CRIANÇAS INSTITUCIONALIZADAS
Por Bruna Hecht | 27/04/2010 | PsicologiaINTRODUÇÃO
Quando uma criança nasce precisa se adaptar a um mundo completamente novo. Desde o nascimento até pelo sexto mês seu interesse centraliza-se quase que exclusivamente na mãe. Com poucos dias de vida já sabe muito sobre ela, é capaz de reconhecê-la pela voz e pelo olfato. Reconhece os ritmos de seu coração, ao qual se habituou durante os nove meses da gestação (Aberastury, 1992). A criança pouco sabe ainda sobre o mundo, e seus pais, somente eles, despertam seu sentido de sobrevivência e sua percepção de segurança por não estar sozinha nesse mundo assustador. No primeiro ano de vida, a relação é muito mais com a mãe que com o pai, que somente após esse período passa a figurar nela. Pouco tempo depois, a criança já passa a aceitar em plano de igual amor os avós, babás, e outros que eventualmente lhe reafirmarem os sentimentos de sobrevivência (Antunes, 2000).
O bebê pequeno tem o mundo limitado às suas necessidades corporais (Winnicott, 2000). A mãe, quem melhor conhece o bebê, busca satisfazer tais necessidades, pois apesar de indefeso e incapaz, o bebê vai se adaptar (Spitz, 1958) através do contato, calor corporal, movimento, alimentação, cuidados higiênicos que a mãe proporcionará (Winnicott, 2000), esses cuidados fazem o bebê sentir-se amado, o que influenciará na visão de si próprio, nas suas relações interpessoais, na sua auto-estima, pois conforme Aragão, (2004, p.21) “o conjunto das interações precoces vividas pelo bebê em seu corpo e em seu comportamento dão lugar a uma atividade de mentalização e figuração absolutamente essencial na ontogênese do aparelho psíquico da criança”.
O psicanalista René Spitz (1958) chamou a atenção para a importância do afeto na relação mãe-filho, vendo-o como essencial durante a infância e sugerindo que é a partir desta relação que nasce e desenvolve-se a consciência do bebê. Dirigiu seus estudos observando a participação vital da mãe ao oferecer um clima emocional favorável ao desenvolvimento do filho, sobre todos os aspectos. A ternura da mãe proporciona uma extensa gama de experiências vitais ao bebê e sua atitude afetiva determina a qualidade da experiência. Para Winnicott (2000), a boa evolução dos estágios posteriores ao desenvolvimento dependem, principalmente, de bons resultados nos primeiros contatos do bebê com a mãe ou cuidadora.
Durante os três primeiros meses o sistema sensorial, a discriminação e o aparelho perceptivo ainda não estão desenvolvidos do ponto de vista psicológico, e tampouco do físico, por isso as experiências do bebê se limitam ao afeto. Os sinais afetivos da mãe constroem uma forma de comunicação ao q ual consegue proporcionar respostas totais ao bebê. Esta interação entre mãe-filho exerce uma pressão que dá forma ao psiquismo infantil, e a qualidade, a consistência, a certeza e estabilidade deste afeto é o que assegura o desenvolvimento psíquico normal do bebê.
Quando existe um bebê sadio e uma mulher consciente do seu desejo de ser mãe, a experiência de interação resultará quase sempre, numa representação harmoniosa da interação. Mas a relação pode ser tensa, conflituosa e então o corpo do bebê expressará sua inconformidade através de somatizações (Aragão, 2004, p.214)
ou se terá uma interação caótica que poderá resultar em um futura psicopatologia.
Para Bowlby (1981), é a partir dessa interação afetiva mãe-bebê que se constitui as primeiras representações mentais do recém-nascido, sendo a mãe considerada uma figura de apego, pois é quem através do seu contato, satisfaz a necessidade social primária do bebê. É na identificação primária que a criança estabelece sua condição de ser, de existir. Esse processo implica a base de sua saúde mental (Winnicott, 2000). Logo ao nascer, o bebê é alguém que necessita de maternagem para que possa existir. Aragão (2004) trás a idéia de que o bebê é um humano a partir do momento que alguém o reconhece como tal. O reconhecimento está resumindo o processo da presença – a presença do outro, a presença materna – constitutiva de psiquismo, ou seja, condição decisiva para o nascimento psíquico, na medida em que reconhece as necessidades do bebê e que, as satisfaz e ampara o bebê, criando meios de trânsito de satisfação pulsional, dando-lhe trâmite e ligando.
Em um contexto urbano brasileiro, Seidl de Moura, Ribas, Seabra, et al (2004 e 2008), examinaram as características das interações das mães com seus bebês analisando os comportamentos. Um conjunto de atividades comuns como parceiros em trocas sociais foi identificado e algumas das características das interações iniciais foram analisadas. Os episódios de interação do tipo face-a-face predominou, se caracterizando principalmente pelas atividades de tocar, olhar e mamar. As atividades predominantes das mães foram: olhar o bebê (99,2%) e tocar o bebê (83,4%). Alem disso, observou-se vários momentos de interação através da estimulação por objetos, assim como interações afetivas através do contato corporal. Estes achados sugerem a importância das atividades de olhar e tocar no processo interacional mãe-bebê, reforçando a importância da afetividade como construtiva nestas interações e fundamental para o desenvolvimento infantil. Assim vê-se o quão positivo é para o bebê a possibilidade de trocas afetivas e corporais com a mãe e o quão significativo pode ser a falta disto para bebês institucionalizados que não possuem esse contato.
