A resenha abaixo é uma apreciação das primeiras 250 páginas das quase 900 que tem a Teologia Sistemática de Paul Tillich. Trata-se de um texto que aborda a crítica de Sartre à noção destino, na visão de um dos mais destacados teólogo protestante do século XX. 

 

 

ATEÍSMO E DESTINO EM SARTRE E O CONTRAPONTO DAS CONSIDERAÇÕES ESSENCIALISTAS DE PAUL TILLICH [1]

 

Como pode o ser humano ser livre e condenado ao mesmo tempo? Estar condenado a ser livre transformou o ser humano e um agente ético que ultrapassa suas condições humanas. Embora Tillich entenda as boas intenções de Sartre, há erros estruturais e ontológicos nessa concepção porque a visão de Sartre transformou o ser humano no que ele não é, não pode ser e nunca foi. O humanismo exige do ser humano algo que ultrapassa as capacidades limitadas da existência.

O destino tem sido visto como que uma privação da liberdade por determinada vertente da filosofia existencialista. [2] Essa posição é mais evidente em Sartre, e claro, nos adeptos de seus postulados. Para Sartre, se há destino, não há mais liberdade. Eis o dilema de Sartre e o dilema dos que a ele se opõem nessa particular questão. O destino, se houver, em Sartre, indica a presença de uma essência anterior à existência e isso ele rejeita em nome da liberdade que deve ser incondicional. Para Sartre, não pode haver uma norma, uma essência, um destino anterior à existência. Segundo ele, o homem se faz, ele é tão somente o seu próprio projeto, ou seja, ele nada mais é do que ele faz de si mesmo. [3]  Se há Deus, então não há mais liberdade, posto que a existência de Deus pressupõe uma norma, portanto, uma essência no entendimento de Sartre. Se, por outro lado, o ser humano é livre e está diante de possibilidades infinitas, a existência só é autêntica se abdicar do essencialismo predecessor. Nesse caso, Deus não seria necessário e não faz sentido algum. Pelo contrário, uma essência anterior à existência é ridícula, segundo esse ponto de vista. Foi o que despertou reações e até acusações de que Sartre não tivesse avaliado corretamente nem o sentido do seja Humanismo e menos ainda, a implicância mais profunda de se considerar o ser humano racional. [4] O ser humano é o seu próprio projeto e como tal escolhe-se a si mesmo; se faz. A ética humanista é aquela que melhor define o ser humano em face de sua razão e de sua realização, quer Sartre. [5]

Tillich reconhece que a filosofia existencialista atéia, como a Sartre, foi decisiva quando chamou a atenção para não tratar o problema divino com uma teologia rasteira. Mas tal filosofia perdeu-se também ao conferir ao ser humano um poder que ele, pela sua imensa alienação e desespero existencial, não pode assumir. Assim sendo, a filosofia atéia ficou prisioneira do pensar possessivo e técnico também. Tomou Deus como um ser análogo à existência. Filósofos como Heidegger e Scheler perceberam essa armadilha e adotaram outras posições sobre a relação filosofia e Deus. Para Tillich, a filosofia existencialista, assim como Sartre a quer, não passa de determinismo e desespero, pois “a perda de um destino significativo implica também a perda da liberdade.[6]

O que para Sartre caracteriza prisão e perda de liberdade é, para Tillich, o único caminho que pode vencer o desespero e a alienação existencial. Segundo Tillich, a crítica de Sartre conclui que Deus pode ser reduzido a um estado da mente, a uma categoria racional. Ao eliminar a possibilidade das essências, Sartre eliminou também o incondicional. De um modo geral, a ontologia de Tillich nem mesmo concebe a possibilidade do ateísmo.[7] A seguinte passagem dá crédito ao que acima se disse: “Pois o homem como pessoa não é possível sem fé. O desespero do cético diante da impossibilidade da verdade mostra que a verdade ainda assim é sua paixão infinita”, diz Tillich.[8] É verdade que a filosofia de Sartre e de outros existencialistas considerados ateus não pode ser considerada cética. Seria um erro de avaliação daquela filosofia se isso fosse afirmado. O argumento estabelecido pela ontologia de Tillich afirma que os existencialistas ateus se esquecem de que,

 

