modo caloroso, sem permitir o diálogo adequado com os outros espectros ideológicos da sociedade. Pode-se dizer que aqueles que estão do outro lado do problema, muitos deles, não queiram dialogar, também, pacificamente, entretanto, não devemos nós abdicar, em parte que seja, de termos atitude serena e racional para a equação de alguns problemas que batem à porta da Igreja.

II. Da aparente fácil solução do problema à impossível equação da contradição

II.1. Mártir de seus seguidores: Tupirani, o ditador contra a ditadura

Pois bem, adentremo-nos no mérito da temática.

Começarei citando um movimento religioso do qual algumas pessoas já devem ter tido, igualmente, a oportunidade de tomarem ciência. Recentemente, deparei-me com um adesivo colado no vidro traseiro de um carro que trazia a expressão Lei de Deus. Bíblia sim, Constituição não[4]. De imediato, isso pareceu-me mais uma das extravagâncias religiosas[5] das quais estamos acostumados a ver cotidianamente, fazendo-me não dar importância para a questão.

Contudo, posteriormente, me intriguei com algumas ponderações que poderiam ser feitas a partir desse slogan religioso. Ao procurar informações sobre esse movimento, soube que o seu mentor é o pastor Tupirani, tido como verdadeiro mártir por aqueles que o seguem, sendo nomeado como “o primeiro pastor preso pela ditadura democrática no Brasil”. Esse movimento estimula, basicamente, a desobediência civil às leis do país, para que assim possam ser servos de Deus.

Creio que não é de todo difícil refutar a ideia subjacente da frase colada ao carro. Muitos dos crentes aceitariam sem grandes objeções tal refutação, tendo por base o país em que vivemos. O grande problema será aduzido mais à frente. Mas, se, por algum motivo, o leitor é pertencente ao grupo dos que concordam com o movimento tupiranense, solicito que tal circunstância não mortifique a vontade de continuar lendo o presente artigo: minha aspiração final é instigar a reflexão.

II.2. Objeções fáceis

Ora, vejamos como é fácil rebater tal ideia. É uma contradição lógica afirmar que haja uma possível antinomia entre a Bíblia e a Constituição Federal – no Brasil -, vez que a própria Constituição protege grandemente os direitos dos grupos religiosos, concedendo, inclusive benefícios às igrejas não extensíveis a outros grupos sociais[6]. Se a Constituição protege o direito ao culto, o direito de livre expressão religiosa (etc.), outorgando às igrejas, pastores e padres, a prática livre de cultos e de proselitismo religioso dos mais variados, tutela, consequentemente a possibilidade de se concretizar aquilo que está incluído na Bíblia. Nada mais natural, levando-se em conta o Estado laico democrático no qual vivemos.

Penso eu que a possível contradição existente entre a Bíblia e a Constituição, na visão desse movimento, reside justamente no fato de a Constituição prever um Estado Democrático de Direito. E em sendo um Estado Democrático de Direito, há de se proteger os direitos de todos, sendo esses direitos positivados em lei[7]. Perceba-se que a expressão “todos” significa, sem medo da redundância, a totalidade dos cidadãos, sem exceção. Ou seja, assim como os nossos direitos, como grupo religioso cristão, estão protegidos, o direito ao culto e liberdade de expressão de outros grupos religiosos também o estão. E não é só: os direitos de liberdade de todos quantos não professam fé também devem estar resguardados. E essa seria a ditadura da democracia, malquista pelo movimento acima referido.

É fácil criar um sofisma. Se eu partir de uma falsa premissa, a minha conclusão final deve ser necessariamente falsa. Então, se eu digo que a Bíblia é um livro que impõe condutas em um determinado sentido, e a Constituição protege condutas em sentidos diversos, concluo, sofisticamente, que a Constituição está indo de encontro com o texto bíblico, solicitando aos fiéis que façam uma escolha inevitável: ou devem seguir a Bíblia ou devem seguir a Constituição[8].

Ademais, analisem uma outra incoerência: se a própria Bíblia impõe que respeitemos as autoridades governamentais, e se tais autoridades, no Brasil, são eleitas direta ou indiretamente pelo povo – democraticamente - recebendo a incumbência de editar leis, o respeito às leis (e obviamente à Constituição) é um respeito indireto às autoridades.

Julgo que não será preciso expender mais comentários sobre a contradição patente dessa falsa dicotomia Bíblia-Constituição.

 

II.3. Problemas à vista. Contradições visíveis: queremos os cristãos ser ditadores?

II.3.1. Limites e possibilidades de se interpretar o texto bíblico

Mas é preciso aqui tratar de algumas situações que reputo serem nebulosas e passíveis de ensejar confusões razoáveis na cabeça de muita gente.

Por mais que muitos cristãos aceitem os argumentos acima, grande parte, contraditoriamente, ainda deseja a proibição, em lei, de todas as condutas que julgam ser pecaminosas. Irei tratar, acintosamente, daquelas mais polêmicas e que cujo pensamento se aplica, por conseguinte, a todas as outras situações análogas.

Não raro crentes mantêm pensamentos antidemocráticos e inclusive antibíblicos. Não diria que a culpa seja exclusivamente dos fiéis (em parte sim): em grande medida a Igreja é a culpada por não saber lidar com algumas questões que estão na ordem do dia na sociedade e que clamam por um diálogo (racional e razoável).

