CHICO BUARQUE DE HOLLANDA E SUA INFLUÊNCIA NA SOCIEDADE BRASILEIRA

Por Nielson Ap. Rodrigues da Silva | 08/01/2011 | Literatura

CHICO BUARQUE DE HOLLANDA E SUA INFLUÊNCIA NA SOCIEDADE BRASILEIRA

Nielson Aparecido Rodrigues da Silva
Dirce de Souza Campos
Fabiana Fonseca
Julia Petrin
Curso de Letras ? Português/ Inglês
Polo Jean Peaget ? Ourinhos ? SP
Orientadora: Profª. Ms. Edna Maria Monhaler





RESUMO
O presente trabalho, através da análise da biografia e das obras do cantor e compositor Chico Buarque de Hollanda, objetiva mostrar a extensão da influência de sua figura sobre a sociedade brasileira, verificando se a sua ideologia foi assimilada apenas no período da ditadura militar instalada no Brasil, ou também contemporaneamente. Destarte, faz-se necessário apresentar a história de vida deste ícone da cultura nacional e apreciar algumas de suas obras, contando os "porquês" de suas linhas e entrelinhas.

PALAVRAS-CHAVE: Chico Buarque; biografia; ditadura; influência; canção.

INTRODUÇÃO

Chico Buarque aprendeu, desde muito cedo, a lidar com as palavras, e fez delas seu maior instrumento para expressar suas inquietações. Como compositor e escritor, se fez poeta, pela importância que estabeleceu à semântica nas suas produções, nas quais se pode verificar uma discussão dos problemas da sociedade brasileira.
As letras de suas músicas recendem a poesia, esquadrinham a alma humana, pinçam Deus e o diabo nos detalhes, e subvertem a lógica e o sistema. (...) Na literatura (...) sua antimensagem é um convite ao mais profundo do nosso ser, lá onde o discurso se cala e a intuição passeia de mãos dadas com sua irmã gêmea ? a inteligência. (...) Chico é todo ele palavra. (Frei Betto, Chico Buarque do Brasil -2004).
Falar de Chico Buarque é viver o presente arrastando o passado, caracterizado por momentos de angústia, vividos nos chamados "anos de chumbo". É debruçar sobre uma época a qual se deve conhecer traçando um paralelo com os dias atuais.
Através da obra de Chico Buarque é possível enxergar um país eufórico com a modernidade dos "Anos Dourados", da década de 50; saudoso com o final do sonho de desenvolvimento, do início dos anos 60; criativamente rebelado contra a falta de liberdade imposta pelo regime militar, a partir de 1964. O movimento cultural de esquerda, surgido a partir dos anos 60, foi tomado como referência para os compositores mais conhecidos e influentes da música popular brasileira, quer pelo talento, quer pela presença constante nos meios de comunicação de massa e, ainda, pela inserção privilegiada na chamada indústria cultural. Chico Buarque jamais foi militante político; entretanto, sua trajetória artística e política, até os dias de hoje, só pode ser compreendida a partir da origem na cultura política brasileira dos anos 50 e 60, marcada pela luta contra o subdesenvolvimento nacional e pela constituição de uma identidade para o povo brasileiro, mas não muito confiante com o final da ditadura e o processo de redemocratização, na década de 80.
O talento criativo de Chico Buarque, revelado através de suas obras, continua influenciando a cultura e a sociedade. Há sempre uma renovação, uma visão prismática divergente ao detalhar o simples, aplicando diversidade em suas obras. Ele se recria e se refaz. Um artista que se apresenta como uma personagem singular, como singulares que somos, em uma forma totalmente nova e antiga que já existia em nós, sem que tivéssemos percebido. São proposições de vida e porquês simples e extremamente complexos, que só um gênio como ele poderia vislumbrar.
Ao analisar sua trajetória percebe-se que Chico é influente em cada um de seus dias, presente na passividade dos anos dourados, agressivo na turbulência dos anos de chumbo, criativo na incerteza do período de transição, genial no retrato das contradições da alma feminina, aconchegante nos trabalhos infantis. O cuidado com que esculpe cada rima, cada texto, cada música, quase que dispensa comentários. É a união do cuidado de um incipiente com a certeza de um mestre. É o amor à sua produção e o respeito com o público que vai ler, assistir, cantar, dançar e participar. Tudo isto fará com que se possa dizer que o talento, a responsabilidade e seriedade na cultura brasileira têm nome e sobrenome: FRANCISCO BUARQUE DE HOLLANDA, o maior nome da cultura nacional até hoje.