Ninguém é capaz de sair desse círculo “mágico”. Nietzsche, que tentou fazê-lo, anunciou a vinda do Anticristo. Mas o Anticristo é dependente do Cristo contra o qual ele se levanta. Os primeiros gregos, por cuja cultura Nietzsche ansiava, não tiveram de combater o Cristo. De fato, eles prepararam inconscientemente sua vinda ao elaborar as questões às quais ele deu a resposta e as categorias nas quais a reposta podia ser expressa. A filosofia moderna não é pagã. O ateísmo e o anticristianismo não são pagãos. Eles são anticristãos em termos cristãos. [9]  

 

Como pode um ser humano desesperado sob as condições da existência reivindicar a existência de uma liberdade acima do destino? Tillich, aqui, posiciona-se de modo diferente de Sartre, como se vê nesta afirmação:

 

Perder o próprio destino significa perder o sentido do próprio ser. O destino não é fatalidade absurda. É uma necessidade unida a um sentido. [...] A angústia essencial do ser humano diante da possível perda de seu destino transformou-se em desespero existencial acerca do destino como tal. Em conseqüência, a liberdade foi declarada um absoluto e foi separada do destino (Sartre). Mas a liberdade absoluta num ser finito se converte em arbitrariedade e se torna refém de necessidades biológicas e psicológicas. A perda de um destino significativo implica também a perda da liberdade.[10]

 

O destino não é algo exterior ou estranho ao desenvolver do pensar, mas lhe é inerente, intrínseco. É o realizar do pensar que funda o destino. É por isso, segundo Tillich, que liberdade e destino se complementam. É inevitável, inescapável que tenhamos que tomar decisões. Viver é sempre viver em alguma direção. “Nosso destino é aquilo do qual surgem nossas decisões”, diz Tillich.[11] Ou nessa outra passagem em que sustenta a mesma opinião:

 

O destino não é um poder estranho que determina aquilo que me irá acontecer. É minha própria pessoa, tal como dada, formada pela natureza, pela história e por mim mesmo. Meu destino é a base de minha liberdade; minha liberdade participa na configuração de meu destino. Só quem tem liberdade tem um destino. As coisas não têm destino porque não têm liberdade.[12]

 

O destino está relacionado com as opções que a liberdade permite. Mas é preciso ressalvar que “o homem é essencialmente liberdade finita; liberdade não no sentido de indeterminação, porém no sentido de ser capaz de se determinar por meio de decisões no  núcleo de seu ser”.[13] Tillich sabe que o Ser e o Não-Ser não estão na mesma ordem. O Ser é superior em grau ao Não-Ser.[14] O Não-Ser é dependente do Ser que ele nega.[15] O destino tem uma ligação profunda com os princípios ontológicos e a questão da santidade. O destino é essencialmente “amigo” e complementador da razão e da liberdade, pois,

 

[...] o destino não é estranho à verdade, como se estivesse apenas preocupado com alguns aspectos da filosofia e deixasse intocáveis os seus recintos mais sagrados. O destino intromete-se até mesmo no mais sagrado recôndito da filosofia, na verdade mesma, e só respeita o santo dos santos. Só se detém diante da certeza de que o destino é divino e não demoníaco, que realiza o sentido e não o destrói.[16]

 

 

Foi Platão que primeiramente percebeu que a existência é constituída pela dúvida e pela ansiedade, o que Tillich reconhece como o não-ser representado de modo cabal pela morte.[17] Platão percebeu também que o existir não se resume a fatalidades biológicas. A pergunta pelo sentido do Ser pressupõe uma estrutura ontológica incondicional que possibilita o próprio pensar.[18] O ser humano é capaz de estar em dúvida porque tem noção de sua capacidade reflexiva. Em Agostinho isso é a interioridade como presença da luz eterna em nós, a presença de Deus na alma.[19] A ontologia de Tillich é “habitada” pela santidade, e por isso foi chamada de “ontologia mística”.[20]

Em sua “ontologia do amor” Tillich também sustenta esses termos. [21] A expressão, “amor”, foi usada de tantas maneiras que sua compreensão, na maioria das vezes, tende apenas para o sentimentalismo. Assim como a expressão “santo”, também a expressão “amor” foi esvaziada de suas indicações ontológicas. Para Paulo esse termo tem a conotação de “pertença”, de filiação divina. É participar ativamente na prática da justiça porque o verdadeiro cristão sabe que o fim da vida na provisoriedade deste mundo não é o fim, mas o verdadeiro começo de uma etapa nova e definitiva. Tillich diz que “sem uma ligação definitiva não é concebível nenhuma união de uma coisa com outra”.[22] Essa compreensão tillichiana também vem de Agostinho: “O amor não poderá ser, pois, um sentimento subjetivo que se dirige para determinado objeto. [...] É a essência pura, a bem-aventurança, o fundamento divino de todas as coisas”.[23]  E Tillich continua seu argumento dizendo que,