É comum pensarmos da seguinte forma: se fôssemos nós os responsáveis pela edição de leis neste país, jamais permitiríamos a instalação de centros de umbanda ou mesquitas muçulmanas, ou mesmo o aborto e o casamento civil homossexual; e em hipótese alguma liberaríamos drogas como a maconha e a cocaína. A justificativa que quase sempre vem à tona é: essas práticas e condutas afrontam a Deus e eu, como cristão, não posso promover ou facilitar a proliferação de pecados na sociedade, porque, desta forma, estaria eu agindo pecaminosamente.

Ficamos atônitos, em polvorosa, quando o Congresso Nacional aprova uma lei cujo conteúdo seja a permissão para a prática de um ato que julgamos ser pecaminoso. Essa é a comprovação dos fins dos tempos!, bradam os mais exaltados.

Mas, vamos com calma. Se pensarmos dessa forma e concomitantemente refutarmos a ideia de bíblia sim, constituição não, corremos sério risco de cairmos em intransponível contradição.

Um rápido parêntese: é lícito e biblicamente plausível afirmar que devemos seguir os mandamentos bíblicos em detrimento da Lei Maior de uma país? Claramente que sim: naqueles casos nos quais a Lei Máxima de determinada sociedade impossibilite o culto ao nosso Deus. Temos como exemplo a ditadura comunista da Coreia do Norte e as ditaduras do mundo árabe. Ora, digo e depois reiterarei: as ditaduras só favorecem os donos do poder e aqueles que com eles compartilham suas ideologias. A depender de muitos crentes viveríamos hoje uma sacra ditadura cristã. Parêntese fechado.

E aqui está o primeiro ponto que gostaria de deixar claro: desde pequenos, aprendemos em casa e na Igreja a seguinte lição: não façamos aquilo que não gostaríamos que fizessem conosco. Extraímos desse valoroso ensinamento um silogismo básico. Premissa maior: ditaduras anticristãs causam malefícios a nós, cristãos. Premissa menor: é preciso não fazer aquilo que não gostaríamos que fizessem conosco. Conclusão necessária: é vedado ao cristão desejar implementar uma ditadura cristã na sociedade.

Saindo da abstração e descendo ao plano concreto, isso significa que não é certo querer positivar em lei todas as condutas descritas na Bíblia como corretas e impor sanções, em lei, às condutas descritas na Bíblia como pecaminosas[9].

Ou seja, não é porque julgamos maléfica moralmente determinada conduta que será preciso atacar incansavelmente a lei que possibilita a prática da mesma. É dizer: o respeito à Bíblia não significa inexoravelmente que internalizemos o desejo de viver em uma ditadura cristã. Em outras palavras: o respeito à Bíblia não significa que possamos querer que sejam limitadas as liberdades das outras pessoas, mesmo que tal liberdade seja para a prática de condutas que possamos adjetivar de pecaminosas.

Exemplificando: para muitos cristãos, beber e fumar são condutas pecaminosas. Mas não é por esse argumento que podemos limitar o direito de outras pessoas de fumarem e beberem. Pode ser que usemos outros argumentos para limitar tais condutas, mas não esse especificamente.

Ademais, como seria possível conciliar o respeito à igualdade, de tratar a todos da mesma forma, que indubitavelmente é um princípio cristão, com o desejo de ver tutelados em lei apenas aqueles atos que nós julgamos como corretos? Se nós queremos ter garantidos direitos referentes ao nosso grupo social, por que motivo e com que legitimidade poderíamos querer limitar os direitos de outras pessoas, que não conflitam com os nossos, senão apenas moralmente?

Entraríamos em outra contradição lógica: gostaríamos de ter leis que obrigassem as pessoas a praticarem condutas cristãs, sendo que a própria lei seria anticristã ao não prever outros princípios bíblicos, como o respeito à igualdade e à liberdade de agir. Essas palavras serão mais bem explicadas em breve.

Perceba: é nosso direito e dever como cristão alertar a sociedade que determinadas condutas são erradas aos olhos de Deus, sendo igualmente nosso dever permitir o tratamento igualitário de todos os grupos sociais, não impedindo o exercício de seus direitos. Quero sublinhar isto: o nosso direito legítimo como cristão é o de apenas alertar, mas não o de querer impor.

É necessário esclarecer que: dentro de um debate político democrático, é legítimo que em determinados períodos leis favoreçam mais alguns grupos do que outros, desde que sempre com respeito à dignidade da pessoa humana, como imposição do constitucionalismo moderno. Cristãos podem, como grupo social organizado, ter a força necessária para fazer passar leis que imponham ou proíbam determinadas condutas baseadas exclusivamente no fato de serem elas qualificadas como pecaminosas ou não: isso é consequência do processo democrático no qual vivemos. Porém, as minhas colocações até aqui têm como base a ideia de legitimidade perante o próprio sistema de valores bíblicos. Em outros termos: como grupo social, temos o direito civil de lutar democraticamente para que o Congresso aprove leis que nos favoreçam em detrimento de outros espectros sociais ou que sancione condutas eivadas de pecado; mas, o que deixo claro é que como cristãos, em respeito aos parâmetros bíblicos, não podemos querer isso, sob pena de estarmos, nesse passo, caminhando em sentido opostos aos próprios princípios bíblicos.

