WERNER SCHRÖR LEBER

A INFLUÊNCIA DA ESQUERDA HEGELIANA EM MARX E FEUERBACH

 

1 CONSIDERAÇOES INICIAIS

Hegel, juntamente com Fichte (1762-1814) e Friedrich von Schelling (1775-1854), forma uma grande corrente de pensamento, seguramente uma das mais consistentes e reconhecidas da filosofia europeia alemã da primeira parte do século XIX. O pensamento de Hegel é considerado o ápice de idealismo alemão e também o seu desfecho. Desfecho esse muito feliz para uns e muito equivocado para outros. Hegel, para uma série de comentadores, é visto como o melhor filósofo alemão de todos já havidos. No entanto, seu sistema dialético, sua visão de história como movimento do espírito, gerou também grandes debates e controvérsias. Importa dizer: os debates e as controvérsias do sistema hegeliano estão longe de estarem resolvidos. Hegel continua a ser um pensador central, capital, nevrálgico para entender a civilização ocidental sob os conceitos filosóficos. Colocar a teoria hegeliana em pé, como Marx julgou ter feito, é apenas uma parte dessa controvérsia. No Brasil, há uma tendência em considerar que Hegel fora superado por Marx. Em nossas universidades o marxismo virou doutrina dogmática. Tão dogmática que Hegel praticamente desaparece nos discursos marxistas. Polêmicas a parte, estou entre aqueles que não considera válida, e nem longe aceito, a tese de que Marx foi maior que Hegel.

A obra hegeliana é sempre exaltada porque ele quis ser, e certamente foi, a melhor síntese da filosofia ocidental do século XIX. Hegel quis reunir em sua síntese os elementos culturais ocidentais e também apresentar e resolver as polaridades que advém do pensamento religioso. Se segue então, que Hegel transitou em dois grandes campos: o da história como movimento cultural, o que engloba os sistemas políticos, e também a questão religiosa, notadamente a tradição protestante de cujo seio veio e também interpretou sobre diversos vieses. É, todavia, muito o que há em Hegel para dito e analisado. O que segue nas linhas abaixo é tão somente uma pequena e sucinta síntese de seu pensar e a relação destes com seus principais opositores, como Schelling, Ludwig Feuerbach, Kierkegaard e Karl Marx.

 

2. O OBJETIVO DA SÍNTESE DE HEGEL

Maurice Merleau-Ponty chega a tratar Hegel como “a cabeça que quis conter o mundo”. E não se pode negar que ele não tenha mesmo tentado ser uma espécie de filósofo geral de uma época, um pensador capaz de reunir em uma só teoria os 23 séculos de filosofia anteriores a ele. Mas afinal, o quis Hegel. O seguinte comentário traz uma boa elucidação:

 

O sistema filosófico de Hegel propõe uma metafísica nos moldes da modernidade, isto é, uma metafísica negada, com enorme repercussão posterior. Desse sistema nascem  a dialética marxista e a Escola de Frankfurt (hegelianismo de esquerda) e o neo-italianismo italiano (Croce e Gentile). Hegel não só estimulou novas escolas de pensamento, como foi contestado por filósofos do porte de Schopenhauer, Kierkegaard e Nietzsche. Hegel não é apenas a ocasião para se queixar, para Marx realizar, para Nietzsche recusar: ele determina um horizonte, uma língua, um código dentro do qual ainda nos encontramos hoje. Hegel, portanto, é o nosso Platão: aquele que delimita – ideológica ou cientificamente, positiva ou negativamente – as possibilidades teóricas da teoria.

 

Foi da crítica à religião que Feuerbach tirará proveito. A dialética de Hegel havia tentado mostrar que a história é o grande palco do desenvolvimento e do desenrolar do Espírito. O sistema hegeliano havia aberto o caminho para Marx criticar a organização da economia capitalista e formular suas principais teses sobre o socialismo-comunismo.  De certo modo Hegel preparou o caminho para Marx. Na Fenomenologia de Espírito descreve uma situação denominada “dialética do senhor e do escravo”, onde sustenta que o Senhor, acostumado a ser servido, nada sabe fazer além de esperar que os outros venha até ele. Assim, sente-se poderoso. Está convicto de que o escravo jamais entenderá como o poder e a política funcionam. Mas o espírito do escravo, ao perceber que o Senhor nada mais tem a não ser dependente dele (escravo), dará o golpe final, pois percebe que o poder não está com o Senhor, mas com ele (servo; escravo). E é por meio do trabalho – instrumento de alienação e opressão – que o escravo adquiriu a autoconsciência de si no todo da história. Essa interpretação levará Marx a interpretar a história econômica como o palco de guerra entre oprimidos (assalariados) e opressores (empresários; capitalistas), cujo final – como na dialética do escravo de Hegel – tenderá a inverter-se, colocando a classe trabalhadora (os vassalos, servos) no poder. Mas como Feuerbach e Marx interpretam Hegel e o que eles criticam em seu compatriota? Vejamos isso nas linhas abaixo.  

