A Moral Nietzscheana na Nossa Atualidade

Por jair piva | 25/08/2010 | Filosofia

Prof. Jair A. Piva
Formado em filosofia pela PUC-PR, especialista pela PUC-PR, Mestre em Ciências da Educação pela UA (Asunción). Doutorando em Ciências da Educação pelo ILAES (Chile).

Nietzsche apesar de ser um filósofo do século XIX, seu pensamento nos parece estar bem presente no século XXI, sem falar que o mesmo pode ser considerado um visionário no campo da moral. Sua visão de moral está cada dia mais presente em nosso cotidiano.
Para entendermos a moral de Nietzsche, temos que conhecer um pouco sobre ele.
Nietzsche foi praticamente ignorado pelo seu próprio século - o XIX. Nasceu em 1844, antecipou os modernistas do início do século passado e foi, portanto, "vanguardista" antes da vanguarda. Em tempos pós-modernos, manteve sua atualidade oportunamente "no vácuo". Infelizmente não desfrutou, em nada, dessa consagração. Enlouqueceu por volta de 1889, depois de escrever sua autobiografia, Ecce Homo, aos 44 anos. Mas foi brilhante desde cedo. Assumiu a cátedra de filologia, na Universidade da Basiléia (na Suíça), aos 24 anos, antes de se doutorar. Privou da companhia de algumas das maiores figuras de sua época, gente como o músico Richard Wagner e o historiador Jacob Burckhardt.
Filho de pastor Luterano, Nietzsche foi chamado "Friedrich" por causa de Frederico IV, um dos reis da Prússia, região onde passou seus primeiros anos. Revelou muito cedo um talento para as línguas e para a música, tendo sido convidado para estudar fora de sua cidade natal, Röcken. Provavelmente por influência paterna, dedicou-se à teologia durante um semestre, mas veio a perder a fé na religião e descobriu, aos 20 anos, a filosofia de Artur Schopenhauer, que se tornaria um de seus mentores. Teria, em seguida, um primeiro encontro com Wagner, por intermédio de seu orientador em filologia, mas daria seu primeiro grande salto, como pensador, com quase 30 anos - ao compor O Nascimento da Tragédia (1872), um de seus primeiros ensaios, cujo manuscrito seria dado de presente a então esposa de Wagner, Cosima. Por essa altura, Nietzsche já se apegara aos autores clássicos gregos, que serviriam de matéria prima recorrente para sua filosofia.
Em 1879 seu estado de saúde obriga-o a deixar o posto de professor. Sua voz, inaudível, afasta os alunos. Começa então uma vida errante em busca de um clima favorável tanto para sua saúde como para seu pensamento. Perdeu a razão, oficialmente, no início de 1889 e passou os últimos onze anos de sua vida tutelado pela família, vindo a falecer em Weimar, completamente alheio à realidade à sua volta, ao meio-dia de 25 de Agosto de 1900.
Apesar de muitos elementos trágicos e da curta vida de Nietzsche, sua produção intelectual foi em grande intensidade e profundidade. Vendo suas obras, hoje, podemos perceber que o mesmo não escreveu para sua época, mesmo porque o seu próprio século não o compreendeu. Isso se torna evidente ao analisarmos a nossa sociedade hoje. Em pleno século XXI, estamos vendo em nossa sociedade um crescente individualismo, que o próprio Nietzsche já escrevia em suas obras.
Ao dedicar-se ao estudo das tragédias gregas e dos pré-socráticos, buscou em seu pensamento resgatar as forças vitais, instintiva, subjugada pela razão durante séculos. Seu pensamento era voltado contra a razão, pois essa reprimia os instintos humanos e não deixava o homem ser o que ele é, ou seja, para Nietzsche um animal de vontade, de instintos e desejo. Com relação a sua crítica a razão Nietzsche diz o seguinte:

