A relação credor-devedor: A responsabilidade dívida
Por Anderson Rodrigo de Oliveira | 24/08/2010 | FilosofiaPara muitos, as descrições acerca dos conflitos da vida moral que Friedrich Nietzsche faz podem parecer exageradas nos termos que são encontrados em suas obras. Pode-se dizer que a conduta de Nietzsche com tais aspectos se dê por ele mesmo estar às voltas com uma consciência exigente peculiar. Tomando alguns aspectos peculiares do que Nietzsche chama de uma Genealogia da moral, em sua primeira dissertação defende que é preciso pensar uma nova genealogia da moral, que seja diferente daquela pensada pelos psicólogos ingleses de sua época, que eram os representantes dessa genealogia.
No conceber nietzschiano de uma genealogia, é preciso retornar ao conceito. Para isso, tanto na primeira dissertação quanto na segunda de a Genealogia, Nietzsche se valerá de uma ferramenta que lhe é muito própria: a filologia. É desse modo que na segunda dissertação da genealogia, cujo título que temos é "Culpa", "má consciência" e coisas afins, Nietzsche abordará um dos conceitos mais explorados pela moral judaico-cristã da sociedade ocidental.
Antes mesmo de entrarmos nos conceitos da segunda dissertação, é preciso seguir o raciocínio de Nietzsche já no início de sua segunda dissertação. A perspectiva abordada aqui diz respeito à moralidade dos costumes e, assim, encontramos duas faculdades: a do esquecimento e a capacidade de prometer. Criar um animal que possa prometer é uma tarefa paradoxal da qual a natureza se impôs com relação ao homem. É, provavelmente, este o verdadeiro problema do homem.
A faculdade do esquecimento não é feita através de uma simples força inercial, como, no dizer de Nietzsche, creem os superficiais. O esquecimento é uma força inibidora ativa, positiva em um sentido bastante rigoroso e nós o experimentamos, vivenciamos, acolhemos. O ser humano desenvolveu em si uma capacidade oposta à do esquecimento, que é a memória.
Memória, para Nietzsche, neste contexto, não é a fixação das coisas, mas é a memória da vontade. A fixação da promessa não quer apenas o não poder deixar de cumprir, mas o não querer não cumprir. Desse modo, existe uma relação entre a memória e a afirmação, tendo em vista que a fixação passa pelo sim dado diante do prometido.
E o que vem a ser a memória da vontade? Memória da vontade é o que "[...] exige que o querer mesmo queira a memória, [...] que a própria vontade se imponha o prometido". A memória da vontade se estabelece de tal modo entre o primitivo quero, farei, e a verdadeira descarga da vontade, que é seu ato, suas circunstâncias, podendo ser interposto, sem que interrompa a cadeia do querer.
Por esses fatores, em toda a caminhada histórica da humanidade, o homem precisou aprender a distinguir o acontecimento casual do necessário, precisou aprender a pensar de maneira casual e aprender a ver e antecipar a coisa distante como sendo presente, para, assim, estabelecer com segurança o fim e os meios para calcular, contar, confiar. Mas, para tanto, precisou ele também se tornar confiável, constante, necessário, também a si mesmo, para poder, então, fazer como faz quem promete: responder por si como porvir.
Desse modo, Nietzsche aborda neste momento de seu escrito um dos conceitos chave de sua segunda dissertação: a responsabilidade. Segundo Nietzsche, a história da origem da responsabilidade tem como tarefa o criar um animal que seja capaz de fazer promessas. Escreve Nietzsche que
O imenso trabalho daquilo que denominei "moralidade do costume" [...], todo esse trabalho pré-histórico encontra nisto seu sentido, sua justificação, não obstante o que nele também haja de tirania, dureza, estupidez e idiotismo: com ajuda da moralidade do costume e da camisa de força social, o homem foi realmente tornado confiável.
A responsabilidade, em sua origem, está intimamente ligada com a moralidade do costume. À moralidade é que coube criar condições necessárias para o desenvolvimento da responsabilidade humana. E, por conseguinte, a função da moralidade se dá no fazer do homem um ponto uniforme, igual entre os iguais.