 

3 ASPECTOS DA CRÍTICA DE LUDWIG FEUERBACH E KARL MARX A HEGEL

Situemos, pois, primeiramente a crítica de Hegel às interpretações religiosas. É importante ver isso porque Feuerbach tece suas críticas à religião. E Marx, como é óbvio também. O seguinte comentário é ilustrativo:

 

Hegel vê Deus como o portador das estruturas essenciais de todas as coisas. [...] Hegel, portanto, não podia conceber Deus como uma pessoa entre outras. Se assim fosse, Deus seria menor que Deus. Os processos do mundo e as estruturas do ser estariam acima dele. Deus estaria sujeito ao destino, jogado na realidade como os deuses gregos, que iam a e vinham, imortais apenas em relação à estrutura do cosmos, mas que nasciam e morriam com esse cosmos.

 

O problema de Hegel é ver que religião é bem mais que apenas dependência psicológica de “algo superior”, como havia dito o também protestante Friedrich Schleiermacher. Religião é parte do Geist também. Faz parte do processo dialético da trajetória do pensamento humano. Hegel está longe de ver as questões religiosas como menores. Elas podem até ser, e certamente são, diferentes das questões científicas. Mas são espaços, partes do todo. Cabe à filosofia a estipulação de critérios, conceituação  e interpretação de cada uma dessas grandes questões que formam o Geist, a saber, as ciências, a política e a religião; de modo bem particular, a religião cristã. Para Hegel, em resumo, a religião é parte do processo do espírito humano em sua trajetória histórica e dialética que caminha ao absoluto. Feuerbach, via de regra, como Marx também, aproveita-se das brechas, dos conceitos que Hegel criou, e os utiliza contra Hegel. Feuerbach, por não ser um idealista, assume uma postura materialista, imanentista, para usar um termo mais refinado. Religião, em Feuerbach é uma antropomorfização que o próprio ser humano faz de Deus. Deus é uma invenção, uma projeção da mente humana. Há uma frase sarcástica e bem conhecida de Feuerbach em que ele brinca com o verbo alemão comer, alimentar-se (essen) e o verbo ser (sein). A frase vai assim “Der Mensch ist was er isst”. A tradução seria literalmente: “o ser humano é o que come”, onde “ist” é o verbo ser (sein) conjugado no presente da terceira pessoa singular; e “isst” é o verbo “essen” também conjugado no presente da terceira pessoa singular. A religião, assim, seria uma espécie de invenção para suportar a existência. Desamparado, o homem já não crê em Deus, mas o inventa para poder continuar a sua caminhada. Feuerbach engendra uma antropologia por meio da qual pretendia inverter Hegel:

 

[...] Feuerbach, sob a influência do naturalismo, do materialismo e do psicologismo ocidentais, disse que Hegel tinha que ser invertido. Deus não era nada mais do que projeções da consciência humana da própria finitude. [...] segundo Feuerbach, o homem cria Deus em si mesmo. [...] Temos aí a teoria da projeção de Feuerbach. [...] Feuerbach fez aqui uma coisa que Marx reconheceu enquanto crítica final e definitiva da religião. Não podemos entender Karl Marx sem entender sua relação com Feuerbach. Ele achava que Feuerbach resolvera a questão da religião de uma vez para sempre. Religião era projeção. Trata-se de algo subjetivo em nós que colocamos no firmamento do absoluto.