Do ponto de vista do desenvolvimento global da criança, percebe-se que as relações afetivas entre mãe e bebê ganharam destaque e existem vários autores que se dedicaram ao estudo da relação mãe-bebê. As primeiras pesquisas que visavam compreender de forma mais profunda o binômio mãe-filho tiveram origem após o término da Segunda Guerra Mundial. Nesse momento, as crianças órfãs, ou as abandonadas pelas mães, foram usadas como objeto de estudo. Na época, verificou-se que a ausência materna provocava distúrbios em diversas áreas da vida da criança. Trabalhando em um orfanato perto dos Estados Unidos, Spitz (1958) observou que os bebês que eram alimentados e vestidos, mas quase não recebiam afeto, nem eram segurados no colo ou embalados, apresentavam uma síndrome que ele denominou de hospitalismo. Eles apresentavam dificuldades no seu desenvolvimento físico, tinham o rosto vazio de expressão, tinham insônia, faltava-lhes apetite, não ganhavam peso e, aos poucos, iam perdendo interesse por se relacionar, o que na maioria das vezes os levava ao óbito. Assim se afirmou que a ausência das relações objetais, causada pela carência afetiva, detém o desenvolvimento em todos os setores da personalidade. Quando existe carência das relações objetais fica impossível a descarga de impulsos agressivos naturais, então o bebê volta a agressão para si mesmo, se negando a assimilar a comida, se tornando vítima da insônia. Mais tarde, estas crianças atacam a si próprios, dando cabeçadas contra a parede, arrancando tufos de cabelo, etc. Spitz descreveu o resultado da ausência dos pais e do afeto como fator determinante no desenvolvimento com prognóstico reservado.
CRIANÇAS ABRIGADAS
No intuito de compreender as vivências emocionais de crianças abrigadas, Careta & Motta (2007) acompanharam o caso de uma criança abrigada desde recém- nascida. Verificaram que, diante de situações ansiogênicas, a criança expressou uma dissociação, ademais apresentou comportamentos amorfos, sem vivacidade, comunicando necessidade de intervenção psicológica. As autoras identificaram a forte influência do ambiente na formação e no desenvolvimento emocional de uma criança.
Diversas pesquisas relacionam condutas de risco com crianças que vivenciaram a ausência materna ou tiveram um relacionamento perturbado com suas mães nos primeiros anos de vida. Para Bowlby (1981), o desenvolvimento de crianças institucionalizadas desde cedo é causador de danos significativos, tanto fisicamente quanto mentalmente. O autor refere que desde a primeira semana de vida os efeitos da privação dos cuidados maternos podem ser observados nos bebês. O bebê “pode deixar de sorrir para um rosto humano ou de reagir quando alguém brinca com ele, pode ficar inapetente ou, apesar de bem nutrido, pode não engordar, pode dormir mal e não demonstrar iniciativa” (Bowlby, 1981, p.22). Outros sintomas típicos de crianças que tiveram tais experiências são:
relacionamento superficial, nenhum sentimento verdadeiro – nenhuma capacidade de se interessar pelas pessoas ou de fazer amizades profundas; inacessibilidade, exasperante para os que tentam ajudá-la; nenhuma reação emocional em situações em que isto seria normal – uma estranha falta de preocupação; falsidade e evasivas, frequentemente sem motivo; furtos; falta de concentração na escola (Bowlby, 1981, p. 35).
Siqueira & Andriatte (2001) realizaram um estudo observacional sobre o vínculo afetivo de bebês institucionalizados. Percebeu-se a existência de comprometimento no desenvolvimento afetivo dos bebês que vivenciaram contínuas experiências de privação afetiva, além da falta de uma pessoa para se vincular estavelmente. Acarretando em conseqüência disso, graves distúrbios para o desenvolvimento destas crianças, comprometendo suas condições de vinculação com o meio ambiente. A falta de preparo das cuidadoras, seu distanciamento afetivo, a rejeição e o grande número de crianças pode ser vistos através do comportamento dos bebês que demonstram o quão negativo é a experiência da institucionalização
Analisando a literatura é possível perceber que são inúmeras as fontes que nos dão provas de que a privação do amor materno, na primeira infância, pode ter efeitos duradouros sobre a saúde mental e o desenvolvimento da personalidade nos indivíduos. A objeção que se pode fazer a todos estes trabalhos é que, provavelmente, estudaram apenas crianças que tiveram um mau desenvolvimento e deixam de considerar aquelas que passaram pelo mesmo tipo de experiências, mas se desenvolveram normalmente.
Sem dúvida, para crianças pequenas que assimilam a realidade de acordo com a referência materna, a separação da mãe gera conseqüências traumáticas, podendo provocar uma série de defesas na criança. A partir disto, Zornig & Levy (2006) procuraram discutir as relações iniciais no processo de construção subjetiva das crianças, através do caso clínico de uma criança adotada tardiamente, com uma história de vida inicial marcada pela relação com uma mãe psicótica. Ainda, Mondardo & Valentina (1998) também estudaram o caso de uma criança com falhas na vinculação materna. A menina ficou exposta a situações de riscos, que ficaram registrados no seu aparelho psíquico como descuido e desapego materno. Por conseqüência, na psicoterapia viu-se que a menina apresentava dificuldades para estabelecer novos vínculos, apresentando comprometimento na representação psíquica de si, da individualidade e da sua identidade. Entretanto, apesar de sabido da importância da qualidade dos cuidados parentais no inicio da vida do bebê, o que foi observado nos dois casos citados acima é que as crianças conseguiam apegar-se em novos relacionamentos que lhe passavam segurança. Com isso, concluiu-se que nunca podemos deixar de “considerar o potencial criativo e a incrível capacidade regenerativa das crianças na procura de vínculos alternativos que lhes forneçam experiências de acolhimento, intimidade e relacionamento contínuo” (Zornig & Levy, 2006, p. 30). Dessa forma, demonstra-se que nem sempre o que se revela como determinante é o evento em si, mas sim a forma como buscamos repetir e elaborar este trauma.