1 BIOGRAFIA DE CHICO BUARQUE

1.1 ANAIS DO CHICO
Chico Buarque nasceu no dia 19 de junho de 1944, na Maternidade São Sebastião, no Largo do Machado, Rio de Janeiro, sendo o quarto dos sete filhos do historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda e da pianista amadora Maria Amélia Cesário Alvim. Em 1946, com a nomeação de seu pai ao cargo de diretor do Museu do Ipiranga, a família se mudou para São Paulo, onde se instalou na Rua Haddock Lobo.
Sua casa era frequentada por intelectuais e músicos como Baden Powell, Oscar Castro Neves, Paulo Vanzolini, Vinícius de Moraes e João Gilberto, entre outros, o que ajudou a despertar nele um interesse precoce pela cultura. No final dos anos 50, em São Paulo, gostava tanto de literatura quanto de música. Desfilava pela escola com livros clássicos da literatura francesa, alemã, russa e brasileira, e escutava Noel Rosa, Ismael Silva, Ataulfo Alves, Elvis Presley e The Platters .
Em 1953, seu pai, Sérgio Buarque, foi convidado a dar aulas na Universidade de Roma e a família mudou-se para a Itália. Ao partir para a Europa, Chico Buarque, com sua maestria, se despediu da avó com um profético bilhete: "Vovó, você está muito velha e quando eu voltar eu não vou ver você mais, mas eu vou ser cantor de rádio e você poderá ligar o rádio do Céu, se sentir saudades".
Nesse período, compôs suas primeiras "marchinhas de carnaval" e tornou-se trilíngue, falando inglês na escola norte-americana e italiano nas ruas.
Durante a permanência da família na Itália, sua casa em Roma era muito frequentada por personalidades da cultura brasileira, entre elas Vinícius de Moraes, de quem, mais tarde, se tornaria amigo e parceiro. Não tardaria muito para que a família voltasse a residir no Brasil.
Ingressou na FAU - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo -, em 1963, abandonando o curso três anos depois, ante a exaltação do clima de repressão que tomava conta das universidades após o golpe militar de 1964.
No ano de 1964, apresentou-se pela primeira vez em um show, no Colégio Santa Cruz. A música "Tem mais samba", foi feita sob encomenda para o musical "Balanço de Orfeu", o qual Chico Buarque considera, até hoje, como o marco zero de sua carreira. Foi também nesse ano que novos talentos começaram a despontar na Música Popular Brasileira, abrindo caminhos para a era dos festivais. O espetáculo mais célebre de então seria organizado no teatro Paramount, na Avenida Brigadeiro Luiz Antonio, em São Paulo, e ficou conhecido como "O fino da bossa", comandado por Elis Regina. No palco de "O fino da bossa" estariam, entre outros, Alaíde Costa, Zimbo Trio, Oscar Castro Neves, Jorge Ben, Nara Leão, Sérgio Mendes e Os Cariocas.