Em resumo, temos que o argumento segundo o qual devamos querer proibir condutas que para nós, aos olhos de Deus, são pecaminosas é incompatível com os próprios princípios bíblicos.

 

II.3.2. Democracia e as liberdades de agir, de existir e de pecar: expressões da própria presciência de Deus para a vida social como princípios inatos do mundo engendrado por Ele bem como fatores que devem ser considerados valorativos de nossas condutas não-pecaminosas

Talvez a noção central desse texto esteja nestas palavras: é preciso diferençar o papel que a Bíblia tem em nossas vidas, particularmente consideradas, e o papel que o Direito (leis) pode ter à luz de ideias e princípios bíblico-divinos. Deus criou o mundo para que pessoas eminentemente diferentes possam conviver, caso contrário não teríamos nós a liberdade de escolha, não sendo os humanos senão marionetes condicionadas para a prática de condutas moralmente corretas[10]. Já disse e não custa repetir: a possibilidade de pecarmos, bem como o somatório de pecados já cometidos por nós mesmos, confere legitimidade maior às nossas boas condutas. Poder-se-ia dizer que a prática de pecados tem até um papel espiritual relevante para nossas vidas, sendo a própria prática de atos errôneos antevista pelo Deus criador como processo útil e necessário para o nosso caminhar neste mundo. As leis, portanto, podem e devem possibilitar a prática de condutas que consideramos pecaminosas, não estando, a princípio, em choque com princípios projetados pelo próprio Deus.

Atenção ao ponto: existem normas bíblicas que subjazem princípios a fim de sugerir condutas que nos tornem próximos a Deus; e existem princípios bíblicos implícitos referentes ao ordenamento do mundo como um todo, tendentes à manutenção de uma sociedade que inatamente possui indivíduos diferentes nos seus mais elevados graus. Sobre este particular, digo que há duas categorias de normas bíblicas: aquelas dirigidas à conversão e busca incessante da santificação do crentes e outras dirigidas para a manutenção da sociedade que necessariamente deve ser plural e heterogênea. E é sobre este último aspecto que o Direito pode e deve incidir, estando em conformidade com esses princípios implícitos bíblicos ordenadores da vida social. Então, haveria uma proximidade íntima entre o fato de a Bíblia regular, ordenando moralmente, determinadas práticas para um grupo específico, ao mesmo tempo em que o Direito (leis) regula a sociedade como um todo, incluindo ateus, religiosos cristãos e religiosos não-cristãos, propiciando liberdades amplas aos indivíduos para, inclusive, pecarem: se é possível extrair da Bíblia tais fundamentos, o Direito, ao entrar nessa aparente antinomia com os vetores bíblicos destinados especificamente aos cristãos e suas condutas, mantem-se, ao revés, em harmonia com o texto sagrado. A antinomia é apenas aparente. Sublinho, ratificando: o Direito, ao não proibir que indivíduos pequem, está em perfeita consonância com a Bíblia, a despeito da dissonância com o que seria espiritualmente bom adotar como conduta individual.

Gostaria que não perdessem de vista o que vem de ser dito.

Retomando o ponto dos parágrafos precedentes, dizemos que, a toda evidência, se tais argumentos não forem satisfatórios para garantir que a busca por uma ditadura cristã não é algo salutar, expendemos um outro, de ordem prática: a falta de uniformidade interpretativa bíblica das instituições religiosas cristãs.

A bíblia, dentre outras funções, traz um conjunto de regras e princípios[11]. As modernas técnicas de hermenêutica[12] informam que a imposição de condutas e atos refere-se ao conceito de normas, que são em síntese mandamentos, os quais podem ser jurídicos, morais. As normas devem ser entendidas como gênero, abarcando as regras e princípios. A principal diferença entre ambas as espécies normativas reside no fato de que as regras são imposições com alto grau de determinação. Por exemplo: homens devem usar camisa branca nos cultos aos domingos. A conduta é determinada de forma clara e precisa. Os princípios têm alto grau de indeterminação, insculpindo valores e nortes a serem seguidos, devendo os seus aplicadores buscarem ao máximo sua otimização. Por exemplo: princípio do amor à humanidade. É possível a partir de um princípio eleger algumas regras como instrumentos para se alcançar a finalidade de tal princípio.

Pois bem. Possuindo a Bíblia um sistema normativo-moral, é possível dar primazia, quando da sua interpretação, às regras (interpretação fácil[13]) ou aos princípios (interpretação de fundamento[14]). Se dermos primazia às regras, nos esquecendo dos princípios, podemos nos perder em formalidades sem conteúdos importantes. Aliás, a passagem do velho para o novo testamento marca justamente a revogação da lei, consubstanciadora quase que exclusivamente de regras, para se dar importância aos princípios especialmente ligados ao amor. A interpretação com primazia das regras é uma interpretação fácil de ser feita, mas não a melhor na minha visão. Regras em contradição precisam ser conciliadas, sendo um trabalho feito mormente através dos princípios, que servem como vetor interpretativo, como norte, instrumento de solução de conflitos hermenêuticos.

Ao fim e ao cabo, se se escolhe dar primazia às regras[15], olvidando-se dos princípios, será inevitável ter de escolher entre uma regra e outra, no caso das duas serem conflitantes[16], fazendo com que duas instituições elejam obedecer a regras de condutas distintas: uma instituição observa a outra regra de conduta escolhida pela outra instituição como pecaminosa. E aí já haveria divergência no seio das próprias igrejas, sobre qual regra de conduta seguir.

