A LITERATURA COMO ENCANTAMENTO E CONTRAPONTO À SERIEDADE CIENTÍFICA NA PERSPECTIVA DE RUBEM ALVES

Werner Schrör Leber

O texto que segue aborda determinados aspectos da obra do escritor e professor brasileiro Rubem Alves. O repertório bibliográfico do mencionado autor é vasto e diversificado, tratando de temas que vão desde a teologia sistemática à literatura infantil. Toma-se como referência tão somente alguns aspectos literários de suas mais de 80 publicações e procura-se apontar a relevância deles para o Ensino de Literatura na respectiva área de conhecimento de literatura para a docência desta disciplina no Ensino Fundamental e Médio. O estudo procura apontar como Rubem Alves faz uso de recursos literários para criticar a fronteira estabelecida entre o que seria literatura e conhecimento científico. O estudo procura mostrar como o autor parte das possibilidades da linguagem para desmistificar o preconceito largamente institucionalizado segundo o qual a suposta rigidez e rigor das ciências é um conhecimento mais aprofundado e rigoroso do que a literatura.   

 

Palavras-chave: Ciência; Encantamento; Literatura.

 

1 INTRODUÇÃO

Rubem Alves é um renomado educador brasileiro, com vasta e diversificada produção publicada, avalizada e reconhecida por pesquisadores e críticos. Investigar aspectos de sua obra significa adentrar ao pensamento de um dos mais provocativos e inteligentes pensadores brasileiros da atualidade (LAGO, 2008).[1] Sob muitos aspectos, único. Ainda assim, porém, a abordagem de suas ideias tem sido pouco explorada no estudo da literatura na Educação Básica.[2] É muito mais comum encontrar-se referências a seu nome na filosofia política e nas teorias educacionais sobre o estatuto epistemológico das ciências.

A sua produção bibliográfica é extensa e aborda assuntos de várias ordens, que vão da filosofia da ciência à literatura infantil.[3] Ele não é um filósofo tradicional e, menos ainda, um teólogo catedrático. Antes, bem o oposto disso. Entre os principais textos do autor que surgem neste trabalho, destacam-se Entre a Ciência e a Sapiência, Pai Nosso Meditações, Teologia do Cotidiano, Variações sobre Vida e Morte, Conversas com Quem Gostas de Ensinar e A filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras.

Desde o início dos anos sessenta, quando Alves ainda era apenas um pároco no interior de Minas, a relacionamento entre poesia, literatura e ciência já o inquietava. Havia farejado que outras possibilidades estão no horizonte e que era preciso imaginação para alcançá-las. Quando eclode a ditadura militar no Brasil, em 1964, Rubem Alves é obrigado a deixar o país, a exemplo do que ocorreu com vários intelectuais e artistas considerados subversivos e perigosos pelos militares à época.

Em solo estadunidense, Alves estudou intensamente e pôde concluir também seu doutoramento em filosofia política. De volta ao Brasil em 1979, quando os governos militares ensaiavam uma anistia aos refugiados políticos, Alves inicia a sua carreira de escritor, que se tornaria de então para adiante cada vez mais influente e significativa. Ao lado de suas produções literárias, assumiu também a cátedra de Filosofia Política na Universidade de Campinas (Unicamp), Estado de São Paulo, ainda em 1979, em cujo cargo se aposentaria mais tarde.

Rubem Alves costuma dizer que nasceu na Serra da Boa Esperança, a mesma da música de Lamartine Babo, da qual muitos falaram, mas poucos de foram lá, conforme diz.[4] Entre as várias questões que Alves levanta, pode ser perguntado: qual a importância de Rubem aos estudos literários atuais no Brasil? Embora, como ficou dito, Rubem Alves é sempre lembrado como crítico da educação, a maior parte de suas obras são literárias. Inclusive aquelas que aparentemente se propõem a discutir política, religião e ciência.

 

2 O SENTIDO CRÍTICO DA LITERATURA EM RUBEM ALVES

Como já foi indicado, Rubem Alves escreveu sobre inúmeros temas, seja em livros, jornais, simpósios, anuários e outros. Entre esses temas, encontra-se também o que consideramos a literatura de suas obras. De que ordem ela é e como interage com os discursos científicos? Como religião, morte, Deus podem ser abordados literariamente? É o que se pretende fazer nesse tópico.