Há, no pensamento nietzschiano, uma diferença entre o que seja costume propriamente dito e o sentimento do costume. Enquanto costume, Nietzsche designa-o como sendo o modo tradicional de agir e avaliar. Já o sentimento do costume faz referência à obediência a costumes, à necessidade de assimilar o próprio costume.
Nietzsche toma a moralidade do costume como capacidade ou condição para que o homem obedeça às leis. O referencial regulador das leis encontra-se em uma superioridade imanente que é expressa na figurada tradição. Neste sentido, surgem, então, alguns questionamentos próprios da inquietação nietzschiana, tais como o que vem a ser a tradição?
Podemos também nos perguntar qual a real intenção da autoridade dada a algo superior a que se obedece não porque o que ele manda fazer seja algo útil, mas que tem sua autoridade baseada no fato de mandar. Desse modo, durante o desenvolvimento das relações humanas, fomos também desenvolvendo uma atitude de obediência às leis. Assim, tudo aquilo que se refere ao movimento cultural humano é tido, no pensamento de Nietzsche, como moralidade do costume.
A análise genealógica de Nietzsche acerca de um estado pré-histórico não se baseia numa ciência pré-histórica, mas concebe, nos chamados tempos pré-históricos, muitos milênios que, naquele momento, não lhes eram atribuídos geralmente. Os frutos maduros são tardios, conforme escreve ele na segunda dissertação:
[...] a árvore [...] sazona seus frutos, onde a sociedade e sua moralidade do costume [...] trazem à luz aquilo para o qual eram apenas o meio: encontramos [...] como fruto mais maduro da sua árvore, o indivíduo soberano.
Esse indivíduo soberano é igual apenas a si mesmo e é liberado da moralidade do costume. É um indivíduo autônomo e supramoral ? e Nietzsche escreve que autônomo e moral se excluem ?, é um homem da vontade própria, vontade duradoura e independente. É este indivíduo que pode fazer promessas. O indivíduo soberano, que é liberto e que tem a permissão de prometer, é senhor do livre-arbítrio, sabe da superioridade que possui sobre todos os que não podem prometer e responder por si.
O homem livre possui uma duradoura e inquebrável vontade e tem a sua medida de valor. Essa medida de valor é feita de seu olhar aos outros a partir de si mesmo, honrando ou desprezando os demais. Honram-se os iguais, os fortes e confiáveis, ou seja, aqueles que também podem prometer. O homem capaz de prometer é o homem capaz de pensar o futuro, de querer o futuro. Contudo, o homem não se caracteriza por uma consciência imediatamente responsável por si mesma, por uma liberdade que vai além da própria natureza sua.
A doutora Vânia Dutra escreve que "[...] a moralidade do costume era um meio, e não um fim, mas o meio necessário para o amadurecimento do indivíduo soberano". Isso significa que o fim do processo formativo do ser humano pede sua plena realização. Esta é somente alcançada através da supressão da própria moral. Para tanto, foi preciso impor a lei para, então, obter-se um homem que fosse pleno, capaz de criar leis. Contudo, o fim do processo não implica a supressão da diferença entre a propagação igualitária de indivíduos soberanos.
Já na época da moralidade do costume, a igualdade ganhou um acréscimo do termo iguais, o que não denotou uma relação de sinônimo, mas que reafirmou a única possibilidade de uma igualdade entre o reconhecimento de um outro, que tinha os mesmos direitos. Na perspectiva nietzschiana, no entanto, a figura do senhor não é a de um indivíduo, mas é a de um tipo que cunha valores. Neste sentido, entendemos que há uma possibilidade de se conciliar diferença e igualdade. Assim, o indivíduo percebe sua superioridade pelo distanciamento de algumas ordenações alheias e também por sua definição ordenadora.
Retomando a temática da consciência , verificamos que o seu desenvolvimento se dá no produto de um longo processo de violência e crueldade. Nietzsche, em sua análise histórica, elenca as mais diversas formas de torturas que já foram experimentadas ao longo da história da humanidade. Essas diversas formas são mecanismos criados para que o esquecimento desse lugar a uma memória da vontade. Dessa forma, em uma posteridade, o homem poderia responder por si mesmo.