Alexandre & Vieira (2004) complementaram esta idéia através da observação de crianças, de três a nove anos, abrigadas em cidade lotorânea de Santa Catarina. Após a separação de suas famílias, as crianças buscam outras referências de apego, mantendo relações afetivas com outras crianças à semelhança do apego da díade mãe-bebê: irmãos mais velhos cuidavam dos irmãos menores. Mesmo entre os pares estabeleciam relação de apego. Com relação à figura da mãe, existe uma visão mais idealizada do que real, onde enxergam-as como capazes de tirá-los do abrigo e levá-los para casa, onde seriam cuidados e amados. Ademais, nota-se o forte desejo e a necessidade de manter o vínculo com suas mães e com suas famílias, de origem ou substituta.
Bowlby (1981) antigamente já sugeria os cuidados substitutos como uma forma de tentar diminuir os danos causados pela privação do amor dos pais nas crianças institucionalizadas. Esses cuidados, realizados por uma mãe substituta, são imprescindíveis para o desenvolvimento da criança e para a formação do seu psiquismo, mesmo sendo sabido que eles não são totalmente adequados.
Cavalcante & Jorge (2008) buscaram compreender o significado das mães substitutas pertencentes aos programas de Família Acolhedora do estado do Ceará. Constataram que o sentido de mãe não está diretamente relacionado à mãe biológica. As crianças trazem a insegurança gerada na privação inicial com a mãe biológica para dentro da nova relação, porém também trazem a esperança de transformação: o que não encontraram na relação objetal primária é buscado agora na mãe acolhedora. Os autores concluíram, assim como Bowlby (1981) havia afirmado, que a figura materna, mesmo provisória e substituta, minimiza os efeitos nocivos da privação, pois possibilita a existência de uma relação afetiva, contribuindo para a saúde mental das crianças.
Vale ressaltar que ainda são desconhecidas as causas que desencadeiam os possíveis prejuízos em algumas crianças e em outras não. Estudos dão conta de que quanto mais longa a duração da ausência materna, maior será o prejuízo no desenvolvimento da criança, além disso, devem ser considerados também fatores hereditários, alem da idade da criança e grau de privação a que foi submetida.
É possível afirmar que existe, hoje, um relativo consenso em torno da idéia de que a institucionalização em si mesma abre um campo favorável para a configuração de várias situações de risco (tratamento massificado, privação da convivência familiar, separação da figura de apego, confinamento social), mas que somente a combinação entre a natureza, a quantidade e a intensidade dos fatores de risco decorrentes dessa experiência de privação afetiva seriam capazes de definir o quão adversas e hostis podem ser as condições do ambiente físico e social para o desenvolvimento da criança que se encontra sob os cuidados do abrigo (Cavalcante, Magalhães e Pontes, 2007b, p. 343).
Infelizmente, a problemática da institucionalização está “presente na realidade de muitas famílias brasileiras em condições socioeconômicas desfavorecidas” (Siqueira & Dell’ Aglio, 2006, p. 71) e não há dúvidas de que isto ainda é um desafio a nossa sociedade. Conforme Vectore & Carvalho (2008), dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (2008) mostraram que o Brasil possui a maior população das Américas entre zero a seis anos, equivalendo a 11% da população brasileira; desta, a maioria encontra-se em situação de pobreza, evidenciando um desenvolvimento negligente a nível nacional, do ponto de vista social. Considerando as questões apontadas até aqui sobre a importância fundamental da presença materna no desenvolvimento infantil, podemos pensar a respeito da construção psíquica das crianças abrigadas. Para tanto, precisamos primeiramente compreender o surgimento das instituições de abrigagem, suas funções e sua realidade.
Desde a década de
Alguns autores brasileiros, como Vectore e Carvalho (2008); Cavalcante, Magalhães e Pontes (2007a), percebem a institucionalização como prejudicial ao desenvolvimento infantil, não tendo possibilidades de ações que possam alterar a realidade de quem necessita ser afastado de seu meio familiar, por estar sofrendo algum tipo de violação de direitos. Esse autores que partem da premissa de que a institucionalização não é a melhor opção para o desenvolvimento e socialização, já que as crianças e adolescentes não desfrutam de atendimento personalizado em razão do número desproporcional de cuidadores por criança. Além disso, demonstram que as atividades desenvolvidas neste espaço não contemplam todas as necessidades básicas daqueles ali instituídos. Entretanto, outros estudos demonstram que em situações graves na família, a instituição pode ser a melhor opção de apoio e afeto (Dell’Aglio, 2000). Aí que entra o segundo grupo, que acredita no papel desempenhado por essas instituições de atendimento que compõem a rede de apoio social, avaliando essa alternativa como positiva. Nesse grupo, entretanto, há autores que relativizam um pouco os efeitos positivos, admitindo que o abrigo pode ou não constituir um risco para o desenvolvimento das crianças e adolescentes, dependendo de suas histórias pregressas (Janczura, 2008).