 Rubem Alves foi também sempre muito criticado por suas ousadias. Escreveu sobre a relação entre o discurso científico e a literatura. Os temas que envolvem a religião, longe dos dogmas eclesiásticos, estiveram também sempre no horizonte de suas perspectivas. Algumas de suas obras, como veremos, são provocações para a ortodoxia de nossa tradição. Inclusive, tem sido criticado também por não se ater às regras gramaticais com o zelo necessário. Tem reagido com humor às críticas que recebe. Veja-se essa passagem de uma entrevista mais recente:

Vivo errando a grafia. Havia em Campinas um senhor que me escrevia cartas para corrigir-me dos meus erros de grafia. Era como um convidado que se metia numa sopa que eu estava servindo aos amigos e, sem dizer que a sopa era boa, reclamava que a tigela estava lascada” (REVISTA LÍNGUA PORTUGUESA, 2007, p. 15).

A literatura praticada ao longo do século XX, bem como também a literatura como área de ensino dos estágios da Educação Básica do Brasil na atualidade, precisam considerar o engessamento produzido pelo positivismo lógico das ciências naturais (ALVES, 1981). O ensino de literatura, primeiramente, tem como alvo contrapor-se à lógica dita científica.

Sob esse ângulo, Alves se insere entre os pensadores que perceberam a armadilha na qual a literatura havia ficado enredada. O livro didático e as questões filológicas, as questões sociológicas e históricas quase sempre eram sobrepostos à literalidade dos textos, fazendo dos textos literários apenas pretexto para estudos de outra ordem, sem adentrar na literalidade deles (ATAIDE, 2002). Essa tem sido a queixa de outros críticos também. Quase sempre se descamba para o ensino da gramática porque tem um aspecto, aparentemente, mais objetivo (SOARES, 2007).

Desse modo, se pode dizer que Rubem Alves está de acordo com os teóricos da literatura para quem ela não representa algo inferior, menos sério e menos objetivo que as investigações científicas. Ocorre o contrário, é a ciência que não tem, simplesmente porque não pode ter, o rigor, a seriedade e a objetividade que se arroga. Não se trata de julgar quem é melhor. Trata-se de ver que as diferenças entre esses campos do saber não tão nítidas, quando o senso já institucionalizado pela tradição científica nos faz crer. Lembremos-nos sempre do que Alves disse: “A ciência é muito boa dentro de seus precisos limites. Quando transformada na única linguagem para se conhecer o mundo, entretanto, ela pode produzir dogmatismo, cegueira e, eventualmente, emburrecimento” (ALVES, 1999, p. 115).

Estudar literatura sob o crivo dos gêneros literários sempre foi algo controverso. Desde Platão e Aristóteles, para não voltar ao Egito, China ou Suméria, surge a questão da função da arte (da poética) e da arte (mímese). Platão, como sabemos, foi um autor da alma e condenou a arte porque ela, conforme sua teoria, duplica as coisas visíveis que são, por sua vez, cenários difusos da beleza eterna que está na alma (HARE, 2004). Ainda assim, conforme nos relata Soares (2007, p. 09) “Platão [...] nos deixou a primeira referência, no pensamento ocidental, aos gêneros literários: a comédia e a tragédia se constroem inteiramente por imitação, os ditirambos apenas pela exposição do poeta e a epopéia pela combinação dos dois processos”.

Em que gênero literário incluir a obra de Alves? Lembra-nos o comentador que “a literatura é, tradicionalmente, uma arte verbal” (FILHO, 1986, p. 08). Parece-nos que Alves insere-se na narrativa, no romance e no ensaio. No entanto, a sua obra fica também muito bem localizada quando vista sob o ângulo da intertextualidade ou dialogicidade, conforme nos lembra a comentadora, “[...] há sempre uma absorção ou réplica de outros textos, ou seja, há relações de intertextualidade” (SOARES, 2007, p. 72). Conforme nos parece, no âmbito na intertextualidade deve ser situada a literatura que Alves desenvolve. E aqui cabem as palavras do autor investigado:

É uma transformação de nossa visão do mundo, na qual as coisas se integram como em uma melodia, o que nos faz sentir reconciliados com o universo ao nosso redor, possuídos de um sentimento oceânico, na poética expressão de Romain Rolland, sensação inefável de eternidades e infinitude, de comunhão com algo que nos transcende, envolve e embala, como se fosse o útero materno de dimensões cósmicas (ALVES, 1984, p. 122).

