ANÁLISE DA NARRATIVA POÉTICA “O MENINO QUE CARREGAVA ÁGUA NA PENEIRA” DE MANOEL DE BARROS

 

JOSÉ MARIA MACIEL LIMA[1]

 

 

Este trabalho pretende fazer uma análise da narrativa poética: “O menino que carregava água na peneira”, do livro “Exercício de ser criança” (1999) de Manoel de Barros, uma de suas obras destinada ao público infantil.

Para tanto, torna-se necessário dizer que a literatura infantil, desde suas origens, quando ainda era transmitida pela oralidade e em serões, provocava fantasias na mente de seus ouvintes, que liberavam emoções e sentimentos, influenciados pelo mundo mágico criado e recriado nas histórias que resgatavam lendas, mitos e contos (NIEDERAUER e DOMINGUES, 2005).

Desse modo, a literatura além de proporcionar momentos de prazer ao leitor/ouvinte, ela também funciona como meio de divulgação cultural, transformando o escritor (artista) em um porta voz dessa divulgação. Além disso,

 

A literatura enquanto arte revela nas coisas vistas ou sabidas múltiplas visões do mundo, como resultado das estratégias discursivas utilizadas pelo escritor, possibilitando uma experiência estética, através da prática da leitura (SILVA, 2007, p. s/p).

 

                A obra em análise, aborda o imaginário infantil em uma perspectiva moderna, que ultrapassa as barreiras do real, do racional com relação ao mundo que observa, e através do imaginário, faz descobertas e transforma a realidade. E isso só é possível, porque a criança usufrui de sua imaginação mais facilmente que o adulto, sendo capaz de sonhar, criar e recriar o que vê e até o que não vê. E a literatura infantil, enquanto arte deve proporcionar esse mundo mágico de descobertas, pois ela se constitui como a fonte instigadora desse imaginário. Desse modo,

A literatura infantil é, antes de tudo, literatura; ou melhor; é arte: fenômeno de criatividade que representa o mundo, o homem, a vida através da palavra. Funde os sonhos e a vida prática, o imaginário e o real, os ideais e sua possível/impossível realização (COELHO, 2000, p. 27).

 

Nesta perspectiva, o trabalho com a linguagem realizado por Manoel de Barros, na obra “Exercícios de ser Criança”, especificamente, na narrativa poética “o menino que carrega água na peneira” verificamos uma linguagem que endossa uma reflexão meta-textual, que vai além do texto, sugere múltiplas leituras e interpretações que estão pressupostas e subentendidas nas entrelinhas, explorando o percurso da palavra em sua capacidade de “dizer o indizível”, causando emoção e êxtase ao leitor, uma vez que, o imaginário domina por completo texto.

Desse modo, “o menino que carregava água na peneira” é uma narrativa poética que se caracteriza pelo abandono total ao racionalismo. É um texto menos comunicativo e mais sugestivo, no qual a linguagem empregada foge do seu emprego comum e habitual, pois a linguagem literária é anticonvencional e se direciona neste caso, exclusivamente, por uma dimensão imaginativa no “mundo do faz de conta”.

O poema em análise, concebe o texto como uma criação que não tem nenhuma finalidade objetiva, ou seja, como algo que não possui valor dimensível. Através dos “despropósitos” e das “peraltagens” do menino, é posto em evidência, que a lógica se encontra fora do que é rotineiro, previsível e habitual.

Neste sentido, o texto se caracteriza pela predominância de figuras de linguagem, com prevalência da metalinguagem cuja poesia se explica pela própria poesia, a qual pode ser evidenciada no trecho a seguir “Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira”. Trata-se de uma atividade linguística em que a própria língua está em evidência.   

Imaginário, irreal, linguagem metafórica, conotações, função poética, linguagem plurissignificativa e simbólica se completam para dar asas à imaginação. Neste jogo imaginário, não há limites para criar e inventar “peraltices”, pois neste mundo mágico o menino,

 

Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro botando ponto final na frase. Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela. O menino fazia prodígios. Até fez uma pedra dar flor! (BARROS, 1999, s/p).

 

No universo do menino que carregava água na peneira, a liberdade de imaginar parece ser a descrição mais fiel do significa de poesia, pois “fazer poesias é o mesmo que carregar água na peneira”, “é fazer peraltices com as palavras”.

Outra particularidade do poema, são suas imagens enriquecidas de símbolos carregados de significados, pois a poesia não está somente no texto verbal, mas se misturam: textos, imagens e cores, aguçando a imaginação do leitor e estimulando o pensamento imaginário. Além disso, a criança, ao observar uma ilustração, provavelmente, formará imagens relacionadas à história que contribuirão para a compreensão e fruição do texto lido.