O conceito de consciência que Nietzsche aborda na segunda dissertação tem, em sua concepção, uma longa história e uma variedade de formas implícitas. O fato de os seres humanos hoje poderem responder por si mesmo, poderem dizer sim a si mesmos, é um fruto tardio. Por muito tempo ficou essa consciência escondida, ou guardada, sem que fosse possível ver ou experimentar de suas qualidades. Desse modo, aquele antigo problema, conforme escreve Nietzsche, de se gravar algo indelével ou de fazer uma memória no homem não encontrou, no entanto, uma solução. Ainda em suas reflexões, nosso filósofo também escreve algumas palavras contra essa arte da mnemotécnica, pois, para ele, "[...] grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória".
Verificamos, com esta sentença, a proposição norteadora da mais duradoura e mais antiga psicologia que houve. Essa antiga psicologia viu, na dor, o melhor recurso da mnemônica. A dor, enquanto imposição, é inversamente proporcional à memória, já que quanto mais o esquecimento impede a fixação da ordem, mais se torna imprescindível a introdução de práticas dolorosas.
Retomando o confronto com os genealogistas da moral, ou seja, os psicólogos ingleses, Nietzsche diz que o grande conceito moral de culpa não é por eles sabido que tem uma determinada origem. O conceito de culpa está relacionado, em sua origem, ao conceito de dívida. Culpa e dívida apresentam-se, em alemão, com uma única palavra: Schuld. Mesmo em português, verificamos que antigamente, quando rezava o Pai-Nosso, a Igreja Católica dizia: [...] perdoai nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores; o que passou, mais tarde, a ser rezado assim: [...] perdoai nossas ofensas assim como perdoamos a quem nos tem ofendido. Dentro da história dos homens, o castigo, como reparação, desenvolveu-se junto a qualquer suposição a respeito da liberdade ou da não-liberdade da vontade.
E é a análise filológica, do mesmo modo utilizada na primeira dissertação acerca dos conceitos bom/mau, bom/ruim, a base também da segunda dissertação. Quando há a interpretação e a avaliação remetidas às forças e às vontades, há também o aniquilamento de todo e qualquer significado unilateral que se venha a estabelecer, pois acontece uma inclusão pluralista. Mas, se está a vontade de potência na base de toda ação, apresentando-se como fundamento das interpretações e das avaliações, então a análise deve concentrar-se na vontade, já que procura um desvelamento do sentido do valor. Verifica-se, portanto, uma necessidade de uma psicologia da vontade de potência, que possa esclarecer a mobilidade da interpretação e da avaliação, gerando a determinação do valor dos valores.
Os castigos que foram usados ao longo da história da humanidade não eram dados por conta de responsabilizar o infrator em consequência de seus atos, isto é, não só se pensando que já que é culpado, deve ser castigado. Há no sentimento de culpabilização uma raiva por um dano sofrido, uma raiva que se desencadeia sobre quem a causou através de uma punição. Contudo, é uma punição, de certo modo, mantida em certos limites, pois encontra um equivalente próprio ao nível de ser compensada pelo dano causado, ainda que isso venha a causar a dor no infrator.
A relação entre dano e dor, infração e castigo, nasceu da relação contratual entre credor e devedor. Essa relação entre credor e devedor é tão antiga quanto a existência de pessoas jurídicas. Entretanto, essa relação não deixa de fazer referências básicas, é claro, às relações de venda, de compra, de comércio, de troca, tráfico e muitas outras. Da relação de dívida nasce a punição ao devedor. Através da punição, "[...] o credor participa de um direito dos senhores; experimenta enfim ele mesmo a sensação exaltada de poder desprezar e maltratar alguém como ?inferior?". Com esse poder de executar uma pena ao devedor, o credor tem, a certo modo, ao menos o poder de ver seu devedor desprezado e maltratado.
No âmbito das obrigações legais é que está a origem dos conceitos morais: culpa, consciência, dever. No que diz respeito à culpa, Nietzsche procura derivar o sentimento de dever e de obrigação pessoal preconizados na relação de contrato entre o credor e o devedor. Desse modo, o conceito de culpa, que é moral, faz referência ao conceito de dívida, que é material, o que situa os supremos valores morais numa ascendência material.