 

A vida é o ser de fato e o amor é o poder propulsionador da vida. Nessas duas sentenças a natureza ontológica de amor está expressa. Elas dizem que o ser não é genuíno sem o amor que conduz tudo o que existe para tudo mais que existe. Na experiência do amor do homem a natureza da vida torna-se manifesta. Amor é unir o que está separado. A reunião pressupõe separação daquilo que estava essencialmente junto. Deveria, portanto, ser errado dar à separação a mesma máxima ontológica que à reunião. Visto que separação pressupõe uma unidade original.[24]

 

Apresentar apenas a reposta bíblica sem compreender que há uma estrutura ontológica implicada foi o erro da teologia liberal. De um modo geral, tem sido o erro das teologias contemporâneas. O ser humano está separado, mas sua essência divina, Tillich diria sua “razão ontológica”, permite perguntar por aquilo que está além das condições limitadas da existência. Esse fundamento é a pertença ao incondicional, que é também santidade para Tillich. Pertencer ao ser de forma essencial é, portanto, estar tomado também pela santidade. O santo, desse modo, sai da moralidade e entra na ontologia. Só quem está consciente de sua relação com aquilo de que está separado pode reconhecer o fundamento complementador da existência, a santidade. A revelação é, em última instância, manifestação da santidade. Para Tillich, portanto, o destino não é uma fatalidade absurda que rouba ou limita a liberdade incondicional dos seres humanos, como defendeu Sartre e o ateísmo de modo geral. Não ter nenhum destino é perdição. Não ter destino significa absolutizar a finita situação de existência e não permitir a abertura ao sentido do Ser. Na visão de Tillich, o existencialismo ateu como, por exemplo, o de Sartre, fez confusão entre aderir a uma determinada confissão religiosa e crer. Crer é mais do que um ato racional a partir de algum dogma ou autoridade. Sartre pode negar-se a aceitar Deus, mas não tem como negar a incondicionalidade das coisas últimas, aquelas em que todo o existir estão envolvidas, a estrutura ontológica. O fato de Sartre reconhecer que o ser humano está condenado a ser livre, por exemplo, aponta que a liberdade é uma questão central e última na existência e manifesta incondicionalidade. Portanto, a condenação à liberdade, nesses termos, é categoria ontológica que aponta à incondicionalidade. Mas não é a liberdade que é incondicional e sim o que ela indica. O ateísmo só pode ser sempre prático ao negar-se a aceitar as formulações dogmáticas de determinada tradição religiosa, mas não pode negar que a incondicionalidade com a qual a existência se defronta não seja algo decisivo em termos ontológicos.

 

REFERÊNCIAS

 

 

BOEHNER, Philotheus & GILSON, Etienne. História da filosofia cristã. 9ª edição. Tradução de Raimundo Vier. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.

COMTE-SPONVILLE, André. O espírito do ateísmo: introdução a uma espiritualidade sem Deus. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: martins Fontes, 2009.

HORN, Gerlado Balduino, Org. Textos filosóficos em discussão: Platão, Maquiavel, Descartes e Sartre. Curitiba: Elenco, 2006

LEBER, W.S. Ontologia e revelação: a filosofia no sistema teológico de Paul Tillich. [Dissertação de Mestrado em Filosofia]. Florianópolis: Centro de Filosofia e Ciências Humanas, 2007. Disponível em <http://www.tede.ufsc.br/teses/PFIL0077-D.pdf>

MUELLER, Enio Ronald & BEIMS, Robert Walter. Orgs. Fronteiras e interfaces: o pensamento de Paul Tillich em perspectiva interdisciplinar. São Leopoldo, RS: Sinodal: 2005.

PLATÃO. Fédon. Tradução de Heloisa da Graça Burati. São Paulo: Rideel, 2005. (Coleção: Biblioteca Clássica).

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. 3ª edição. Tradução de Rita Guedes. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 3-32. (Coleção: Os Pensadores).  