Se a primazia incidir sobre princípios, temos que, por se tratar de normas com textura aberta, que permitem um campo maior de interpretações razoáveis, a consequência inevitável é a escolha de diferentes regras como instrumentos viabilizadores de concretização de tais princípios por diferentes instituições. Mais uma vez haveria divergência sobre regras de conduta escolhidas por diferentes instituições. Isso quando não houvesse já divergência sobre os próprios princípios a ser utilizados.

O que tudo isso significa? Significa que a desejável ditadura cristã para muitos é impossível, pragmaticamente, porquanto o primeiro grande problema de falta de uniformidade sobre o que seja correto ou pecaminoso já se encontraria entre as próprias denominações religiosas. A única possibilidade seria implantar a ditadura da igreja X ou Y. Mas aí também seria possível encontrar divergências internas...[17]

E mesmo que houvesse uniformidade interpretativa, elidiríamos essa possibilidade de ditadura cristã como algo salutar pela utilização do princípio igualitário há pouco referido.

Aliás, em minha concepção, um dos grandes problemas que devem ser enfrentados hoje, dentro da Igreja Evangélica lato sensu, é o que denomino de crise de concretização dos escopos da Reforma no concernente à autonomia intelectual dos fiéis. Explico: um dos grandes objetivos da Reforma foi limitar a soberania e monopólio dos líderes católicos em relação à leitura e interpretação do texto sagrado, possibilitando assim que todas as pessoas pudessem ter e ler a bíblia em sua língua pátria (acabando-se com o analfabetismo do texto bíblico), tendo como consequência desse processo aquilo que vemos hoje: criação de inúmeras – literalmente - denominações religiosas que possuem autonomia interpretativa. Em outras palavras, a Reforma buscou retirar os crentes do vazio intelectual por que passavam, dando-lhes a liberdade de criticar os ensinamentos de seus líderes.

Porém, infortunadamente, muitos líderes, atualmente, se valem dessa não-sujeição ao núcleo da Igreja Romana para malsinar mentiras religiosas, ao passo que se esforçam no sentido de não conferir aos fiéis a internalização dessa autonomia. Exemplo cristalino é o do indigitado pastor Tupirani[18]. Relembro aqui valiosa lição de vida: haverá sempre um vazio intelectual quando tudo for recitado, nada problematizado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

III. Análises pontuais: tabus sobre a mesa

III.1. Novos horizontes argumentativos. Integração do tópico precedente

Dito isso tudo, gostaria agora de adentrar especificamente em tópicos que versam sobre assuntos que demandam uma melhor crítica teológica. Mais uma vez reitero: não é o escopo deste texto consignar verdades absolutas ou mesmo opiniões conclusivas – muitas delas ainda estão em estágio de formação, apesar de não serem incipientes; a finalidade é a de trazer à baila uma equilibrada discussão sobre os tabus infra expostos.

Darei ênfase propositadamente aos seguintes temas: aborto, casamento civil homossexual e drogas.

Disse em linhas passadas que o argumento segundo o qual tornar proibitiva a toda a sociedade determinada conduta por ser repudiada aos olhos de Deus seria contraditório em sua lógica.

Mas seria possível utilizar esse argumento de alguma forma? Há alguma exceção a justificar a utilização desse argumento? Ou ainda, há alguma justificativa possível para querermos condicionar, legitimamente, a conduta de outras pessoas? Parece-me que sim, senão tudo devesse ser permitido, não havendo leis que possam ser justificadas a partir de conceitos cristãos. É possível encontrar dentro do próprio sistema bíblico exceções à vedação do argumento de que tal conduta é errada aos olhos de Deus, possibilitando o seu uso, sendo igualmente possível encontrar princípios que nos autorizem a querer limitar determinadas condutas. O destaque recairá sobre esse último aspecto. A sociedade e a sua permanência são um propósito de Deus[19]. Se Deus criou a nós para vivermos em comunidade, concedendo-nos o livre arbítrio para livremente escolhermos a Ele ou não, tem-se aí dois princípios que precisam ser conjugados: a manutenção da sociedade e o livre-arbítrio do homem, de escolher praticar condutas errôneas[20]. Então, podemos dizer que não é argumento plausível sancionar condutas com base na justificativa de que Deus se desagrada de tal conduta. Se foi Deus quem criou a própria liberdade de agir, inclusive erroneamente, não somos nós através de lei que podemos impor limites a tais práticas. Mas a manutenção da sociedade também é um desejo de Deus, não sendo criada para que homens a destruam. Ademais, se podemos até mesmo matar em legítima defesa, para nos protegermos[21], quer isso dizer que algumas condutas pecaminosas podem ser reprimidas inclusive com condutas que a princípio seriam igualmente pecaminosas[22].  Sendo assim, plenamente razoável querer ver sancionadas em lei tais condutas. Ou seja, se posso matar alguém caso este venha a querer me matar ou ferir gravemente, a conduta desta outra pessoa é pecaminosa e pode ser limitada à força pelas outras pessoas que se sentirem prejudicadas pelo seu ato. A transposição dessa limitação para a lei é feita sem grandes esforços. Podemos concluir resumindo: não podemos, como cristãos, querer limitar a conduta de outras pessoas com base exclusivamente na justificativa de que isso fere os olhos de Deus, haja vista que o livre-arbítrio e liberdade de ação são concepções criadas pelo próprio Deus. Mas, é possível limitar, em lei, tais condutas desde que tais condutas pecaminosas causem prejuízos à própria subsistência da sociedade e às pessoas individualmente consideradas.