O sentido entre as relações de responsabilidade e dívida, de culpa e responsabilidade são diversas. Primeiramente nasce a relação entre a responsabilidade e a dívida, ou seja, o homem devedor é responsável por uma dívida para com um credor através de uma relação de compra, venda e troca. Essa relação de responsabilidade e dívida passa para um sentimento de culpa e responsabilidade para com uma falta cometida.
Também a comunidade acaba criando mecanismos que mantêm, para com seus membros, a relação básica que existe entre o credor e seus devedores. Ao viver em comunidade, desfrutamos das vantagens que ela nos oferece: proteção, cuidado, paz, confiança. Não há preocupações para com os abusos e hostilidades daquilo que está do lado de fora. Assim como o credor, a comunidade traída exigirá uma paga por qualquer dano que venha a acontecer.
O criminoso, aquele que gera um dano na comunidade ou ao credor, é considerado um infrator. Infrator, no dizer alemão, é aquele que quebra o contrato, a palavra dada, para com um acordo, que diz respeito aos benefícios e comodidades da vida em comum (infrator= Brecher, brechen= quebrar).
O criminoso é um devedor que não só não paga os proveitos e adiantamentos que lhe foram concedidos, como inclusive atenta contra o seu credor: daí que ele não apenas será privado de todos esses benefícios e vantagens, como é justo ? doravante lhe será lembrado o quanto valem esses benefícios. A ira do credor prejudicado, a comunidade, o devolve ao estado selvagem e fora da lei do qual ele foi até então protegido: afasta-o de si ? toda espécie de hostilidade poderá então se abater sobre ele. O "castigo", nesse nível dos costumes é simplesmente a cópia, mimus [reprodução] do comportamento normal perante o inimigo odiado, desarmado, prostrado, que perdeu não só qualquer direito e proteção, mas também qualquer esperança de graça.
É o homem aquele quem mede essas relações todas. É ele quem valora e que mede os valores, como um animal estimador em si. Nesse mesmo modo, o sentido de justiça é proveniente da possibilidade de o homem diferenciar, através dos dados de medida feitos de pessoa a pessoa, aqueles que têm mais ou aqueles que têm menos potência. Assim, o homem também estabelece aquilo que seja direito e aquilo que seja dever entre os iguais. Os iguais são aqueles que se ajustam entre si e que subjugam aqueles que são menos potentes. Portanto, essas relações estabelecem uma diferenciação entre grupos: aquele formado pelos mais potentes e, consequentemente, aquele formado pelos menos potentes. No entanto, a boa vontade estende-se aos que são de potência igual e, por extensão, à comunidade se dá à medida que as relações permeiem as demais existentes entre os mais diversos membros da comunidade.
Com o aumento do poder que a comunidade adquire ao longo do tempo, já não é mais para ela importante pensar nos desvios cometidos pelo infrator, pois seus atos já não mais são considerados subversivos nem perigosos para que possa comprometer a existência da comunidade e dos interesses coletivos. Desse modo, o malfeitor já não mais é isolado, expulso, pois a ira coletiva já não pode ser descarregada livremente sobre ele. Contrário a isso, ele passa a ser defendido e abrigado pela totalidade da comunidade, protegido, inclusive, daqueles que sofreram danos por seus atos.
Por isso, a justiça, no pensar da Genealogia, é intensificada quando as comunidades são mais vulneráveis diante da possibilidade de uma supressão própria. Na justiça, quanto mais se aumenta o sentimento de potência, menos se precisa que haja um resgate da dívida e da própria justiça.
Nietzsche deixa claro que não é uma mera necessidade estrita de se cumprir o dever que a palavra justiça é cobrada, mas pela comparação existente entre as forças que se embatem ou de quanto elas são ameaçadas ou não pela ruptura de uma estrutura instituída. Dessa forma, "[...] o direito penal, secundário e decorrente do direito das obrigações, suaviza-se e [...] tende à auto-supressão, convertendo-se em graça". Entretanto, a autossupressão do direito penal não implica, necessariamente, na autossupressão também da justiça. Já a graça, no conceber de Nietzsche, depende, para que possa ser compreendida, de um poder superior que a conceda.