Neste grupo que entende a institucionalização como uma oportunidade positiva para o desenvolvimento dos jovens está Marin (1999). A autora demonstra que a criança encontra na instituição os limites para aquisição de sua identidade, colocando-a como um sujeito ativo. A desmistificação desses aspectos abre espaço para que a instituição seja uma alternativa e possibilidade viável ao desenvolvimento integral da criança, mesmo privada da convivência familiar. Siqueira e Dell’ Aglio (2006, p 73) afirmam que a instituição de abrigo é um local muito importante, pois é onde os abrigados “realizam um grande número de atividades, funções e interações, como também um ambiente com potencial para o desenvolvimento de relações recíprocas, de equilíbrio de poder e de afeto”. Ademais, o abrigo não é somente um local de moradia, pois também proporciona recursos para o enfrentamento de todo o tipo de situação de vida, adversa ou positiva. O apoio social e afetivo oferecido pela instituição pode gerar “o desenvolvimento da capacidade de enfrentamento de adversidades promovendo características de resiliência e desenvolvimento adaptativo” (Siqueira & Dell’ Aglio, 2006, p. 77). Orionte & Souza (2005, p. 40) verificaram nas crianças que pesquisaram, que estas “demonstram capacidade de enfrentamento das adversidades pouco comum em crianças da mesma idade que vivem fora desse ambiente”.
Além do mais, para Santana & Koller (2004), a instituição deve ser repensada como um local em que os abrigados podem construir referenciais identificatórios positivos, do ponto de vista da construção de sujeitos. Considerando que os monitores desempenham papel central, como aqueles que irão orientá-los e protegê-los, eles se tornam seus modelos identificatórios, fazendo parte da sua rede de apoio social e afetivo. Dessa forma, pode-se dizer que as boas experiências de uma criança ou adolescente nas instituições vão depender dos vínculos afetivos e do apoio social que a instituição vai desempenhar para eles, servindo de mais um elo para a formação de suas identidades e para o seu desenvolvimento e criando oportunidades para o enfrentamento da vida social e pessoal.
Orionte & Souza (2005) percebem que os vínculos afetivos são aliados importantes na hora de ajudar as crianças a enfrentar a sua realidade tão triste.
As vinculações afetivas estabelecidas antes da institucionalização, mediadas principalmente por violência de toda ordem, comparecem de forma sólida. Elas não se dissolvem com os anos vividos na instituição. Possivelmente, o pouco que obtiveram nas relações é guardado como um tesouro do qual não querem se desfazer. Percebe-se, no contato com as crianças, disponibilidade enorme para estabelecer novos vínculos. Evidencia-se, no primeiro momento, uma desconfiança bastante significativa, mas, respeitado o tempo de cada uma, esse temor vai-se transformando, dando lugar à credibilidade, e uma gradativa confiança se estabelece. A desconfiança inicial reside principalmente no receio de não ser acolhido e também na insegurança ante a possibilidade de um novo abandono. É, aliás, uma forma muito saudável de se proteger diante de tantas e repetidas surpresas massacrantes que a vida lhes tem proporcionado (Orionte & Souza, 2005, p 40).
Cavalcante, Magalhães & Pontes (2007a) verificaram nas instituições de abrigos de Belém que as crianças com longa permanência se relacionam com diversas pessoas da instituição, mas principalmente os funcionários acabam se tornando referência familiar. No que se refere à constituição dos vínculos afetivos dentro da instituição, Vectore & Carvalho (2008) em um de seus estudos constataram, de acordo com relato do gestor, que há certa incoerência, pois muitas vezes existe um receio da equipe de que o excesso de apego possa comprometer outros processos referentes ao abrigamento (momentos de adoção, retorno a família de origem, etc). Ademais, existe uma alta rotatividade dos funcionários, o que gera novas rupturas nos vínculos já então estabelecidos com as crianças, dificultando a possibilidade de um ambiente seguro que permita tal vinculação. Nogueira & Costa (2005b) explicam que cada vez que troca-se de mãe sociais, a criança vive outra situação de abandono e mais um vínculo é rompido. Entretanto, sabe-se que as possibilidades de reparação e reestruturação do desenvolvimento psíquico dos abandonados estão diretamente ligadas ao trabalho realizado pelas mães sociais, uma vez que são elas que passam a maior parte do tempo com as crianças e acompanham diretamente suas brincadeiras, interações, rotinas, observando seus comportamentos, atitudes, sentimentos
Preocupados em entender o significado da figura materna, Nogueira & Costa (2005a; 2005b) analisaram a função da mãe social que trabalha diariamente dentro de uma instituição de abrigo para crianças pequenas. A mãe social em questão cuidava de várias crianças e devido a esse grande número, associado a uma rotina marcada por atividades a serem cumpridas, havia uma dificuldade de interação entre adulto e criança. Na tentativa de manter controle e organização, a mãe limitava o movimento das crianças, que ficavam sentadas no sofá, assistindo televisão, enquanto aguardam a atividade seguinte. Concluiu-se que a instituição tem dificuldade em acolher e oferecer cuidados de qualidade, na forma de relações afetivas estáveis, oferecendo apenas um atendimento marcado pela rapidez do contato, que desconsidera a necessidade e o ritmo de cada criança, atendendo apenas as necessidades básicas deles. Avaliando a FEBEM de São Paulo, Guirardo (2004), também a percebeu como uma mãe substituta que não leva em conta as diferenças individuais dos seus “filhos”, pois não os solicita nem interage fisicamente nem verbalmente, tendo uma posição de arbitrariedade ao impor uma rotina de hábitos não respeitando as necessidades de cada criança.