2. CONTEXTO HISTÓRICO DE SUA ATUAÇÃO

No início dos anos 60, o Brasil, como a Europa, vivia um momento de grande efervescência cultural. O povo acordava para a literatura, o cinema, o teatro, as novidades trazidas pela televisão, a criação dos centros acadêmicos que disseminavam a politização dos estudantes, o engajamento nas lutas contra as desigualdades sociais e as formas de governo.
Na música, despontavam novos autores apresentando novos estilos de compor, cantar e se apresentar. Nem o golpe de 64 parecia capaz de fazer o brasileiro perder o encanto por cantar. O povo cantava nas escolas, nas ruas, nos bares, nas cidades e nos campos. As melodias ocupavam o rádio, a televisão e os musicais em teatros. Com tantos "cantares", surgiu a ideia dos festivais. O ápice ocorreria entre 1966 e 1968, em que "Os Festivais da Canção" foram transmitidos pela televisão e seduziram o grande público, criaram moda e fizeram história. Todo o país cantava, dançava e vivia conforme a música.
Chico Buarque, que despontava como compositor, mesmo com voz medíocre, participava desses festivais e chamava a atenção por suas composições musicais perfeitas, com letras e estilo inovadores. Começou com marchinhas e sambas inocentes, de um lirismo quase bucólico, e virou febre entre os estudantes. Gostava de falar de amor, tema próprio de sua tão tenra idade.
Em 1966, já era ídolo entre os admiradores dos festivais, e respeitado entre os críticos. A ditadura militar já mostrava suas garras e dentes afiados e o público usava a música para protestar. Chico e Geraldo Vandré dividiram o palco e o prêmio do Festival com suas músicas "A Banda" e "Pra não dizer que não falei de flores", respectivamente. Consagraram-se as duas músicas e os dois compositores. Foi mais que uma disputa, foi uma festa. Festa promovida por Chico, que, ao saber que sua música seria a vencedora, exigiu dos organizadores que dessem o prêmio também a Vandré, por entender que esta era a música preferida do público por seu cunho político, para o qual ele começava a despertar. Registra-se, nesse episódio, a sensibilidade do compositor para perceber o desejo e a necessidade do público. A partir desse momento, ele falaria do povo, para o povo, pelo povo, através de suas inúmeras obras. Chico começava ali a ler a alma do povo. Começava ali um novo ciclo da música brasileira.
No ano seguinte, entrava em vigor a Lei de Segurança Nacional e a ditadura apertava o cerco sobre quem discordasse publicamente do governo. E Chico, numa safra de talentos raríssimos, discordava. Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento e Roberto Carlos eram finalistas do Festival da Canção desse ano, competindo entre si. Chico faria sucesso também com "Roda Viva", interpretada por ele e pelo grupo MPB-4, amigos e intérpretes de muitas de suas canções. Até então, tudo o que era cantado no país, que não fosse erudito, era classificado como música popular brasileira, da chula dos pampas ao baião nordestino.
A chegada desses compositores à final do festival de 1967 deu outro significado à sigla MPB. Intuitivamente, a música se depurou a partir das convergências dos vários elementos sonoros que perpassavam todo o cancioneiro nacional. Uma sonoridade tão próxima da cultura popular, tão além do regional que fez sucesso em todo país. Era o sonho do povo, era a cara do povo, era popular e era brasileira. Ao mesmo tempo em que era de qualidade, a música chegava ao público de forma diferente. Antes, o primeiro contato era através dos discos, do rádio, agora nascia no festival, em que o povo aprendia, torcia, cantava e depois era apresentada no rádio e na televisão já com a letra na boca do povo. O povo fazia o sucesso, depois comprava os discos.
Todavia, é necessário registrar que não era um movimento encabeçado por Chico Buarque. Não havia cabeças, não havia projetos. Eram, todos, jovens aventureiros, ávidos pelo novo, pelo diferente. Era também Chico, e não só ele, lendo a alma do povo, do seu povo. Nesse festival, venceu "Alegria, Alegria", de Caetano Veloso, mas "Roda Viva", prosperaria nos anais da ditadura repressiva e continuaria sendo cantada pelos militantes contra a repressão. A influência de Chico na política começava.
Com o endurecimento do regime militar, a partir de 1967, a radicalização que atingia várias esferas da vida do país chegou também à cultura. Cada vez mais os artistas eram obrigados a tomar uma posição. Ou se estava do lado dos que acreditavam em uma solução negociada ou dos que defendiam uma postura radical. O clima tornou-se policialesco. O então "bom-moço" Chico Buarque, que já era chamado de alienado pelos tropicalistas, por falar em suas canções apenas sobre o belo, começou a ser hostilizado também nos festivais. Em 1968, foi declarado, sob protestos e vaias, vencedor do III Festival Internacional da canção da TV Globo, com "Sabiá", em parceria com Tom Jobim. A audiência revoltada não se conformou com a derrota de "Pra não dizer que não falei de flores", de Geraldo Vandré, que convocava as pessoas à ação.
No final daquele mesmo ano, no entanto, "Sabiá", antes vista como leve e despretensiosa demais para aqueles anos, passou a ser considerada premonitória. A decretação do Ato Institucional Nº 5, o AI-5, criou inúmeros instrumentos de controle e repressão. Quem ousava se opor diretamente ao regime era perseguido, preso, torturado ou exilado. Assim, Chico Buarque foi levado para o Ministério do Exército para dar declarações sobre a sua participação na "Passeata dos Cem Mil", ato de protesto contra a ditadura, realizado no Rio de Janeiro por iniciativa do movimento estudantil e sobre o "subversivo" espetáculo "Roda Viva". Pressionado pela polícia, foi para a Itália, em exílio voluntário, onde permaneceu por dois anos, sempre desejando voltar.
Então, Chico, perseguido pela censura, tornou-se mestre em duplo sentido e chegou a compor sob o pseudônimo de Julinho de Adelaide. Os jovens continuavam a segui-lo. O público já o amava. Suas composições diferenciavam-no dos demais compositores. Mesmo focalizando o engajamento político, suas obras mantinham o lirismo necessário à alma. O jovem sonhava com suas músicas, namorava ao som delas e lutava pelos seus ideais incitados por seus versos. Suas músicas eram a ponte entre o sonho e a realidade. Era valsa e tiro.
No ano de 1970, Chico voltou ao Brasil, e o país que encontrou não era mais o mesmo. Com o AI-5, o espaço para a sutileza definitivamente tinha acabado. A época dos "Anos Dourados" havia ficado lá atrás e o país idealizado por sua geração mostrou-se uma promessa que não se concretizaria. Emílio Garrastazu Médici, considerado o mais autoritário general do regime, estava no poder. Um vasto sistema de censura e de tortura havia se instalado para impedir qualquer manifestação contraria a ordem dominante. Vasto, mas não muito perspicaz.
Chico Buarque, que também já não era mais o mesmo, indignado com o Brasil que encontrou, escreveu "Apesar de Você". Na canção, criticava o presidente Médici e a ditadura, usando, com muita habilidade, recursos de linguagem que possibilitavam duplos sentidos na letra. Inacreditavelmente, a música passou ilesa pela censura, disfarçada como a narração de uma briga de namorados. Percebido o vacilo, no entanto, o governo mandou invadir a gravadora e destruiu as cópias dos discos. Um pouco tarde porém, pois a canção já havia se tornado símbolo da luta contra o governo militar, e o compositor, um novo mito.
Em 1978, os primeiros sinais de abertura política no país começaram a surgir. Com o fim da censura e a volta dos exilados políticos, Chico Buarque lançou um disco com suas músicas que haviam sido censuradas, como por exemplo, "Tanto Mar", "Apesar de Você" e "Cálice". E também com inéditas como "Feijoada Completa", que faz uma homenagem bem brasileira àqueles que voltavam do exílio.

