A EUTANÁSIA SOB O PRISMA DO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO: UMA VIOLAÇÃO DO DIREITO A VIDA OU UM RESPEITO À VONTADE E AUTONOMIA DO PACIENTE

 Autoras: Camila Araújo Martins e Carolina Sousa de Araujo

Resumo: O bem jurídico vida é tutelado expressamente pela Constituição Federal, embora algumas vezes seja atentado pelo seu próprio titular. A eutanásia é um dos meios atentatórios à vida, sendo vedada pela legislação pátria. Por outro lado, princípios constitucionais, como a Dignidade Humana, devem ser respeitados, não permitindo a excessiva preocupação em prolongar o tempo de vida biológica, sob pena de invalidar a qualidade de vida e o bem-estar. Identificando o consentimento informado como expressão máxima do princípio da autonomia do paciente e o porquê deste sê-lo irrelevante juridicamente. Diante da análise de doutrinas e uso do direito comparado, busca-se chegar a conclusões não absolutas, mas uma postura crítica em relação aos limites de Direitos Fundamentais e do Direito Penal, bem como a postura paternalista do estado.

Palavras-chave: Autonomia. Eutanásia. Dignidade Humana. Direito Penal. Paternalismo Estatal.

 

INTRODUÇÃO

O bem jurídico vida, elevado a categoria de direito fundamental e que na sua essência é o alicerce para o exercício dos demais direitos, fato que representa um motivo robusto para a exaustiva proteção que lhe é outorgada pela lei penal.  No Brasil tal direito foi citado expressamente a partir de 1946 quando o art. 141 da Lei maior assegurava aos brasileiros e aos estrangeiros residentes os diretos a vida, a liberdade, a segurança individual e a propriedade. A tutela do ordenamento jurídico a vida não impede acontecimentos que extrapolam previsões e acabam por dificultar o perfeito andamento deste bem tão valioso. 

Homeostasia é o conceito de equilíbrio do organismo humano, quando esse equilíbrio sofre distúrbios, por qualquer motivo, denominamos como doenças. Essas assumem diversas faces, e muitas vezes podem assumir a de dor e sofrimento prolongados. Alguns tratamentos podem cessar tais sofrimentos, outros apenas amenizam e há ainda os que apenas prolongam a vida sem garantir a esta a devida dignidade. Quando se esgotam todos os tratamentos disponíveis e um nível de irreversibilidade vital é alcançado, a doença assume o caráter terminal. Para cessar esse sofrimento há a opção da eutanásia, onde é fundamental que o paciente sofra de doença terminal incurável ou aparente estado de invalidez irreversível.

Para a discussão sobre tal procedimento é mister que sejam abordadas questões como o critério da incurabilidade, o consentimento do paciente, autoria e participação, e a proteção penal. O presente trabalho é um convite a uma racional analise acerca a vida e o direito, abordando temas polêmicos e contraditórios sobre os limites do direito penal e o caráter paternalista do Estado.

 

  1. CONCEITO E GENERALIDADES

Deriva do grego Euthanasia (eu, que significa bem + thanatos que significa morte) [1]. A palavra ficou conhecida na medicina com o filósofo Francis Bacon, que defendia em sua tese a prática da eutanásia pelos médicos, quando estes, não dispusessem mais de meios para levar à cura um enfermo: “o médico deve acalmar os sofrimentos e as dores não apenas quando este alívio possa trazer cura, mas também quando pode servir para procurar uma morte doce e tranquila” [2]. O significado evoluiu ao longo dos anos e exigiu terminologia específica para designar condutas diferentes. Hodiernamente, o conceito se limita apenas a casos terminais, sendo o emprego ou a privação de procedimentos que apressem ou induzam ao óbito de um doente incurável, com o intuito de libertá-lo dos intensos sofrimentos que o acometem.

De acordo com o critério adotado a Eutanásia pode ser classificada de várias formas:

Eutanásia natural: refere-se à morte produzida sem artifícios e padecimentos; ou seja, é a morte natural ou senil, resultante do processo natural e progressivo do envelhecimento;

Eutanásia provocada ou voluntária: implica o emprego de quaisquer meios pelos quais a conduta humana, seja pelo próprio moribundo, seja por um terceiro, contribui para acabar com a agonia, aliviando o sofrimento do paciente ou abreviando-lhe a vida.

Tal modalidade de Eutanásia distingue-se de acordo com sua autoria, podendo ser subdividida em:

Eutanásia autônoma: é a preparação e atuação da própria morte, não havendo intervenção de terceiros.