Observação: ao utilizar o termo sociedade, penso naquela sociedade onde existam grupos sociais distintos, uns mais fortes, outros mais fracos; e não em uma sociedade homogênea (naturalmente homogênea ou forçadamente homogênea, na qual os diferentes são eliminados).

Aqui, percebemos que a defesa dos direitos dos que são diferentes de nós, praticantes ou não de condutas pecaminosas, devem ser integralmente protegidos, desde que tal proteção não conflite com a permanência da sociedade e a liberdade e integridade física das pessoas individualmente consideradas.

Ora, se fôssemos querer limitar a conduta de práticas pecaminosas, seria melhor morrermos. A quantidade de pecados que praticamos cotidianamente não nos legitima a querer limitar a liberdade de outros pecarem. Somos egoístas e egocêntricos ao acharmos que o certo seria proibir o consumo de drogas e bebidas ou qualquer outra prática que julgamos errática, ao mesmo tempo que desejamos não sermos sancionados (senão espiritualmente) quando cometemos nossos pecados menores.

Acrescento que, por se tratar de um artigo curto e não de um estudo aprofundado sobre todas as nuances das questões aqui colocadas, trago à colação apenas alguns aspectos da temática que reputo relevantes, bem como alguns exemplos de princípios que podem ser extraídos do texto bíblico. O leitor, com leituras mais atentas e estudos mais detalhados do texto sagrado pode encontrar – e certamente encontrará – outras regras e princípios a confirmar ou mesmo replicar as conclusões finais deste autor. Fato esse que não me aflige. Importa, afinal, trazer um pensamento crítico a respeito dos assuntos travados neste trabalho.

 

III. 2. Drogas

Comecemos então pelas drogas. Droga pode ser conceituada como toda e qualquer substância, natural ou sintética, que introduzida no organismo modifica suas funções. São drogas aquilo que é vendido nas drogarias bem como a bebida, a maconha e o crack (dentre muitas outras). De imediato verificamos que a inoculação de drogas não é conduta pecaminosa a priori. E mesmo em se tratando de droga propriamente dita, de uso recreativo, utilizar tal argumento como justificativa a querer proibi-la legalmente seria contraditório, como visto acima, salvo na alegação de outros princípios conflitantes com a liberdade de agir a nós conferida. Parece-me que se trata, portanto, de uma discussão relacionada à saúde pública.

Opinião do autor: não vejo justificativa razoável, dentro mesmo dessa visão cristã elaborada neste trabalho, a limitar plena e irrestritamente o uso de drogas como álcool, cigarro e maconha. Contra certas alegações levianas, deixo consignado que não possuo interesses de cunho pessoal em concluir por tal ou qual sentido.

 

III.3. Casamento civil homossexual

Falemos um pouco sobre casamento civil homossexual. Mais uma vez reafirmo que o argumento segundo o qual tal conduta desagrada a Deus, de per se, não é suficiente para querermos impor seja essa prática limitada legalmente. Já me foi dito que os casais homossexuais não poderiam ver esse direito tutelado porque o casamento é instituição religiosa, não civil. E em sendo assim, o casamento civil deveria guardar uma certa reverência ao casamento nos moldes religiosos. Denomino esse argumento de argumento da vedação ao plágio, muito utilizado pelos cristãos. Ora, os antigos já diziam, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa: casamento religioso é uma instituição, própria das entidades religiosas; casamento civil é uma instituição civil, como o nome sugere. O Estado e a sociedade civil podem criar as instituições que bem entenderem, inclusive copiando, em larga escala, instituições de grupos sociais religiosos e vice-versa: não existe nenhum óbice a esse tipo de “plágio”. Ademais, se o problema for do uso do nomen do instituto, um problema de terminologia, bastaria que o casamento civil tivesse outra denominação, em respeito ao nome do instituto de matriz cristã. Mas, com todas as vênias, isso é uma bobagem sem limite.

Se não podemos utilizar o argumento mais uma vez citado acima, poderíamos, ao menos, invocar que essa prática atinge a manutenção da sociedade ou a integridade individual das demais pessoas? Também não. Mas, no plano do debate político, seria possível lutar pela proibição do casamento civil homossexual, buscando legitimamente os interesses de nosso grupo social. Sim, é possível, mas percebam que aí estaríamos lidando com a busca de interesses pessoais, e não especificamente com o que seria correto moralmente fazer, de acordo com os próprios princípios bíblicos reitores da sociedade. Tratarei disso com mais vagar em outra oportunidade.

É preciso entender que a busca da felicidade de cada pessoa é simplesmente a concretização de sua dignidade, como algo central de sua formação social. É deveras presunçoso supor que possamos colocar barreiras a essa busca com base naquilo que julgamos ser melhor para os outros. Todos têm o direito de buscar a felicidade e a construção de sua dignidade[23] da maneira que julgam a melhor para si. Nosso direito e dever é o de alertar, mas não de impor coercitivamente o que as outras pessoas possam ou não fazer.