Um estudo feito numa instituição de abrigo no interior do estado de São Paulo constatou que os bebês em torno de um ano recebiam “pouca estimulação por parte das monitoras. Aqueles que ainda não andavam ou engatinhavam ficavam praticamente todo o tempo sentados em seus carrinhos ou em cercadinhos, acompanhados ou não de brinquedos” (Barros & Fiamenghi Jr, 2007, p.1271). Da mesma forma, a relação das monitoras com as crianças muitas vezes era marcada por repreensões e atitudes hostis, porém existiam momentos de manifestações de carinho, oferecendo-lhes oportunidades de atenção e trocas afetivas. “Contudo, os elogios e gestos de ternura eram raros, enquanto palavras destrutivas e ameaças ocorriam em grande parte do tempo” (Barros & Fiamenghi Jr, 2007, p.1272). Pequenas violências também passam despercebidas dentro da instituição (Nogueira & Costa, 2005b). Um exemplo é a forma de falar da mãe social com as crianças, que evidencia um desrespeito em relação aos seus sentimentos e suas ações, fazendo comentários a respeito dos seus comportamentos. Existe uma dificuldade de contenção e legitimação do sentimento da criança, sendo este desconsiderado e desvalorizado. Através desses fatos, percebe-se que “dentre os sentimentos mais freqüentes que surgem nos cuidadores estão: a falta de ânimo e a vontade de fugir, além de cólera e hostilidade” (Nogueira & Costa, 2005a, p. 42). Desta forma, além de evidenciar-se uma falta de preparo nas monitoras para cuidar das crianças, questiona-se quais são as reais possibilidades de uma criança que possui energia para andar, engatinhar ou brincar, mas que permanece horas sentada no sofá, possuir um desenvolvimento rico e saudável. “Em diversos momentos, pudemos constatar o olhar de apatia e insatisfação das crianças que, muitas vezes, se mexiam e levantavam dos carrinhos, na tentativa frustrada de sair, desistindo e adotando uma posição passiva e apática logo em seguida” (Nogueira & Costa, 2005a, p.45).
Para Cavalcante, Magalhães e Pontes (2007b), considerando a segurança e o bem-estar que podem proporcionar, as instituições de abrigo oferecem vantagens inegáveis. Pode-se fazer uma comparação às prisões e colégios internos devido a suas rotinas específicas e regras fixas, de forma a salientar a ambigüidade vivenciada nestes locais. Entretanto, na mesma proporção que o abrigo promove o acolhimento e segurança necessários para os jovens abrigados, ele também restringe o direito a individualidade, a intimidade e as particularidades de cada um, já que não pode assistir de maneira individual cada indivíduo. Rêgo, Lima e Amazonas (2006) compartilham dessa mesma idéia e enfatizam a falta de individualização vivenciada por crianças institucionalizadas, já que é comum na chegada ao abrigo ter que desfazer-se de seus pertences e objetos pessoais, em virtude da convivência coletiva. Além disto, para uma instituição de abrigo funcionar de forma organizada e com rotina adequada é preciso incentivar a passividade das crianças. Qualquer movimento contrário a cultura da instituição pode acarretar na sua desestruturação, pois quando as diferenças são exaltadas e a criança é vista como um ser com identidade própria podem ocorrer conflitos e questionamentos que prejudicariam a padronização.
Em Goiânia, um estudo buscando compreender o significado do abandono para crianças institucionalizadas constatou que as categorias de significado que mais se destacam na fala das crianças foram a invisibilidade, transgressão e vínculos afetivos. As crianças não conseguem se fazer ouvidas, pois pela invisibilidade a opinião delas é desvalorizada, prevalecendo somente idéias de autoridades. Dessa forma, desaparecem como sujeito, dando lugar a um “sujeito assujeitado”, pois “impedi-la de participar da própria vida é tratá-la como objeto, ‘coisa’, submetida unicamente ao poder do adulto” (Orionte & Souza, 2005, p. 36).
Alem das experiências dolorosas vivenciadas antes da institucionalização, a criança abrigada parece dispor de um espaço restrito para manifestar os seus desejos e necessidades, se de fazer ouvida e compreendida, sujeitando-se continuamente às rotinas rígidas da instituição, às normas do judiciário, enfim, constituindo-se dia-a-dia num ‘sujeito sujeitado’ (Vectore & Carvalho, 2008, p 447).
Entretanto, algumas crianças não aceitam de forma passiva esta condição que as excluem e as ignoram e, em contraposição, buscam tornar-se visíveis através da transgressão (fugas, brigas, reclamações). O que percebe-se é que as crianças “sentem-se desprotegidas, representação que se destaca pelo desejo de ter uma família, a ponto de criar um pai ou uma mãe imaginários” (Orionte & Souza, 2005, p 44). Em função das situações de maternagem desfavoráveis à que foram submetidas, os abrigados, muitas vezes, criam mecanismos de defesa para dar conta dos seus sentimentos de abandono e desproteção, desenvolvendo, até mesmo, comportamentos anti-sociais, que são inerentes à situação de privação vivida por eles. Rotondaro (2002) percebe um medo de vinculação por parte dos abrigados, justificando que para essas crianças – que observou terem baixa auto-estima devido ao abandono familiar e demora para se envolverem na terapia – o vínculo parece ser algo ameaçador. Existe um medo constante de perder pessoas que estão vinculadas e/ou dependem atualmente, por isso deve-se respeitar o tempo que cada um levará para se vincular. Independente das dificuldades, a psicóloga reforça a importância de oferecer este espaço na instituição, pois pode observar na psicoterapia lúdica, que os meninos conseguem reconstruir o seu sentimento de confiança, tanto em si quanto pelo próximo. A psicoterapia oportuniza às crianças experimentarem diversos papéis, oferecendo um espaço para a expressão da criatividade e da individualidade dos pequenos, pois sabe-se que dentro de uma instituição onde as crianças são vista no coletivo, essas características ficam camufladas e pouco estimuladas, permitindo a elas então, através do lúdico, re-significar o seu processo de desenvolvimento.