O intelecto, através de descomunais lances de tempo, não engendrou nada além de erros; alguns deles resultaram úteis e conservadores da espécie: quem topou com eles ou os recebeu como legado combatia seu combate por si mesmo e por sua prole com maior felicidade. Tais errôneos artigos de crença, que eram sempre legados mais adiante afinal se tornaram quase o espólio e o fundo comum da humanidade, são, por exemplo, estes: que há
coisas que duram, que há coisas iguais,... que uma coisa é como aparece, que nosso querer é livre, que o que é bom para mim também é bom em si e para si. Só muito tarde vieram os que negavam e punham em dúvida tais proposições ? só muito tarde veio a verdade, como forma menos forte do conhecimento. ... Portanto: a força do conhecimento não está em seu grau de verdade, mas em sua idade, sua incorporação, seu caráter de condição de vida. (NIETZSCHE, 1991, pag. 156)

Sua primeira crítica foi para o filosofo Sócrates por ter sido este o primeiro a sistematizar a moral direcionando-a para uma reflexão racional, isto é, direcionando a moral para o controle racional das paixões (ARANHA; MARTINS 2007). Sua crítica atinge também o cristianismo. Nietzsche afirma que o controle dos instintos, a desconfiança destes tem como ápice o surgimento do cristianismo. Condena o cristianismo por "domesticar" o ser humano, fazendo com que suas paixões sejam reprimidas. Ao analisar a história afirma existir uma incompatibilidade entre a vida e a moral. Sendo o homem dominado pela moral, torna-se fraco e doentio e culpado. Ou seja, Nietzsche deseja que o homem liberte-se de todos os valores morais para tornar-se o que realmente é: um ser de vontade e de poder. Contrariando o pensamento e a doutrina cristã, afirma que a virtude está na força, na potencia. Nesse sentido bom é aquilo que me favorece. Com relação à crítica a moral ocidental feita por Nietzsche, Marcuse diz o seguinte:

Nietzsche expõe a gigantesca falácia sobre a qual se edificaram a filosofia e a
moralidade ocidental: transformação de fatos em essências, de condições históricas em metafísicas. A fraqueza e o desalento do homem, a desigualdade de poder e riqueza, a injustiça e o sofrimento, tudo foi atribuído a um crime e culpa transcendentes; a rebelião passou a chamar-se pecado original, desobediência a Deus; e a luta pela gratificação tornou-se concupiscência. [...]
A critica de Nietzsche distingue-se de toda psicologia social acadêmica pela posição a partir da qual a empreende: Nietzsche fala em nome de um princípio de realidade fundamentalmente antagônico do da civilização ocidental. A forma tradicional de razão é rejeitada na base da experiência do ser-como-fim-em si __ como gozo (Lust) e fruição.
A luta contra o tempo desencadeia-se a partir dessa posição: a tirania do devir sobre o ser deve ser quebrada, se o homem quiser tornar-se ele mesmo num mundo que seja realmente seu. [..] O homem só se torna ele mesmo quando a transcendência for conquistada __ quando a eternidade se tornar presente no aqui e agora. (MARCUSE, 1969, pag. 109-110)