Finalizando esta questão, não custa salientar que o casamento civil homossexual não implica a obrigação de padres e pastores casarem casais homo-afetivos no âmbito religioso. As esferas não se confundem.

 

III.4. Aborto

Deixei por último o tema que reputo ser o mais controverso, qual seja, o aborto, muito por conta da possibilidade de se justificar sua proibição através do argumento segundo o qual com tal prática viola-se a integridade física individual de uma pessoa, haja vista causar a morte do feto[24]. Diria que nessa discussão há duas zonas de certeza e uma grande zona de penumbra. É certo afirmar que a morte de um bebê já retirado da barriga da mãe é homicídio puro e simples, não se falando em aborto, devendo ser integralmente repudiado. Igualmente certo é afirmar que enquanto não houver a concepção não há aborto. Porém, entre tais zonas de certeza, temos uma imensa zona cinzenta, na qual as respostas não são tão simples como parecem. Se entendermos que o aborto deve ser proibido pelo argumento já citado, precisamos responder às seguintes interrogações: há exceções possíveis? A partir de quando se pode falar em abortamento? Parece-me que há exceções possíveis e legitimadoras do ato de abortar: podemos pensar no caso de uma mulher grávida cuja gravidez é fruto de um estupro ou no caso de uma futura mãe de um anencéfalo, fadado a morrer em minutos após o parto. Ora, mas se trata da vida de outra pessoa! Como permitir isso? A resposta é: matar em legítima defesa também causa prejuízos a quem me agrediu ou iria me agredir e nem por isso esse ato de matar para se proteger deve ser proibido. Mas, nesse caso haveria uma injusta agressão a justificar o homicídio e na hipótese do aborto não. Sim, mas o fundamental nesse raciocínio, assim como utilizado nas melhores técnicas de interpretação do texto bíblico, é a aplicação da ponderação, sendo que no caso do aborto a ponderação se faz sobre interesses: do feto, da mulher e da sociedade. No caso de estupro, o feto tem o interesse de viver, mas sopesando-se com o interesse da mulher de não ter de lembrar, ao ver seu filho, a todo instante da conjunção carnal que teve com o estuprador, é no mínimo razoável supor que é interesse de toda a sociedade se permitir o aborto em tal caso, inclusive de mulheres cristãs. Já no caso de um feto anencéfalo, não seria nem possível dizer que este teria interesse em viver, vez que não existe tal possibilidade, senão de alguns parcos minutos, para o mesmo. Alguns contra-argumentariam afirmando que há casos nos quais tais fetos se tornam bebês que vivem até anos. Sim, é verdade. Porém, mais uma vez, não é nem um pouco razoável ter a pretensão de impor a essa mãe que suporte uma gravidez inteira em decorrência da chance de 0,00001% (sendo otimista) de ver seu filho viver por alguns anos, em estado vegetativo!

Visualiza-se, portanto, exceções possíveis e legítimas para o ato de abortar. Mas, tirante tais exceções, restam ainda discussões plausíveis. A partir de quando se pode falar que o ato de abortar seria de fato um aborto? Trocando em miúdos: abortar um feto com um dia de concepção, através de medicamentos, como a “pílula do dia seguinte”, deve ser tão repudiado e sancionado como o ato de abortar o feto com 40 semanas de gestação? Aliás, seria pecado tomar a pílula do dia seguinte? Bom, deixarei minha opinião sobre essa questão para outra hora. Retomando, parece-me que a primeira pergunta merece a seguinte resposta: o termo inicial para poder-se falar em aborto é impossível de ser designado. Podemos falar com certeza quando o ato será abortivo, quando não será, mas entre os dois momentos a escolha do termo será necessariamente política e baseada em achismos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

IV. Parte final. Pensamento falado e pontos complementares

Bom, acho que muitos dos leitores já se furtaram a continuar lendo, sendo que boa parte dos que ainda leem o fazem para nutrir um sentimento de repulsa, alimentando respostas a este artigo, questionando-se, até, se este autor estaria em seu juízo perfeito ou se se trata de fato de um autor cristão. Agradeço aos que ainda leem, mesmo que seja com este último propósito. O objetivo não é agradar, tampouco convencer, senão o de instigar ao debate.

Por derradeiro, trago algumas reflexões avulsas, itemizadas abaixo, ligadas ao tema aqui tratado e que, de certa forma, complementam tudo o que fora dito.

 

 

Ponto 01. Sobre a possível uniformidade de conclusões a respeito do modo de agir, considerado pecaminoso ou não.

Disse eu no corpo do texto que muitos crentes têm o afã de transformar o Estado em uma ditadura cristã, transformando o texto bíblico em possível Constituição Federal. Disse ainda que, além de todas as contradições inerentes a tal pensamento, há uma impossibilidade prática de se concretizar tal desiderato, pela falta de uniformidade interpretativa dos próprios sub-grupos religiosos.

Reiterando, reputo ser vão esse desejo de achar que a Bíblia deve ser erigida ao status de Constituição Federal. Gostaria apenas de ressaltar que uma possível uniformidade interpretativa é possível à luz de uma corrente filosófica.