Eutanásia heterônoma: resulta da ação ou participação de outras pessoas. [3]

 

Para alguns doutrinadores a eutanásia autônoma pode ser o mesmo que suicídio, embora para outros não haja coincidência entres ambos, visto que a eutanásia autônoma seria a aceleração da morte para abreviar o sofrimento físico proveniente de uma doença terminal. Enquanto o suicídio seria acabar com a própria vida violenta e voluntariamente por qualquer motivo, divergentes dos supracitados. Ambos os casos há a vontade direta de morrer e o ato de privar-se da própria vida. O suicídio seria o gênero enquanto a Eutanásia autônoma seria a espécie. Quanto ao modo de execução, classifica-se em:

Eutanásia ativa ou por comissão: é a Eutanásia propriamente dita a qual é efetivada através de atos para ajudar a morrer, eliminando assim, o sofrimento do doente.

Tal modalidade pode ser subdividida em:

Eutanásia ativa direta: ocorre quando se tem por objetivo maior o encurtamento da vida mediante atos positivos;

Eutanásia ativa indireta: há dupla finalidade: aliviar o sofrimento do doente e abreviar seu tempo de vida.

Eutanásia passiva ou por omissão: modalidade mais frequente de Eutanásia, podendo ser conceituada, como a omissão de tratamento ou de qualquer meio que contribua para a prolongação da vida humana que apresente alguma deterioração irreversível ou uma enfermidade incurável. Dá-se pela não-iniciação de um tratamento, em não tratar de uma enfermidade grave ou em suspender um tratamento já iniciado. Tal espécie de Eutanásia deve ser sempre voluntária e direta, não se confundindo com a omissão indireta de tratamento vital, caracterizada pela recusa do paciente a submeter-se a cuidados médicos que lhe são ministrados.

Há divergência na doutrina quanto ao desligamento dos aparelhos médicos que mantêm as funções vitais do paciente, discutindo-se se tal ato seria uma conduta ativa ou omissiva. De acordo com a corrente majoritária, a conduta de se desligar os aparelhos clínicos trata-se de uma omissão, consistindo esta na omissão de um fazer; ou seja, comissão por omissão. [4]

 

Dentre as outras classificações está a Distanásia[5], que “por sua vez, se dedica a prolongar ao máximo a quantidade de vida humana, combatendo a morte como grande e último inimigo”  [6]. E a Ortotanásia, que faz menção à Eutanásia passiva ou por omissão, sendo delimitada por Nelson Hungria como “a deliberada abstenção ou interrupção do emprego dos recursos utilizados para a manutenção artificial das funções vitais do enfermo terminal, deixando assim que ele morra naturalmente, nos casos em que a cura é considerada inviável” [7].

 

  1. ASPECTOS ÉTICOS DA EUTANÁSIA

A eutanásia hoje não é mais vista como a simples possibilidade de tirar a vida de alguém que esteja sofrendo em função de determinada moléstia. Seu conceito é muito mais complexo e envolve uma serie de questões éticas, religiosas, morais e cientificas.

Alguns princípios religiosos embasam os argumentos contra tal pratica. Um deles é o que a vida é um dom divino e o homem não tem o direito de subtraí-la, bem como, nós somos a imagem e semelhança de Deus. Qualquer atentado contra a vida humana é atentar contra a ordem divina.

Os favoráveis a pratica admitem sua utilização por acreditarem que a vida é sagrada e por isso deve ser mantida com a maior dignidade possível.

No âmbito da bioética há princípios que podem ser aplicáveis a questão da eutanásia. Primeiramente o principio da beneficência. Consiste na obrigatoriedade do profissional da saúde fazer o melhor para o paciente valendo-se da regra da confiabilidade, ou seja, o dever de agir conforme o interesse do enfermo. A beneficência, na prática, deve seguir o seguinte roteiro: O enfermo corre risco significativo de sofrer dano ou prejuízo; A ação do profissional é requerida para impedir esse dano; Essa ação provavelmente o impedirá; Ela não trará risco significativo para o próprio profissional; O benefício do enfermo excede em valor o possível dano para o profissional.

Outro principio norteador é o da autonomia que diz respeito à capacidade de autogoverno do individuo. Este teria a possibilidade de escolha e o medico teria que agir com o devido respeito a tal escolha, o paciente possui domínio sobre sua vida e sua intimidade deve ser respeitada. Para Kant as pessoas nunca devem ser tratadas como meios para fins de outras pessoas, pois o homem deve ter direito as suas autonomias. O medico tem o dever de respeitar a vontade do paciente. Deve estar o enfermo acima de qualquer interesse, visto que ele é sujeito e não objeto de alguma instituição que trata a saúde, ou de pesquisa científica.