Para o indivíduo soberano é imprescindível a justiça, do mesmo modo que as leis são também. Isso se dá pelo fato de ele ser um fruto maduro que se tornou responsável, antes de tudo, para, depois, tornar-se livre, leve e irresponsável.
O termo irresponsável, em Nietzsche, não quer designar aquele que não se responsabiliza pelo seu ato, mas aquele que não é responsável perante nenhum tribunal, nenhum costume, nenhuma lei, daí a leveza e a incomensurabilidade da potência em proporção a uma organização instituída.
Esta análise de transposições mostra o que é o justo, que, percebido no confronto inicial entre comprador e vendedor, torna-se impessoal perante a instituição da lei e torna-se um instrumento de educação avaliativo para a humanidade. Há uma impessoalidade na avaliação, que precisa ser acompanhada juntamente com um processo de internalização da agressividade para, assim, manter a uniformidade de critérios, e, com isso, a possibilidade de sujeição e de paz. Essa uniformização se expressa paulatinamente como consciência, uma vez que o homem é obrigado a depender de sua própria consciência.
O processo de determinação dado à justiça é conduzido pela positividade, já que o sentimento reativo é a última conquista do espírito de justiça. Neste sentido, o homem ativo, violento, excessivo, está sempre bem mais próximo da justiça que o homem reativo. Isso porque o homem ativo não necessita em forma alguma avaliar seu objeto de modo falso e parcial, contrariamente como necessita fazer o homem reativo. Por isso, o homem ativo é mais forte, é o nobre, o corajoso, facilmente verificável em todas as épocas da história humana. Sua consciência é a melhor, contrária à do homem reativo, que possui a má consciência, o que o torna homem do ressentimento.
A justiça, então, está necessariamente ligada à afirmação e à ação e nunca à reação e ao ressentimento. Ressentimento é um dos conceitos que estabelece o triunfo da moral de escravos, é o que faz sua base. A moral dos ressentidos é, por excelência, o instrumento de domínio dos fracos sobre os fortes, é a vontade de aniquilação da moral dos senhores. No entender de Nietzsche, uma moral tipicamente de escravos e, portanto, de ressentidos é a moral cristã.
Por esse modo, a justiça visa o acionamento da força reativa. Assim, busca, também, a intensificação e afirmação da vida. A imposição da lei restringe a manifestação das forças da vontade de potência. A justiça, por esse modo de pensar, não deriva, no conceber nietzschiano, de uma causa final, mas sim como produto da moralidade dos costumes. Assim, Nietzsche caminha como que contrário ao pensamento vigente entre os estudiosos morais, que introduzem uma finalidade como causa da justiça e do castigo.
Chegamos, então, a mais um aspecto do pensamento nietzschiano acerca das relações formadoras primitivas: a satisfação de ver sofrer. Este aspecto sustenta o dano, a dor e o caráter compensador do sofrimento, ou seja, o prazer da crueldade. Na satisfação de ver sofrer e de fazer sofrer que reside a igualdade entre dano e dor, pois "[...] fazer sofrer dava um prazer muito grande e porque aquele que havia sofrido o dano e seus descontentamentos obtinha, em troca, um extraordinário contra-prazer: fazer sofrer ? uma verdadeira festa".
De certo modo, o castigo traz a possibilidade de despertar no culpado o sentimento de culpa, pois este é, visto pelo culpado, um verdadeiro instrumento da reação psíquica que leva o nome de má consciência, de remorso (= Gewissensbiβ, "mordida na consciência" ). Para Nietzsche, "[...] a consciência (Bewusstsein) é a última e mais tardia evolução da vida orgânica e, consequentemente, aquilo que há de menos acabado e de mais frágil nela".
A má consciência é como uma doença que faz do homem um projeto de soberania, uma expressão da reação. Ela surgiu como base em um rompimento, por um salto, uma adaptação involuntária que se processa quando o homem precisa, enquanto animal, desligar-se prolongadamente daquilo que há de animal em si, ou seja, para frear seus instintos e poder viver em sociedade. Essa doença, a má consciência, é uma saída inevitável da pressão exercida sobre o homem através de uma mudança mais profunda de todas aquelas que o homem jamais conseguiu vencer. Pressupõe-se, no entanto, que essa mudança não tenha sido gradual nem voluntária, nem que tenha representado qualquer crescimento no interior de novas condições.