Immanuel Kant, filósofo nascido em Königsberg, Alemanha, em 1724, foi um dos grandes gênios que a humanidade teve[25]. Kant, dentre muitos e muitos outros temas, elaborou uma teoria sobre a razão humana, sendo um de seus livros intitulado de Crítica da Razão Prática. Nele, o autor estuda o campo do agir humano, a razão voltada para a vida prática do indivíduo; é um estudo sobre o que devemos ou não fazer, sobre o que vem a ser moralmente bom ou não, para adotarmos como condutas práticas ou evitá-las.

Uma das grandes “sacadas” kantiana foi a de conseguir através de sua teoria chegar à conclusão de que a racionalidade humana tem o atributo da universalidade. Ou seja, a razão leva todos os homens a pensarem da mesma forma e a chegarem às mesmas conclusões.

Para tanto, Kant se vale de dois imperativos categóricos: i) devemos tratar a todos como fim em si mesmo, e não como meio; e ii) devemos agir de tal forma que queiramos que a nossa conduta se torne lei universal.

Mutatis mutandis, a aplicação da teoria kantiana enseja a possibilidade de chegarmos a uma uniformidade prática, pulando, em certa medida, a etapa interpretativa, ou então nos pontos que causem divergências hermenêuticas, a tese kantiana viria como um solucionador de conflitos.

 

 

Ponto 02. Sobre liberdade de expressão.

Precisamos entender que a liberdade de expressão tem como objetivo principal proteger discursos ofensivos. Ou alguém já precisou alegar o direito de expressão para poder consignar elogios grandiosos a outrem? Se existe tal direito, e ele de fato existe, tem o papel justamente de garantir que discursos ofensivos a determinadas pessoas ou grupos de pessoas possam ser exteriorizados.

A liberdade de expressão é via de mão dupla. Permite às Igrejas expor com fervor críticas a condutas ou quem as pratica ou a grupos da sociedade civil ou a governos ou a quem quer que seja. Mas também permite às outras pessoas e segmentos da sociedade criticar de forma veemente a Igreja lato sensu ou Igrejas especificamente determinadas, ou a pastores e padres determinados. Isso inclui obviamente a possibilidade de nos sentirmos ofendidos com tal ou qual dizer de qualquer pessoa ensandecida com a Igreja e suas práticas e dogmas.

 

 

Ponto 03. Sobre a possibilidade de, dentro de um espectro de condutas, se ter diferentes modos de agir e não ser nenhum deles pecaminoso.

A heterogeneidade do modo de agir e existir deve ser vista como natural, seja dentro do ambiente cristão seja fora dele.

A respeito do ponto, Tomás de Aquino escreveu que “ainda que o Pai e o Filho e o Espírito Santo tenham a mesma natureza, esta não tem o mesmo modo de existir em cada um dos três, e digo ao modo de existir, segundo a relação. Com efeito, no Pai está como não recebida de outro; no Filho, de fato, como recebida do Pai. Por isso, não é necessário que o que convenha ao Pai em virtude de sua natureza convenha ao Filho ou as Espírito Santo”[26].

Na esteira do pensamento de Aquino, é perfeitamente natural concluir-se que se mesmo Deus e o seu Filho, a despeito de terem a mesma natureza, não têm necessariamente de se mostrarem uniformes quanto ao que lhe convém (talvez em relação a um ato ou fato, ou mesmo ao modo de agir ou existir), havendo, nesse particular, heterogeneidade divina, com mais razão diga-se dos homens. Não nascemos para sermos iguais, em nosso modo de existir e de agir, para com os outros. Somos diferentes e é a partir dessa diferença que construímos nossa identidade, nos erguendo como pessoas autônomas, edificando, assim, a concretização de nossa própria dignidade enquanto seres no mundo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[1] Graduado em Direito pela PUC-RIO.

[2] Ou mesmo opiniões conclusivas.

[3] Não me refiro a esta ou aquela igreja especificamente, mas a todas as instituições cristãs lato sensu.

[4] Para maiores informações, é possível visualizar a página do movimento no facebook.

[5] Expressão que utilizo, eufemisticamente, para designar atitudes de cunho religioso com viés em parte extremista e em parte ignorante, muito difíceis de se sustentar em uma análise minimamente séria.

[6] A título de exemplo: no art. 150, VI, b, da Constituição Federal, é concedida imunidade tributária para templos de qualquer natureza. Isso significa que eu como particular devo pagar IPTU e IPVA do meu apartamento e do meu carro, respectivamente, porém a Igreja está imune da incidência desses impostos e de quaisquer outros que postulem incidência sobre sua renda, bens e serviços.

[7] A expressão Direito é plurissemântica: pode significar, e.g., lei ou o direito que determinada pessoa tem em face de outra.

[8] O termo Constituição é utilizado por metonímia, significando, sem problemas, o Direito positivo como um todo, ou seja, todo o ordenamento jurídico (leis que vigoram no Brasil).

[9] Lembremos que a liberdade faz parte da essência do cristianismo. Cremos num Deus que nos concede ampla liberdade de agir, justamente para que as escolhas corretas ganhem em legitimidade, haja vista que não teria valor moral escolher a conduta correta, não se podendo escolher a errada. Não há valor moral em condutas praticadas por robôs.

 

[10] Curiosamente, seriam condutas sem valor moral intrínseco.