3. CANÇÃO

3.1. CÁLICE
(refrão)
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
(refrão)
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
(refrão)
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
(refrão)
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça





3.2.1 ANÁLISE

A análise é extensa, por conta de que todos os versos vêm impregnados de metáforas utilizadas para narrar o drama da tortura no Brasil no período da ditadura militar.
(Pai, afasta de mim esse cálice)
Resume uma súplica por algo que se quer ver bem distante. Uma fração da música se faz análoga à Paixão de Cristo e o padecer vivido pelo povo aterrorizado pelo regime autoritário. O refrão faz uma alusão à agonia de Jesus Cristo no calvário, mas há ambiguidade na palavra "cálice" em relação ao imperativo "cale-se", levando-se à atuação da censura.
(De vinho tinto de sangue)
O "cálice" é um utensílio que contém algo em seu interior. Nas Sagradas Escrituras esse conteúdo é o sangue de Cristo, na música é o sangue derramado pelas vítimas da repressão e das torturas.
(Como beber dessa bebida amarga)
A metáfora no verso leva-nos à relutância de aceitar um quadro social em que as pessoas eram submetidas de maneira desumana.
(Tragar a dor, engolir a labuta)
Implica na imposição de ter que suportar a dor e aceitá-la como algo vulgar e habitual. "Engolir a labuta" significa ter que consentir uma condição de trabalho subumano passivamente.
(Mesmo calada a boca, resta o peito)
O autor diz que mesmo a pessoa tendo a sua liberdade de se expressar suprimida, ainda lhe resta o seu anseio, oculto e protegido dentro do seu peito.
(Silêncio na cidade não se escuta)
O silêncio está metaforicamente ligado à censura, que, desta forma, é entendida como uma incongruência inexistente, porque, na medida em que o silêncio não se escuta, o silêncio inexiste.
(De que me vale ser filho da santa / Melhor seria ser filho da outra)
Mantendo o tema da religião, Chico utiliza de metáforas para demonstrar suas descrenças naquele regime político e rebaixa a figura da "pátria mãe" à condição inferior de uma "meretriz", termo que fica subentendido na palavra "outra".
(Outra realidade menos morta)
Se os homens não tivessem sua individualidade e seus direitos anulados, seria uma outra realidade.
(Tanta mentira, tanta força bruta)
O regime militar propagava que o país vivia uma economia miraculosa e todos eram obrigados a aceitar essa realidade como uma verdade absoluta.
(Como é difícil acordar calado / se na calada da noite eu me dano)
Tudo era tão reprimido que necessitava ser feito às escondidas, de forma clandestina. O eu-lírico admite a dificuldade de aceitar passivamente as imposições do regime, principalmente diante das torturas e pressões que eram realizadas à noite.
(Quero lançar um grito desumano / que é uma maneira de ser escutado)
O confronto seria a solução, uma das possibilidades, por conta de tanto desespero, porque ninguém escutava as mensagens lançadas por vias pacíficas e ordeiras.
(Esse silêncio todo me atordoa)
Aqui há uma denuncia aos métodos de torturas e repressão, utilizados para conseguir o silêncio das vítimas, fazendo-as perderem os sentidos.
(Atordoado, eu permaneço atento)
Mesmo atordoado, o eu-lírico permanece atento, em estado de alerta para o fim dessa conjuntura, como se estivesse esperando um espetáculo que estaria por vir.
(Na arquibancada, pra a qualquer momento ver emergir o monstro da lagoa).
Entretanto, o espetáculo pode ser ironicamente, somente o surgimento de mais um mecanismo de imposição de poder do regime, representado pelo monstro da lagoa.
(De muito gorda a porca já não anda)
Essa "porca" remete-se ao sistema ditatorial, que, de tão corrupto e ineficiente, já não subsistia. O porco também simboliza a gula, que está entre os sete pecados capitais, retomando a temática religiosa.
(De muito usada a faca já não corta)
Mostra o desgaste de uma ferramenta política utilizada à exaustão, demonstrando inoperância.
(Como é difícil, pai, abrir a porta)
É expresso o apelo para que sejam diminuídas as dificuldades, mas, ao mesmo tempo, apresenta a tarefa como sendo muito difícil. A porta representa a saída de um contexto violento. Biblicamente, sinaliza um novo tempo.
(Essa palavra presa na garganta)
É o obstáculo para encontrar a liberdade, a livre expressão. É o anseio de falar, contar e descrever a todos a repressão que está sendo imposta.