Para poder julgar a qualidade das experiências que a instituição propicia para cada um de seus abrigados, é importante tentar entender o universo da criança abrigada, para isso Martins & Szymanski (2004) observaram crianças da Febem de São Paulo brincando livremente de casinha. Apesar de terem histórias de vidas familiares difíceis, na hora da brincadeira, reproduziram um modelo de família típico das vistas nas historias e na televisão, constituída por uma família harmoniosa como nos modelos tradicionais, onde há respeito e união, com uma mãe cuidadosa e um pai trabalhador. A família que foi representada pelas crianças nos permite acreditar que, mesmo não recebendo um cuidado adequado tanto afetivo quanto social, elas “demonstram qualidades e habilidades sociais suficientes para, futuramente, se inserirem num contexto social mais amplo” (Martins & Szymanski, 2004, p. 187).
Pesquisas sobre a auto-imagem corporal de crianças institucionalizadas enfatizam a institucionalização em si como causadora de mudanças emocionais e de auto-estima em suas vidas. Paisan e Jacquemin (1999) entendem que a imagem corporal é decorrente do tipo de experiência de vida social da criança. As experiências vivenciadas pela criança ao viver fora de seu lar têm interferência significativa na sua imagem corporal, sendo inegável que a institucionalização afeta o seu auto-conceito, provavelmente pela intensidade do impacto dos fatores sócio-afetivos inerentes a essa vivência. A identidade da criança, seja ela institucionalizada ou não, está em permanente construção edificada através do contato com o outro (Rêgo, Lima e Amazonas, 2006). Entendendo que a imagem corporal é o resultado daquilo que a pessoa percebe de si e do mundo, Zórtea; Kreutz e Johann (2008) comparam a imagem corporal de crianças institucionalizadas e daquelas que não são, onde identificaram que crianças institucionalizadas tinham dúvidas quanto as suas qualidades, precisando perguntar para a professora se é mesmo bonita ou se tem valor. É possível que a ausência parental e a precariedade do individualismo no dia-a-dia da criança seja um fator que influencie na sua valorização, insegurança e potencialidade.
O que pode-se pensar é que a adaptação a realidade na maior-idade não é um privilégio das crianças que possuem uma vida em família, até porque, como pode ser comprovado, a relação familiar não prediz invariavelmente filhos saudáveis. Mas se pensar instituição de abrigo como promoção social existe uma diferença para a criança “ocupar o lugar de filho ou de assistido nas representações do cuidador” (Guirardo, 2004, p. 203). Dessa forma vemos que a instituição nunca substituirá o atendimento familiar, pois ao tentar colocar-se como substituto da família, a instituição torna seu funcionamento inadequado, já que “o que supostamente favoreceria o desenvolvimento dos indivíduos, apóia-se na contramão do processo constituinte de uma identidade saudável” (Rêgo, Lima e Amazonas, 2006, p. 5). É um cuidado e uma relação diferente. Na instituição ocorre a padronização e a perda do significado individual inerente a rotina institucional e a rotatividade dos cuidadores que ali trabalham. Além disso, os rótulos de “criança abandonada” e de “coitada” que as crianças recebem favorecem a precariedade de uma identidade construída nesse espaço. Ademais, em uma sociedade em que coloca a família na posição de “quem dá as coordenadas de uma adaptação social e de uma saúde mental, numa sociedade em que se valorizam modelos de relação, provavelmente se consideram sempre à margem aqueles que não se constituírem nesta ordem” (Guirardo, 2004, p. 203). Para Cavalcante, Magalhães e Pontes (2007b), querendo ou não, o abrigo nunca será um ambiente com características típicas de um lar. Dessa forma, a permanência em um abrigo pode limitar a chance de uma convivência íntima e afetuosa e também restringir a sensação de liberdade , o que a vida em família geralmente oferece à criança.
Para Pereira (2006), abrigamento de crianças e adolescentes não é um ambiente ideal e nem solução para a criança abandonada, pois não desenvolve nem estimula um trabalho integrado de apoio à convivência familiar, o que ela vê como fundamental para o bom desenvolvimento infantil. Estudando a representações sociais de abrigados do estado de São Paulo, a autora percebeu que os abrigados sentem saudades, além das tristezas, inseguranças e medos, e constatou que eles precisam e almejam a convivência familiar. A questão da vitimização, do abandono e da negligência é focada somente na criança vitimizada, desconsiderando-a de sua dimensão familiar. O que leva ao abandono da criança está associado a pais isentos de afeto, desconsiderando a hipótese de ser a miséria da família o motivo causador de tal ato, pois o abandono não significa necessariamente deliberações de pais negligentes e sim, algumas vezes, somente carências financeiras familiares. Ao julgar premeditadamente a família, desconsidera os vínculos familiares que poderiam existir, a família passa a ser vista como perigosa para seus filhos e o abrigo aparece então, magicamente, como ambiente seguro para o bom desenvolvimento infantil.