 

[12] Ramo da filosofia que estuda a teoria da interpretação

[13] Digo fácil porque quando lemos e interpretamos um texto do qual devamos extrair regras de conduta, parece razoável buscarmos imediatamente as regras flagrantes que nele se encontram. É o trabalho mais rápido e fácil que temos nesse processo interpretativo. De modo algo é ruim, porém não necessariamente é o melhor e nunca será, por si só, suficiente.

[14] Digo de fundamento porque é na busca por princípios que encontramos os fundamentos de todo o sistema bíblico. Não é uma interpretação fácil. Demanda esforço intelectual: muitas vezes os princípios são explícitos, porém em muitas outras vezes são apenas implícitos, sendo extraídos de técnicas de hermenêutica como a interpretação sistemática, teleológico, dentre outras. De toda regra é possível extrair um princípio que dê fundamento de validade à mesma. O trabalho nem sempre é simples.

[15] Explico que ao observar apenas as regras de um sistema normativo, a interpretação sobre o que seria certo ou errado se torna mais fácil, mas não necessariamente a mais correta. Toda regra tem um fundamento de ser, que é o princípio ou o valor que lhe dá vida; caso contrário, teríamos uma regra fruto de mera formalidade, sem um valor que a subjaz. Além do que, é inevitável observarmos regras em conflito: atenção, regras em conflito não retiram a unicidade do sistema: a unicidade do sistema é mantida quando conseguimos conciliar as regras conflitantes. Se dentro de um sistema há regras em conflitos, e de fato há, é preciso então conciliá-las. O trabalho da conciliação, mais uma vez, por mais que se busque neutralidade, é carregado de um aspecto político indissociável. O leitor pode estar se perguntando em que medida a bíblia conteria regras conflitantes. Vamos aos exemplos: um dos mandamentos basilares é não matar. Parece uma regra clara e absoluta que não admite outra que com ela esteja em conflito. Mas, ao esquadrinhar o texto bíblico perceberemos que é lícito matar em legítima defesa. Possível contestação: isso é apenas uma exceção à regra, e não propriamente situação de regras em conflito. Sim, pode ser. Mas a ratio é a mesma. Vejamos: se a bíblia não trouxesse explicitamente essa exceção, será que matar em legítima defesa seria sempre pecado? Não, porque a bíblia não foi exaustiva no rol de exceções à regra, sendo possível que outras situações de matar alguém sejam não pecaminosas, diante das circunstâncias da vida. É possível então pensar em outras situações nas quais a violação a uma regra não seja pecaminosa, mesmo que a exceção não esteja prevista na bíblia. Outro exemplo: não devemos furtar. Alguém que esteja passando fome e furta um pedaço de bolo estará cometendo pecado? Alguns diriam que sim. Acho razoável afirmar que não. É possível dar aqui inúmeros exemplos. Tudo isso para dizer que mesmo uma regra que não conflite com outra necessita de uma escolha racional e em parte política para a eleição de suas exceções. Isso significa que haverá certamente divergências entre interpretações distintas. Se esse entendimento é incindível sobre regras, o será, com mais razão, sobre conflito entre princípios.

[16] E haverá, como já dito, inevitavelmente, regras conflitantes.

[17] Até porque, independentemente do esforço de neutralidade que se faça, o nosso processo de interpretação sempre levará em conta, de forma inconsciente, nossas concepções de vida e de mundo, nossos preconceitos e sentimentos: isso faz com que a plena neutralidade buscada pelos intérpretes se dilua em toda nossa bagagem cultural que carregamos desde o primeiro dia que nascemos.

[18] Assim como muitos, confia no fato de que o público não descobrirá o que és.

[19] Relembro memorável ensinamento sobre o mundo e a natureza: é claro como o sol que o mundo conserva a si mesmo. Singelo e profundo ensinamento.

[20] É preciso dizer que condutas errôneas são as condutas moralmente más, pecaminosas, repudiadas pela Bíblia quando da indicação do que deve ser adotado como algo positivo para nossas vidas. A despeito disso, a possibilidade de as praticar constitui em manifestação de um princípio implícito bíblico, qual seja, a liberdade de ação inata ao homem. É dizer: é possível, então, que algo que seja moralmente errado, dentro da visão cristã, seja, ao mesmo tempo, parte integrante de um princípio basilar divino.

[21] A legítima defesa não é algo só positivado em nosso Código Penal, como fator que exclui a ilicitude de um fato tipicamente considerado como crime. É prevista também no texto sagrado, expressamente, como, utilizando pensamento similar, “excludente do caráter pecaminoso” de uma conduta previamente prevista como pecaminosa.

[22] Se Fulano tenta me matar (conduta pecaminosa), posso me defender, inclusive, matando-o (conduta a princípio pecaminosa, que perde tal qualificação em virtude das circunstâncias do fato).

[23] Sim, estou afirmando que a construção da dignidade e a busca da felicidade se encontram no plano individual, subjetivo, de cada pessoa, sem embargo de poder-se afirmar que determinada felicidade não é aquela planejada por Deus.

[24] Em verdade, o ponto mais crítico do tema aborto está no fato de envolver um terceiro (feto) que não pode emitir vontade e que sofrerá as consequências dos atos de sua mãe ou de outras pessoas.

[25] A título de curiosidade, Kant era protestante.

[26] AQUINO, Tomás de. O Poder de Deus. p. 312