O aspecto mais forte de sua crítica à moral ocidental consiste justamente no fato desta deixar o homem mais fraco e torná-lo um animal domestico, privando-o dos seus desejos e vontades.
A partir da sua crítica a moral, Nietzsche busca resgatar a moral aristocrática, a moral dos senhores que é voltada para a satisfação dos instintos da vida (ARANHA; MARTINS 2007).
Em seu pensamento busca condenar a falsa moral e valorizar a vida, no entanto, valorizar a vida para ele significa esvaziar o homem de todos os valores religiosos, principalmente o cristão, pois enquanto o homem permanecer cego pela moral ele continua um ser escravo, cujos valores seriam a bondade, a humildade, a piedade e o amor ao próximo, valores estes pregados pelo cristianismo. Apesar de sua crítica ao cristianismo, Nietzsche exalta a pessoa do Cristo e diz ser ele um homem nobre. Faz uma distinção entre a figura de Jesus e o cristianismo, considerando este totalmente diferente daquilo que seu fundador quis e fez. Considera Jesus um verdadeiro ser livre, pois viveu a plenitude da liberdade humana, na sua concepção.
Seu pensamento buscou resgatar o homem e retirar dele racionalidade e fraqueza. Buscou demonstrar que a moral cristã é uma moral de fracos, haja vista ser ela uma moral dos ressentidos, daqueles que não tem coragem ou mesmo capacidade para impor sua vontade de poder.
Apenas 119 se passaram após a morte de Nietzsche e vemo-nos cercado de sua filosofia, de sua visão moral. Estamos vivendo num mundo atualmente onde há um acentuado crescimento da desvalorização do ser humano, da violência, da sede de poder, da corrupção, da criminalidade. Estamos vivendo em um mundo onde sobrevive o mais forte. A moral cristã já não é mais a mesma. O medo que o povo tinha do Deus vingativo, punidor dos pecadores, presente, principalmente, no período medieval foi erradicado. Agora Deus é Pai, é Amor, sendo assim, não se teme mais a Deus. As instituições religiosas hoje buscam atrair seus fieis mostrando um Deus misericordioso e que dará tudo àqueles que pedirem com fé e castigará o opressor na vida eterna, na verdade o cristianismo atual vem tornando Deus um capitalista, uma vez que o cristão sempre busca a Deus para conseguir um bem seja ele material ou espiritual, mas sempre negociando com Deus. Com isso, o medo clássico de Deus na cultura ocidental cristã vem a se perder em grande parte e o homem passa de temente a Deus a apenas crente na sua existência. Esse fator tornou-se, podemos dizer um dos componentes que ajudou a desembocar na moral nietzscheana. Outro componente que muito tem contribuído para tornar real a visão deste filosofo quanto à forma de agir dos seres humanos é o capitalismo. Com o desenvolvimento da sociedade capitalista o individualismo aumentou fortemente devido a busca de poder, de riqueza, de consumo, de prazer. Os instintos humanos começaram a suplantar a razão como havia desejado Nietzsche. Atualmente nossos instintos estão cada vez mais à flor da pele. Pouco pensamos antes de agir. Agimos mais pela vontade de poder, pelos nossos desejos desenfreados. Nossos adolescentes, devido ao alto grau de liberdade e da pouca responsabilidade agem mais pelos seus instintos, uma prova disto é a gravidez desenfreada entre adolescentes, o crime e roubo feito por adolescentes que já não possuem ressentimento e nem sentimento de culpa, pois sabem que ao fazerem saem quase sem punição alguma. Também não podemos nos esquecer também o fato de muitos adultos buscarem satisfazer suas próprias vontades e com isso acabam tornando-se corruptos. E, com isso, criam também sua própria moral, a moral individualista, aquela que diz que se é bom para mim não importa o que o outro pensa.
Nietzsche também dizia que a democracia e a igualdade se opõem de maneira brutal ao conceito de evolução. Afinal, apenas os mais aptos, o mais capaz, deve seguir adiante. Sendo assim estamos diante de uma sociedade cada vez mais irracional, no sentido de que os homens, assim como os demais animais apenas lutam pela sobrevivência sem importarem-se com o outro. O outro já não importa mais, se necessito subir de cargo em uma empresa qualquer, se posso, subo a qualquer preço, mesmo que o outro tenha que sofrer algum tipo de dano. O convívio social está cada vez mais difícil, pois não mais nos preocupamos com o próximo, com nossos vizinhos. Não somos mais capazes de conversar com nossos vizinhos a respeito dos problemas que nossas famílias possuem. Apenas dizemos um para o outro "eu cuida da minha vida e você cuida da sua". Dessa forma, se o vizinho ou seu filho cometem algum ato contra a cidadania contra os valores humanos, nós já não nos importamos. Não nos sentimos responsáveis uns pelos outros. O que importa é que eu tenho minha vida e você a sua.