(Esse pileque homérico no mundo)
Remete-se ao anseio de liberdade dentro no peito de cada cidadão dos países, vivendo sob os vários regimes autoritários existentes no mundo.
(De que adianta ter boa vontade)
É um autoquestionamento sobre a ânsia de lutar pela liberdade, uma vez que o mundo estava ao avesso. Refere-se a uma frase bíblica: "paz na terra aos homens de boa vontade".
(Mesmo calado o peito resta a cuca dos bêbados do centro da cidade)
Mesmo sem liberdade, o homem não perde a mente e pode continuar pensando.
(Talvez o mundo não seja pequeno nem seja a vida um fato consumado)
A partir deste verso, o eu-lírico sugere a possibilidade de a realidade vir a ser diferente, renovando suas esperanças.
(Quero inventar o meu próprio pecado)
O verbo aproxima-se do desejo urgente e real de liberdade e expressa a vontade de libertar-se da imposição do erro por outros, para recriar suas próprias regras e definir, por si só, quais são seus erros, sem que outros o apontem. Denota estar fora da lei.
(Quero morrer do meu próprio veneno)
Neste verso, está implícito que ele quer ser punido pelos erros que ele vier a cometer seguindo o seu livre-arbítrio, sem ter seu desejo cerceado, punido por erros que o sistema acha que ele poderá vir a cometer.
(Quero perder de vez tua cabeça / minha cabeça perder teu juízo)
Traz a ideia de que o eu-lírico deseja ter seu próprio juízo e não o do poder repressor. Quer decapitar a cabeça da ditadura e libertar-se do juízo imposto por ela, para ser dono de suas próprias ideias.
(Quero cheirar fumaça de óleo diesel / me embriagar até que alguém me esqueça)
Encerrando Chico Buarque utilizou uma imagem forte das táticas de tortura. Para fazer com que os dominados perdessem a noção da realidade, dentro da sala os repressores queimavam óleo diesel, cuja fumaça deixava-os embriagados. Entretanto, os dominados também possuíam táticas antitorturas, e uma das artimanhas era justamente fingir-se desmaiado, pois, enquanto nesta condição, não eram molestados pelos torturadores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sintetizar qualquer assertiva sobre Chico Buarque é tarefa difícil. Analisar a importância de seu trabalho vai do natural ao complexo, dada à pluralidade e diversidade de sua produção artística.
Como compositor e letrista de música, Chico é ímpar. Participou da criação de um novo estilo de compor, de cantar, de apresentar as músicas. Fez história no início da bossa nova, foi ídolo da geração mais atuante e politizada da história do Brasil. Porém, há que se observar o veículo utilizado para o acesso a esse público e seu momento histórico. Os jovens estavam focados na militância política, os veículos de informações eram restritos, sendo o rádio o de maior e melhor alcance, tanto em distância como em relação ao acesso da população. Quem entendia de música tocava Chico, quem política cultuava-o, quem teatro assistia-o, quem não entendia nada, o cantava pelo prazer de sentir-se parte de sua obra. A mesma letra que levava uma mensagem de revolta ao sistema político para um militante da resistência, levava, ao alienado, um convite a pensar em sua relação conjugal bastante gasta com o cotidiano. Essa ambigüidade atendia a todo tipo de pensamento, incitava os militantes, acalmava os iletrados, difundia a cultura. Era o milagre da genialidade de Chico que brincava com as palavras. Ouro e latão no mesmo patamar. A elite e a plebe influenciada com a mesma intensidade.
No mesmo contexto veio a produção dramatúrgica de Chico. Uma forma diferente de apresentar os textos e a inovação da trilha sonora. Não se sabe se as peças teatrais eram feitas para acompanhar as músicas ou se a complementavam. Os amantes do teatro lotavam-nos, reproduziam suas peças. Mais uma vez o momento político fomentava a disseminação das ideias e contraideias do artista. O público delirava venerando seu melhor interlocutor. O povo falava através de suas obras.
Finda a ditadura militar, o povo podia respirar. Chico mudou o discurso e falou de amenidades. Cantou o feminino, a etnia brasileira, o cotidiano. O público continua amando-o, copiando-o, repetindo suas composições. Chico continua ativo e influente, a morte não o fará inativo, pois nós o faremos sobrevivente.
Chico Buarque, na música e na dramaturgia, é matéria prima, quem veio ou vier depois dele será seu produto em virtude da grande influência que ele legou à sociedade brasileira.
REFERÊNCIAS