 

Esse aspecto de Feuerbach será incorporado por Marx nas suas críticas ao capitalismo e à estrutura de poder da classe burguesa. Marx proclama então a religião como suspiro de classes oprimidas. Ele transforma o problema individual em problema coletivo. A projeção de Feuerbach precisa ser interpretada  como existência social. Marx aplica esse conceito, a projeção, ao social, à economia e seus interesses capitalistas. Assim, a projeção divina de Feuerbach assume em Marx uma espécie de “projeção dos deserdados da terra”. Importa ainda observar que Marx também critica a visão materialista individual de Feuerbach. Para ele, o materialismo e o naturalismo de Feuerbach precisam ser transformados em termos do social. É a sociedade que deve ser analisada sob os critérios da projeção. Em suma, Marx aceita a noção de projeção da religião, mas dá a ela um sentido coletivo. Pois a religião e então um artifício mantido pela classe burguesa para ludibriar a classe trabalhadora. Em linhagem tipicamente marxista, ela é alienação. Marx então quer ver a projeção – a antropologia  e os antropomorfismos de Feuerbach – sob as condições materiais da história.  Para Marx, a força do coletivo, do social se impõe sobre o individual. São as condições materiais que moldam as consciências individuais. O que Marx “corrige” em Feuerbach segundo ele mesmo, é o problema sensitivo, o empirismo antropológico visto sob aspectos individuais. A projeção não pode ser vista como uma questão individual e religiosa, mas como um problema social, econômico e político. Marx, assim, faz da dialética de Hegel o espaço político onde o proletário é realçado à condição de revolucionário, de transformador de todo o empreendimento capitalista. Por essa razão também, mais que Hegel, Marx, ainda que quisesse derrotar a religião, permaneceu nela sem o perceber porque sua leitura da dialética de Hegel fez dele não só um grande analista do legado capitalista, mas sobretudo um “profeta”.

 

4 REFERÊNCIAS:

CASTRO, Susana de (org.) Introdução à filosofia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

NÓBREGA, Francisco Pereira. Compreender Hegel. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.

SCHELLING, Philosophie der Offenbarung(1841-1842). Herausgegeben und eingeleitet von Manfred Frank. Frankfurt am Main: Surhkamp Taschenbuch Verlag, 2006. [Filosofia da revelação. Editada e prefaciada por Manfred Frank]

TILLICH, Paul. Perspectivas da teologia protestante nos  séculos XIX e XX. Tradução de Jaci Maraschin. São Paulo: ASTE, 1986.

ZILLES, Urbano. Filosofia da religião. 3ª edição. São Paulo:  Paulus, 1999.

NOTAS E COMENTÁRIOS

Há uma boa apresentação das sínteses religiosas, culturais e políticas de seu pensamento em TILLICH, Paul. Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX, páginas 120-137.

A perspectiva materialista de Marx julgou que a teoria de Hegel estivesse de cabeça para baixo: para Marx a ideias importam menos do que as intervenções práticas. Segundo Marx, teria sido justamente aí o ponto fraco da teoria hegeliana: seu idealismo teórico, seu “descompromisso com a práxis”, conforme o jargão marxista. Marx pretendia uma teoria que fosse capaz de modificar os problemas econômicos, isto é, inverter as relações entre trabalho e capital, que, segundo ele, só favoreciam o capitalista em detrimento da exploração do trabalhado, visto como mercadoria pela empreendimento capitalista.  

Uma análise muito bem escrita sobre esse dogmatismo marxista na cultura universitária brasileira e as consequências e inconsequências do uso e aplicação do marxismo, como fonte teórica dos intelectuais brasileiros atuais, pode ser encontra no provocativo livro de Olavo de CARVALHO, O jardim das aflições. São Paulo: Editora É, 2010.

Sinto me alinhado a Paul Tillich, quando diz: “A grandeza de Hegel esteve em ter criado categorias que outros podiam jogar contra ele. [...] Marx utilizou o conceito de distanciamento ou alienação de Hegel, para em seguida atacar Hegel”, op. cit., p. 127.

É preciso que se perceba que a tradição idealista não deixou de fora a questão da filosofia e sua relação com o problema religioso A evidência maior disso é o trabalho de SCHELLING, Filosofia da revelação, 2006. Ver nas Referências que a obra está em alemão e não há, até onde sei, tradução deste texto ao português praticado no Brasil. Essa obra, entre outras coisas, é também uma avaliação crítica à síntese de Hegel sobre o papel político da religião.

CASTRO, [org], Introdução à filosofia, p. 88.  Na passagem que citamos, há uma citação dando a entender que a passagem, toda ela ou parte dela, venha de (CHÂTELET, 1995, p. 15). Todavia não há aspas e nem destaque que nos permita ver o que é opinião do autor que estamos a citar – no caso CASTRO org., - e o que é citação de segunda ordem.

Tillich, op. cit., p. 126.

Op. cit., p. 139-140.

Op. cit., p. 141.

As observações finais de nosso texto encontram-se melhor apresentadas em TILLICH, op. cit., p. 177-181, e também ZILLES, Filosofia da religião, páginas 121-129, das quais tomamos apenas alguns conceitos sumários.