A consciência, ao longo da história, foi mostrando que ter dívidas (Schuld) para com a divindade, não se esvaiu após o declínio da forma como os homens se organizaram: a comunidade, que se baseava nos vínculos de sangue. Durante os anos da história humana, o sentimento de culpa em relação à divindade não parou de crescer. Desse mesmo modo, cresceram também o conceito e o sentimento de Deus.
E o Deus cristão é, no conceber nietzschiano, a expressão máxima do monoteísmo. Isso deve-se ao fato de o culto ao Deus feito pelos cristãos atingir um maior número de povos e de nações, dirimindo as diferenças entre seus cultuadores. O Deus cristão é o que levou o sentimento de dívida sobre a terra, elevando este sentimento ao mais alto grau.
"Enquanto as noções de culpa e dever não haviam sido moralizadas, a responsabilidade não se ligava à culpa (falta)". Foi através do Deus cristão que se desenvolveu a culpa, pois nasceu, com isso, o sentimento de que o homem é responsável por uma falta, o que fez da própria noção de responsabilidade algo carregado de culpa. Se antes a responsabilidade estava relacionada à dívida, o homem era responsável por uma dívida e a dor era, de certo modo, um elemento de troca que era oferecido como pagamento, o que também possibilitava o resgate da dívida.
Por consequência a tudo isso, pensar um Deus universal é negar tudo aquilo que é eminentemente humano. Há que se estabelecer, no entanto, uma distinção entre a dívida que se refere ao senhor e à que se refere ao escravo, pois cada qual apresenta uma relação diversa para com a divindade. Nos nobres, verifica-se que a má consciência não se desenvolve, já que há uma relação específica para com a divindade. Os senhores projetam em seus deuses todas as qualidades nobres que atribuem a si mesmos, afirmando os sofrimentos e contradições que se possa haver.
Já o escravo quer triunfar, quer se fazer senhor. No ressentimento, o escravo inverte os valores do senhor e separa a força do que ela pode. Na má consciência, o escravo procura incutir a culpa no senhor. Aparece, então, a figura do sacerdote, que tem, por função, o trabalho de organizar o rebanho e é quem faz a transvaloração dos valores nobres. Para Nietzsche, o representante do sacerdote nascido no ressentimento é o sacerdote judeu. Já o sacerdote nascido na má consciência é o sacerdote cristão, o padre, que, no entanto, iguala-se ao sacerdote judeu na vontade manifestada como negação.
Todo o objetivo de Nietzsche encontrado em todas as três dissertações da Genealogia leva-nos a concluir que a resposta ao problema do qual o homem se põe não está somente numa história. É preciso, também, de uma genealogia, que tomará como chave a vontade de poder. Em todo ser humano está presente a afirmação da vontade de poder, aquela possibilidade de se superar ou de definhar. E Nietzsche expressa, em sua Genealogia, que uma compreensão genealógica do humano só é possível associando-se à pesquisa histórica propriamente dita a pesquisa biológica e os resultados da fisiologia, uma vez que é preciso fazer com que também os fisiólogos e médicos se interessem pelo assunto.
Portanto, num futuro qualquer, o filósofo então poderá ser identificado também com o psicólogo (o genealogista da moral), mesmo no sentido de uma psicologia compreendida como teoria da evolução da própria vontade de poder. Se, no entanto, o filósofo não é ainda um legislador, como é chamado a ser, pelo menos deve reunir e coordenar em torno de uma crítica genealógica todas as ciências que se ignoravam ou que se contrapunham até então. Do mesmo modo que a crítica kantiana devolvera, a certo modo, as críticas espiritualistas e materialistas sem dar razão nem a uma nem a outra, também a crítica genealógica deve ser arbitrária entre as pretensões rivais da psicologia, da filosofia e da fisiologia, que podem ser reconciliadas na afirmação da vontade de poder.
BIBLIOGRAFIA
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MELO, Eduardo Rezende. Nietzsche e a justiça: crítica e transvaloração. São Paulo: Perspectiva, FAPESP, 2004.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal: prelúdio de uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
___________________. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2009.