PREVENÇÃO DE PREJUÍZOS DESENVOLVIMENTAIS DO ABRIGAMENTO
Refletindo acerca das limitações inerentes a realidade institucional e os aspectos positivos proporcionados por medidas de humanização dos cuidados à criança abrigada se faz necessário, na conjuntura atual, buscarmos soluções para minimizar tais danos. Böing e Crepaldi (2004) sugerem a maternagem como forma de preservar o desenvolvimento de crianças abandonadas. É sabido que o recém-nascido tem a capacidade de compreender o que lhe é dito e o que ocorre a sua volta, por isso a importância de dirigir palavras a ele, na tentativa de dar sentido às coisas. A maternagem deve acompanhar o bebê abandonado desde seu nascimento, oferecendo-se como uma figura de referência e buscando, dessa forma, criar um vinculo afetivo. Através da palavra e carinho, conta-se ao bebê sua história de vida e o que está acontecendo, acompanhando-o durante toda a passagem para os cuidados da mãe, no lar adotivo. Segundo Rêgo, Lima e Amazonas (2006) esta é melhor forma de proteger e garantir seus direitos como indivíduos, pois no momento que a instituição permite, admite e resgata junto à criança sua história de vida, a criança pode então preencher o vazio deixado pelo abandono e acessar a sua angústia referente à institucionalização fornecendo, assim, condições à sua resignificação em nível de identidade. Dessa forma, a maternagem funciona como uma proteção ao desenvolvimento do recém-nascido, auxiliando na redução de conseqüências clínicas e desenvolvimentais causadas pelos efeitos emocionais dessa ausência (Böing e Crepaldi, 2004).
Barros & Fiamenghi Jr (2007) sugerem a necessidade urgente de uma formação e uma capacitação que qualificassem as futuras mães sociais para tal função. Esta formação incluiria o questionamento e a “definição dos papéis, no sentido de preparar as profissionais para o oferecimento de cuidados adequados, de qualidade, que considerem as crianças, sujeitos ativos, dignos de atenção, observação e respeito” (Nogueira & Costa**, 2005, p. 46). Centurião (1999) também apóia essa idéia enfatizando a necessidade de ações preventivas por parte das instituições, ressaltando a exigência de profissionais competentes e capazes de rever conceitos, parâmetros e atitudes diante da complexidade das interações humanas. Observa a necessidade de uma percepção mais exata e completa, o que exige dos profissionais refletirem sobre os aspectos psicogenéticos e sociogenéticos das vivências pessoais de crianças abrigadas, no intuito de facilitar a intervenção deles nesse contexto. Siqueira & Andriatte (2001) sugerem o desenvolvimento de um trabalho psicoprofilático que priorize a qualidade das relações dentro das instituições, visando atingir um nível mais saudável de desenvolvimento dos bebês, assim como também é necessário sensibilizar os profissionais para este aspecto.
Lacroix & Monmayrant (1997) trazem a idéia do cuidador ideal numa instituição de bebês e crianças pequenas. Para eles, seria uma pessoa que estabelece um canal de comunicação em que o adulto não é o único provedor da palavra. Este proporciona uma escuta e utiliza outros canais de comunicação, que não só verbais. Desta forma se teria uma interação verdadeira com a criança, levando-a em conta através de “olhares, sons, palavras e reações tônicas”, ou seja focando o olhar na sua individualidade , permitindo a criança se tornar sujeito ativo no que acontece (Lacroix & Monmayrant, 1997, p. 83). Oferece à criança o tempo que precisa para responder, por exemplo: espera o bebê abrir a boca pra colocar a colher. Alem disso, o cuidador ideal consegue ter uma atenção aos jogos dos bebês, podendo escolher o material mais adaptado para cada criança. Cavalcante, Magalhães e Pontes (2007) reforçam afirmando que a adoção de medidas simples – como a criação de brinquedotecas, espaços lúdicos e a valorização e promoção do afeto – também ajuda a propiciar um clima mais favorável a interação e contato íntimo da criança com o cuidador .
Careta & Motta (2007) observam a necessidade de desenvolver medidas de prevenção que, evitem comprometimentos emocionais futuros, prevenindo a delinqüência dos futuros jovens e contribuindo para oferecer um ambiente institucional permeado pelo holding. E em caso de falhas e comprometimentos já visíveis no desenvolvimento infantil, Mondardo & Valentina (1998) enfatizam a importância da intervenção psicológica como forma de ajudar a reparar os possíveis danos buscando a promoção da saúde mental.
Uma outra possibilidade de funcionamento das instituições é sugerido por Martins & Szymanski (2004). As autoras apóiam a idéia de organizar os grupos em formato semelhante ao de uma família, visando a constituição de vínculos afetivos entre criança-criança e adulto-criança, para promover interações múltiplas. Esta idéia permitiria às crianças, de forma prazerosa, externalizar situações imaginárias, além de transformar “em ações lúdicas sentimentos e pensamentos, fazer a representação daquilo que elas acham que existe e trocar essas mesmas experiências com seus colegas”. Desta forma, estaríamos ampliando a maneira de se lidar com tantas crianças carentes afetivamente “num local com tão poucos recursos humanos”, pois “explorar o imaginário infantil e as ações lúdicas de um grupo de crianças é dar-lhes a oportunidade de se expressarem como sujeitos e de construírem, de forma conjunta e efetiva, sua personalidade” (Martins & Szymanski, 2004, p. 186).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste estudo foi possível perceber as diversas nuances e os aspectos característicos da construção psíquica em uma criança. Autores tradicionais e contemporâneos teorizam acerca da importância do relacionamento mãe/bebê desde o nascimento, não deixando dúvidas quanto à necessidade desse contato para um desenvolvimento saudável, tanto psíquico quanto físico, pois sabemos que cuidados inadequados na primeira infância dificultam ou modificam até mesmo o desenvolvimento de áreas do cérebro. Ao realizar esta revisão teórica, buscamos analisar, primeiramente, a formação psíquica do bebê no mundo, nos seus primeiros anos de vida para, posteriormente, compreender e questionar o caminho inverso, ou seja: como se estrutura a vida psíquica da criança quando lhe é privado o vínculo materno. Para isso, buscamos entender as diferentes formas de se pensar e se compreender essa modalidade de cuidado infantil, mas também as várias faces de uma realidade tão comum nos dias de hoje: as casas de abrigo infantil.