Desse modo, o exercício da imaginação liberta o leitor do texto rumo ao universo imaginário, permitindo criar e recriar um mundo infinito cheio de representações, comunicando uma realidade através de comparações, símbolos e alegorias. Neste sentido,

 

No escrever o menino viu/que era capaz de ser/noviça, monge ou mendigo/ao mesmo tempo/O menino aprendeu a usar as palavras./Viu que podia fazer peraltagens com as palavras./E começou a fazer peraltagens./Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro/botando ponto no final da frase./Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela” (BARROS, 1999, s/p).

 

Neste trecho do texto, é possível observar ainda, a criança como poeta e criadora que exercita sua imaginação para representar seu mundo de “faz de contas”. Além disso, a dimensão gênero parece ser algo que não pertence ao conhecimento da criança “ao escrever o menino viu que era capaz de ser noviça” (BARROS, 1999, s/p).  

Outro ponto importante a ser observado na obra é a relação de ternura que há entre os dois personagens da poesia narrativa, o menino e a mãe. A mãe é uma personagem formidável na narrativa, pois ela compreende as atitudes poéticas do filho, o mundo de sonho e imaginação no qual o menino está mergulhado.

A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta. Você vai carregar água na peneira à vida toda. Você vai encher os vazios com as suas peraltagens e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos (BARROS, 1999, s/p).

 

Neste trecho, nota-se que o termo “encher o vazio com suas peraltagens” se relaciona com o fazer o poético, com os despropósitos de escrever e de imaginar, com liberdade para viajar nesse universo lúdico e imaginário que questionam o mundo e próprio homem.

 

“[...] carregava água na peneira [...] roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos. [...] criar peixes no bolso [...] o menino era ligado em despropósito [...] quis montar os alicerces de uma casa sobre os orvalhos” (BARROS, 1999, s/p).

 

Diante deste trecho da narrativa, não nos restam dúvidas do teor ficcional da obra. Neste sentido, Manoel de Barros atingi ao máximo do imaginário infantil, através de uma linguagem acessível à criança, onde ela possa atingir o texto e desvendar o que está impresso, de acordo com suas interpretações, aguçando seu universo imaginário, na fruição de ideias, para representar o mundo ao seu redor das mais variadas formas. 

Em suma, não importa o espaço ou tempo em que vivemos, as peraltices sempre farão parte da vida da criança, constituído uma realidade mista de verdades e “faz de contas”. Mas, é através deste jogo, que ela se descobre e evolui, enquanto pessoa no mundo. Nesta fase da vida infantil, a criança vê e explica tudo através da ludicidade.

Portanto, Manoel de Barros em “o menino que carregava água na peneira” alcança o objetivo da literatura infantil, criando novos espaços de liberdade, imaginação e invenção do universo, fugindo do aprisionamento de uma “forma” convencional de ler o mundo ao seu redor. A criança passa da posição de passividade e assume um papel mais participante e ativo, capaz de criar, recriar e transformar o mundo ao seu redor.

   

 REFERÊNCIAS

 

CAMARÇO, Carolina Tito. Os despropósitos e peraltagens como matéria para poesia em o menino que carregava água na peneira, de Manoel de Barros. (UNEMAT). Disponível em: http://ppgel.com.br/Anexos/Revista%20Athena/Primeiro%20N%C3%BAmero/Carolina_Tito.pdf. Acesso em: 20/07/2013, às 9:30 horas.

 

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo, 2000.

DOMINGUES, Carla Medianeira Costa e NIEDERAUER, Silvia Helena. História infantil: do imaginário ao real – desenvolve valores e desperta a criatividade. Disciplinarum Scientia, Série: Artes, Letras e Comunicação, Santa Maria, v. 6, n. 1, p. 137-154, 2005. Disponível em: http://sites.unifra.br/Portals/36/ALC/2005/historia.pdf. Acessado em 20/07/2013, as 10:20 horas.

SILVA, Joseane Maia Santos. Travessias pela palavra em Exercícios de ser criança, de Manoel de Barros e em A maior flor do mundo, de José Saramago. Revista Criola, Novembro, 2007, nº. 02. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dlcv/revistas/crioula/edicao/02/Dossie/DossieJoseaneMaia.pdf. Acesso em: 20/07/2013, as 10:00 horas.

 

[1] Professor da Rede Pública de Ensino, Graduado em Letras – Português – UFPA, Inglês – UFOPA, Espanhol – UNIUBE, Licenciado Pleno em Filosofia – Especialista em Letras, Filosofia e Sociologia.