Já o principio da qualidade de vida diz respeito a capacidade do individuo realizar seus objetivos . Representa a capacidade de comunicação e de auto-experiência.

 

  1. A EUTANÁSIA SOB O PONTO DE VISTA JURÍDICO-PENAL

De acordo como código o homicídio eutanásico é uma causa de diminuição de pena, pois conforme tal código o agente que comete crime impelido por relevante valor moral pode ter a pena reduzida de um sexto a um terço.

Como a nova parte Geral do Código Penal brasileiro adotou o sistema trifásico, o juiz deve considerar o motivo de relevante valor moral no homicídio eutanásico na terceira fase da aplicação da pena.

Pelo Anteprojeto de Código Penal a eutanásia constitui uma espécie de homicídio privilegiado, sendo que a pena de reclusão é de dois a cinco anos. O homicídio piedoso (denominação para eutanásia) justifica-se como privilegiado, pois o motivo em si é aprovado pela moral pratica, pela compaixão e o sofrimento da vitima.

Para a doutrina, a eutanásia é justificável em três hipóteses: a eliminação as vida indigna de ser vivida, a ortotanásia e a morte do enfermo que sofre intensamente.  Nos casos em que o doente encontra-se em pelo gozo de suas faculdades mentais, a solicitação deste é fundamental.

3.1.  Consentimento do enfermo: Consentimento informado como expressão máxima do princípio da autonomia do paciente

O consentimento do enfermo não pode ser desconsiderado no momento da aplicação da pena, servindo na fixação da pena base. O art. 59 aponta o comportamento da vitima como circunstancia relevante anterior ao crime. Na ocorrência de concurso de agravantes e atenuantes, a pena terá que ser aproximada do limite abarcado pelas circunstancias preponderantes que são as que resultam dos motivos determinantes do crime, etc.

3.2.  Autoria e participação

O homicídio eutanásico admite como sujeito ativo qualquer pessoa . Quando se trata de eutanásia pura e a indireta, o único autorizado a agir é o medico , sua conduta em tais casos é atípica . Na eutanásia direta, qualquer pessoa poderá configurar-se como autor de homicídio.

Admite-se a co-autoria e a participação pela instigação ou cumplicidade material ou moral.

Na sua forma passiva, por ser delito omissivo, não se admite participação. Somente o medico pode ser autor (delito próprio). Sendo assim, todos os médicos que participam do procedimento são considerados autores colaterais.

O art. 30 do Código Penal Brasileiro, apregoa que comunicam-se a todos os que participam do crime as circunstancias atuantes sobre o injusto. Porem não são comunicáveis, as circunstancias que influenciam sobre a medida da culpabilidade.

 

  1. UMA BREVE REFLEXÃO SOBRE A POSTURA PATERNALISTA DO ESTADO

O paternalismo estatal, classificando-o de acordo com as partes envolvidas, é aplicável ao médico e o paciente. Mesmo que o paciente em estado terminal solicite ao médico que desligue seus aparelhos, este não pode satisfazer essa vontade, pois será punido. Portanto, essa espécie de paternalismo envolve duas partes da seguinte forma: uma parte solicita ou consente na lesão; já a outra age para provocar a lesão.

A vida não é um valor absoluto, e a vida que vale a pena ser vivida é aquela que o sujeito tem autonomia para gozar daquilo que lhe é proporcionado. O Estado Liberal deve acatar que o ser humano, individualizado, não queira viver forçadamente, contrário aos seus valores e sua vontade autônoma. Sendo uma pessoa autônoma, esta “é capaz de decidir, para si próprio, o que significa morrer com dignidade” [8]. Deste modo, se um paciente adulto, de livre escolha, nega continuar vivendo em um estado insuportável de dores físicas e mentais, não há responsabilidade penal do médico. Obrigar alguém a viver em tais condições contrariamente à sua vontade é violar sua autonomia individual.

Não se pode negar que o fim da vida impede o ser humano de exercer qualquer atividade, ou seja, há a perda da sua autonomia. No entanto, em casos de doenças terminais, onde não há uma perspectiva de autonomia futura, a tutela penal do bem jurídico vida demonstra-se ilegítima. Punir penalmente o médico ou alguém que venha a consentir com a interrupção do tratamento a pedido do paciente é tratar paternalisticamente um bem que já está irreversivelmente condenado. Há um paternalismo impuro, que pune criminalmente um sujeito para prolongar a agonia de quem pede para morrer, atingindo sua qualidade da vida e a dignidade da pessoa. Antes da antecipação da morte, deve-se primar pela interrupção do sofrimento.