Durante a construção desta revisão constatamos que são diversas as instituições de abrigagem que oferecem variados cuidados básicos visando assegurar conforto, segurança e bem-estar. Mais especificamente no Brasil, os abrigos em geral, recebem diversos recursos para garantir e suprimir as necessidades vitais das crianças, ofertando a elas variadas oportunidades de educação, esportes, lazer e cultura. Isso é muito válido pois sabe-se que a situação de miséria geral pode predispor à violência pelo estresse diário da falta de recursos materiais. As pesquisas examinadas que focam a estrutura da instituição como meio de desenvolvimento, e não somente como uma residência, corroboram com a idéia de que, apesar de serem oferecidas oportunidades de qualidade de vida a essas crianças, ainda há falhas nas formas de aproveitamento do que lhes é oferecido mostrando que não é aí que está a problemática da institucionalização. O que falta ao menor abandonado é o bem estar psíquico para que este então possa usufruir do potencial de recursos que lhe dispõe, pois apesar de necessários, essas oportunidades não dão conta no que diz respeito aos cuidados emocionais das crianças.
A falta de individualização é outra questão significativa averiguada, já que as instituições apresentam um número elevado de crianças e adolescentes, sem dispor de cuidadores suficientes para assistir de maneira singular cada um deles. Desta forma, apesar de uma variedade de oportunidades no campo sócio-educativo-cultural, ainda falta uma olhar individualizado que propicie uma estimulação no desenvolvimento da criança, pois nesta situação, inevitavelmente a criança acaba sendo desqualificada como ser único e sim vista como mais um número ali dentro. Se parte das verbas, investimentos e doações destinadas a esses abrigos pudessem ser focadas na capacitação, desenvolvimento, permanência e aumento do número dos monitores, talvez as crianças receberiam atenção e afeto semelhantes aos de um lar, e até mesmo a construção de uma estruturação semelhante à familiar, tornando possível reduzir os danos causados pela privação do vínculo e do convívio familiar.
É inegável, contudo, que mesmo as crianças que apresentam falhas e dificuldades na habilidade de relacionar-se em razão de suas experiências de vida, ainda assim demonstram ter uma capacidade e uma disponibilidade emocional para buscar vínculos alternativos que possam estruturar e processar o mundo ao seu redor, mostrando que, apesar de toda conflitiva do abandono, elas apresentam recursos internos preservados e bastante saudáveis. Isso traz à tona novamente a questão afetiva como o principal déficit da rotina institucional. Como se percebe até então, o cuidado oferecido não substitui o cuidado de uma relação afetiva, tão necessária por gerar bem-estar emocional e o desenvolvimento das relações interpessoais. Os cuidados substitutos são uma forma de reduzir algum possível dano e por isso a importância de um investimento na formação, seleção e manutenção das mães sociais, afim de que essas possam vincular-se com as crianças e propiciar uma relação afetiva saudável e duradoura, pudendo criar um clima de segurança para os menores abandonados. O que ficou comprovado é que na verdade essas crianças não precisam de “coisas” e o mais importante não são somente as oportunidades, mas sim o sentimento de pertencer, de “sentir-se em casa”, no seio de uma família, mesmo que esta família seja institucional, precisam de afeto e atenção e alguém disposto a escutá-las e lhes dar amor. Partindo desse pressuposto, a importância do serviço de Psicologia no abrigo se faz necessária não somente para as crianças, mas também para dar um suporte aos monitores, visto que o bem-estar das crianças está diretamente relacionado ao cuidado substituto, e neste sentido o serviço de Psicologia se apresentaria então como forma de apoio e aconselhamento.
Desta forma, se faça necessário um processo seletivo mais rigoroso na escolha dos monitores, considerando questões como disponibilidade emocional, gostar de crianças, empatia e formação. Apesar de dificultar na seleção, a qualidade do investimento será muito mais elevada do que se houvessem mais monitores. Além disso, é bastante significativo que sejam realizados treinamento e workshops com os cuidadores para prepará-los e capacitá-los enfatizando a escuta e a estimulação das individualidades de cada criança, tornando possível um atendimento de melhor qualidade tanto para aqueles que o fazem, quanto para os que recebem.
Não obstante, é preciso considerar que os estudos acerca desta temática são ainda inconclusivos, tanto pela falta de mais estudos empíricos quanto pela superficialidade da maior parte da literatura sobre os efeitos da institucionalização. Sem sombra de dúvidas, este é um tema bastante complexo que carece – e merece! - mais atenção, pois só assim será possível (re)pensar como construir melhores oportunidades de vida para aqueles que tanto necessitam.
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