TILLICH, Paul. A coragem de ser. Baseado nas conferências Terry  pronunciadas na Yale University. Tradução de Eglê Malheiros. 5ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

______ . A dinâmica da fé. Tradução de Walter Schlupp. 5ª edição. São Leopoldo, RS: Sinodal, 1996.

______ . A era protestante. Tradução de Jaci Maraschin. São Paulo: São Bernardo do Campo (SP): Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, 1992.

______. Amor, poder e justiça: análises ontológicas e aplicações éticas.Tradução de Sérgio Paulo de Oliveira. São Paulo: Novo Século, 2004.

______. História do pensamento cristão. Tradução de Jaci Maraschin. 3ª edição. São

Paulo: ASTE, 2004.

______. Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX. Tradução de Jaci Maraschin. São Paulo: ASTE, 1986.

______. Teologia sistemática: Três volumes em Um. Tradução de Getúlio Bertelli e Geraldo Korndörffer; revisão de Enio Müller. 5ª edição. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2005

 

 

 

 

 

[1] O capitulo III deste trabalho é um trecho extraído de minha dissertação de mestrado em filosofia, com supressões e adaptações, apresentada à Universidade Federal de Santa Catarina em 2007, parte 2.4.2, p. 55 – 59, disponível no seguinte endereço: http://www.tede.ufsc.br/teses/PFIL0077-D.pdf. Ver referência: LEBER, W.S. Ontologia e revelação: a filosofia no sistema teológico de Paul Tillich. [Dissertação de Mestrado em Filosofia]. Florianópolis: Centro de Filosofia e Ciências Humanas, 2007.

[2] TILLICH, A era protestante, p. 34, “Somente quem chegasse à liberdade absoluta estaria isento do destino. A filosofia tem procurado, muitas vezes, se colocar nessa posição. [...] Tem pressuposto que seus processos de pensamento são idênticos à autoconsciência divina. Mas quando se chega a esse ponto, o orgulho antecede a queda, como se pode ver no espetacular colapso do sistema de Hegel”.

[3]  Por exemplo, já repetido acima, SARTRE, O existencialismo é um humanismo, p. 06.

[4] Aqui vale também outra assertiva do pensamento de Sartre. Por exemplo “É o homem que inventa o homem”, ou então “Não há moral geral”, conforme comentário em HORN, Org. Textos filosóficos em discussão, p. 122-123. .

[5] Essa posição é bem típica do antiessencialismo de Sartre, como se lê nesta passagem: “[...] É preciso que o homem se reencontre e se convença de que nada pode salvá-lo dele próprio, nem mesmo uma prova válida da existência de Deus”. SARTRE, O existencialismo é um humanismo. In: Os pensadores, p. 22.

[6] TILLICH, Teologia sistemática, p. 210.

[7] TILLICH procurou mostrar com A dinâmica da fé e A coragem de ser que o ateísmo metodológico radical não é possível. A ontologia é possibilidade de percepção do infinito, mesmo que apenas por sombras no sentido platônico. Esse é o princípio agostiniano que sustenta os pressupostos de Tillich. 

[8] TILLICH, A dinâmica da fé, p. 17.

[9] TILLICH, Teologia…op. cit., p. 44

[10] TILLICH, op. cit., p. 209.

[11] Id.ibid, p. 193.

[12] Id.ibid.,  p. 194.

[13] TILLICH, Coragem de ser, p. 40.

[14]  Op. cit., p. 26.

[15] Id. ibid., p. 31.

[16] TILLICH, A era protestante, p. 43.

[17] O saber da morte faz com que vivamos de um modo totalmente diferente. Podemos sofrer de ansiedade por algo que ainda acontecerá. TILLICH, Coragem de ser, p. 43.

[18] PLATÃO, Fédon, p. 49, “Portanto, Símias, antes de revestir a forma humana, a alma existe por si só e está apta a pensar”.

[19] BOEHNER e GILSON, História da filosofia cristã, p. 167.

[20] TILLICH, Perspectivas da teologia nos séculos XIX e XX, p. 21.

[21] TILLICH, Amor poder e justiça: análises ontológicas e aplicações éticas, p. 35-42.

[22] Op. cit., p. 36.

[23] TILLICH, P. História do pensamento cristão, p. 129.  

[24] TILLICH, Amor...op. cit., p. 36.