 

Considerações finais

Baseada principalmente no principio da dignidade da pessoa humana, a  eutanásia merece total atenção. Frente a todas as questões expostas em tal trabalho, conclui-se que o direito a vida é uma obrigação do Estado ,porem, sua interpretação não deve ser estendida com uma imposição legal do Estado. Este possui o dever de proporcionar a dignidade e assistir a vontade do ser humano exercendo seu pleno direito a liberdade.

A importância do direito a vida é inegável Todos os mecanismos impeçam atos que afrontem tal direito devem ser utilizados.Porem ,  Impedir a eutanásia em determinados casos é promover uma vida indigna e atentar seriamente ao livre-arbítrio.Não podemos aceitar o eterno sofrimento sendo que se algo pode ser feito para a cura deste deve ser feito. Quando tratamentos médicos não conseguem atingir os objetivos de preservar a saúde ou aliviar o sofrimento não é racional que se prolongue tal estado.

 

 

REFERÊNCIAS

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ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento em direito penal médico: o consentimento presumido. Revista Portuguesa de Ciência Criminal. n. 1 e 2, 2004. p. 117-148.

CARVALHO, Gisele Mendes de. Aspectos Jurídicos – penais da eutanásia. São

Paulo: IBGGRIM, 2001.

ESTELITA, Heloísa. Paternalismo, moralismo e direito penal: alguns crimes suspeitos em nosso direito positivo. Revista Brasileira de Filosofia. Vol. LVI, 2007. p. 333-341.

FRISCH, Wolfgang. Consentimento e consentimento presumido nas intervenções médico-cirúrgicas. Revista Portuguesa de Ciência Criminal. n. 1 e 2, 2004. p. 67-115.

LARCHER, Marcela. A previsibilidade da eutanásia no direito penal moderno. 2004. 42 f. Monografia (Bacharel em Direito) - Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais Vianna Júnior, Juiz de Fora, Set. 2004. Disponível em: <http://www.viannajr.edu.br/site/menu/publicacoes/publicacao_direito/>. Acesso em: 12 out. 2011.

LEPARGNEUR, Hubert. Bioética da eutanásia: argumentos éticos em torno da eutanásia. Bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, v. 7, n. 1, 1999. p. 41-48.

MÖLLER, Letícia Ludwig. Direito à morte com dignidade e autonomia. Curitiba: Juruá. 2008

SÁ, Maria de Fátima Freire. Direito de Morrer: eutanásia, suicídio assistido. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 39. Disponível em: <http://books.google.com/>. Acesso em: 13 out. 2011

SANTOS, Cleopas Isaias et al. Capacidade etária mínima para consentir no direito penal médico. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 88, 2011. p. 19-42.

SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Transplante de órgãos e eutanásia: Liberdade e responsabilidade. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 209.



[1] AULETE, Francisco J. Caldas; VALENTE, Antonio Lopes Dos Santos. Aulete Digital: Dicionário contemporâneo da língua portuguesa Caldas Aulete. Disponível em: <http://www.auletedigital.com.br/>. Acesso em: 12 out. 2011.

[2] No século XVII por Bacon. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Transplante de órgãos e eutanásia: Liberdade e responsabilidade. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 209.

[3] LARCHER, Marcela. A previsibilidade da eutanásia no direito penal moderno. 2004. 42 f. Monografia (Bacharel em Direito) - Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais Vianna Júnior, Juiz de Fora, Set. 2004. Disponível em: <http://www.viannajr.edu.br/site/menu/publicacoes/publicacao_direito/>. Acesso em: 12 out. 2011.

[4] Idem.

[5] Uma morte angustiada, uma agonia lenta e dolorosa. Etimologicamente opõe-se a eutanásia. Deriva do grego: Dys que significa mal + thanatos que significa morte.

[6] SÁ, Maria de Fátima Freire. Direito de Morrer: eutanásia, suicídio assistido. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 39. Disponível em: <http://books.google.com/>. Acesso em: 13 out. 2011.

[7]  CARVALHO, Gisele Mendes de. Aspectos jurídico-penais da eutanásia. São Paulo: IBCCRIM, 2001, p. 127.

 

[8] MÖLLER, Letícia Ludwig. Direito à morte com dignidade e autonomia. Curitiba: Juruá. 2008. p. 98.