Vivemos em um mundo onde a bondade já não é mais uma gratuidade total. Embora haja aqueles que são bons incondicionalmente, no entanto a maioria somente age bem de acordo com os seus interesses, ou seja, daquilo que podem retirar, usufruir do outro. Aqui podemos ver mais um aspecto da moral nietzscheana, pois ela não está localizada na bondade e sim na força. Logo, a meta da humanidade não deveria ser a produção de melhores espíritos como pregam as doutrinas religiosas e sim a criação de homens que superem a si mesmos, aos valores da sua época e seja superhomens na visão nietzscheana. Aqueles que por sua vontade de poder fazem o que querem de suas vidas sem importarem-se com os danos que podem causar ao outro ou a humanidade. Isso devido ao fato, como diz Nietzsche: a sua ética está pautada numa ética aristocrática, fundada nos desejos e na vontade de potência, tendo como modelo as virtudes dos guerreiros dos antigos gregos.
Como disse anteriormente o pensamento nietzscheano faz dura crítica à moral racionalista, pois segundo sua visão ela transforma tudo o que é natural e espontâneo nos homens em vício, falta, culpa, e impôs sobre eles, com nomes de virtude e dever, tudo o que oprime a natureza humana. Essa visão está cada vez mais sendo perceptiva hoje. Notamos a cada dia que o homem já não se preocupa em ser virtuoso, seja no sentido aristotélico, viver o meio termo, seja no sentido cristão, viver segundo o amor, a bondade, a compaixão etc. Estamos deixando aflorar plenamente os nossos instintos, já não estamos nos sentindo mais culpados. A culpa, o vício e a falta já não fazem mais parte da vida, ao menos de uma grande maioria de pessoas. Estamos numa época onde podemos tudo e esse tudo implica até mesmo a destruição do outro e do nosso próprio planeta. Nações que tem poderes bélico e econômico se sentem no direito de invadir outras nações apenas por pura vontade ou mesmo para saquear suas riquezas.
Infelizmente notamos também que com o capitalismo a injustiça social vem crescendo a cada dia. Esse também é um fator para propagar a ética nietzscheana. Aqueles que estão à margem da sociedade, sem direitos, excluídos do sistema, buscam da forma que lhe é possível a sua sobrevivência. Mais uma vez impera aqui a lei do mais forte. Se o roubo e o assalto crescem em nossa sociedade é também por culpa nossa que estamos de olhos fechados para os problemas sociais. Como não nos importamos com o outro, também não lutamos pela melhora da vida do outro, não lutamos para acabar com a corrupção, pois também nós, mesmo que em pequenas coisas, em algum momento, acabamos por nos tornar corruptos. Sendo assim, achamos natural a corrupção que há em nosso sistema político. Achamos isso devido a falta de consciência política que temos em grande parte do nosso povo e da vivência de uma moral que valorize o ser humano. Há muitos pregadores da moral, das virtudes, mas há poucos de fato que seguem, que vive uma moral que valoriza a pessoa do outro, a humanidade.
Nietzsche buscou, dentro da sua filosofia, destruir a moral religiosa. Chamava-a de moral dos ressentidos, pois se baseava no medo e no ódio à vida, às paixões, aos desejos. Esta inventa outra vida, que está alem dessa, num futuro distante, na eternidade, incorpórea, que receberemos como recompensa pelos nossos sacrifícios, por reprimirmos os nossos instintos e aceitarmos os valores dos fracos. Para ele essa moral nega a alegria de viver, a alegria de satisfazer a nossa vontade, as nossas paixões, levando-nos a mortificação para alcançar a vida eterna. Sendo assim, as práticas de altruísmo destrói o amor de si, domesticando os instintos e produzindo gerações de fracos.
Como estamos percebendo ao nosso redor, cada dia mais a "profecia" de Nietzsche de uma sociedade voltada para a vontade de poder, para a libertação plena das paixões, dos instintos está se concretizando. Aqui faço alguns questionamentos para refletirmos: conseguiremos nós desenvolver uma nova moral que valorize a humanidade? Será o fim da humanidade se ela continuar seguindo o individualismo e a vontade de poder? Qual será o futuro da humanidade se não houver uma moral?
Temos que nos lembrar que nossos pais, nossos irmãos, nossos entes queridos só são amados em virtude de um afeto que denominamos amor. Por causa dele somos capazes de nos submetermos a várias coisas para manter a pessoa amada próxima de nós e salva. Enquanto houver alguém que valorize o outro, creio que a humanidade ainda terá esperança. Só espero não chegarmos ao ponto de toda a humanidade se tornar individualista, pois creio que se isso acontecer pode ser o fim da nossa própria existência.

REFERÊNCIAS

ARANHA, M. L. de Arruda; MARTINS, M. H. Pires. Filosofando: introdução a filosofia. Ed. Moderna, São Paulo, 2007.

NIETZSCHE. A gaia ciência. Col. "Os Pensadores" . [tradução de Rubens Rodrigues Torres filho] São Paulo: Nova cultural, 1991. p. 156.

MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.