ANÁLISE DE LETRAS DE MÚSICAS. Disponível em: http://analisedeletras.com.br/. Acessado em 01 Out. 2010.

BIOGRAFIAS CHICO BUARQUE DE HOLANDA (1944). Disponível em: http// www.e-biografias.net/biografias/chico_buarque.php. Acessado em: 01 Out. 2010.

CHAMIE, Mário. A práxis de Construção. In: FERNANDES, Rinaldo (org.). Op. cit., p. 319.

CHICO BUARQUE DE HOLANDA (Compositor e escritor brasileiro) 19/7/1944, Rio de Janeiro(RJ)-Disponível em: http://www.netsaber.com.br/biografias/ver_biografia_c_494.html. Acessado em: 01 Out. 2010.

CONDE, Gustavo. Do riso cancionista em Chico Buarque. In: FERNANDES, Rinaldo (org.). Chico Buarque do Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, Fundação Biblioteca Nacional, 2004, p. 244.

FESTIVAIS DA CANÇÃO: A COROAÇÃO DA MPB. Disponível em:http://historia.abril.com.br/cultura/festivais-cancao-coroacao-mpb-435138.shtml. Acessado em: 01 Out. 2010.

VIDA ? OBRAS ? TEXTOS ? SANATÓRIO GERAL. Disponível em: http://www.chicobuarque.com.br/vida/vida.htm. Acessado em: 01 Out. 2010.