A dificuldade de classificar a arte está em que basicamente todas as “rotulações” que se atribui a ela são insignificantes. Daí vem a famosa afirmação de Renoir “se podes explicar uma pintura, é porque não se trata de uma obra de arte” (DEL PINO, 1976, p.34). Ademais Alves também se ocupou com a educação e seu encantamento, como ocorre em um de seus mais brilhantes livros Conversas com quem gosta de ensinar (ALVES, 1980).

 

3 DEUS, RELIGIÃO E TEOLOGIA COMO LITERATURA EM RUBEM ALVES

Rubem Alves combina teologia e filosofia com literatura de modo provocativo e inteligente. [5] Seus temas preferidos são a morte, o ensinar, Deus a oração, os jequitibás e os ipês. Esses últimos ele já escolheu para a sua morada eterna. Afinal, a morada eterna é silenciosa, conforme escreveu “Não acredito em oração em que a gente fala e Deus escuta. Acredito mesmo é na oração em que a gente fica quieto para ouvir a voz que se faz ouvir no meio do silêncio” (ALVES, 1994, p. 56).  Com fina ironia, atinge às profundezas de assuntos teológicos ou científicos por meio de uma literatura que brinca com o cotidiano e as tristezas de nossa existência. Podemos perceber isso nas palavras que seguem:

A coisa curiosa com as palavras é que elas parecem ter o poder para produzir, construir entidades ideais com que o pensamento brinca e se diverte, sem que elas existam, como objeto, em lugar algum. Elas são capazes de designar ausências e, na medida em que o discurso passa de boca em boca e nele investimos o nosso amor, aparece aquela coisa curiosa que é um pacto em torno daquilo que não existe, seja uma saudade, seja uma esperança. [...] Toda liturgia não será uma dança ao som de uma música que brota de uma ausência? (ALVES, 1985, p. 139).

Rubem Alves sabe que Deus e morte moram nas palavras. É preciso encantar-se com elas. É preciso fazer como Guimarães Rosa em Grande Sertão Veredas, falar de Deus de modo a transgredir tanto as normas da ortodoxia gramatical bem como também a teológica. Temas como a morte, oração e fé surgem em textos como poemas, versos, poesias e chistes. Nietzsche, sempre condenado por cristãos e não-cristãos pelos ataques que fez à moralidade judaico-cristã em sua filosofia, é um velho amigo com quem ele passeia nos jardins.

Esse filósofo alemão, cujo nome completo é Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) está presente em quase todos os seus textos dos anos oitenta e noventa. Relatar a “convivência” de Alves com Nietzsche já seria tema para um outro trabalho, por isso nos limitaremos a alguns detalhes dessa relação. Para Alves, Nietzsche é apenas alguém que não soube dar nome a seus deuses, e não esse ateu que os moralistas costumam ver nele. Para Alves, “Deus” é nome que damos para as nossas ausências. E por isso pôde dizer a seguintes palavras, de algum remissivas às pretensões de Nietzsche, que na ortodoxia científica e teológica jamais seriam toleradas. Veja-se a passagem abaixo:

O Natal anuncia que Deus fugiu de ser Deus. Invejou os prazeres que os homens podiam ter e ele não: dormir, tomar banho de cachoeira, chupar mexerica, brincar, fazer amor, ter de se esforçar por conseguir. A teologia cristã dá a isso o nome de "encarnação". O Natal é Deus dizendo que divino, mesmo, é o humano (ALVES, 2005, p. 204).

Quando lembramos do paraíso que abandonamos, lembramos daquilo que nos faz falta. O homem, ao constatar a solidão e o absurdo que é a vida, inventa Deus. É por isso que Deus é o nome que damos àquilo que nos falta. Mas o que nos falta? Na filosofia existencialista, isso é uma ontologia. Assim a tarefa da teologia é falar de ausências. A oração é o pedido que se faz para que o que se ausentou volte a ter morada entre nós (ALVES, 1987). Assim, já pouco importa as discussões se Deus existe ou não. Como dizia Valéry,: “Que será de nós sem o socorro daquilo que não existe” (ALVES, 1994, p. 80). E Alves complementa assim

E descobrimos esta coisa curiosa: que a linguagem teológica, linguagem do corpo sobre si mesmo, se ri dos currais acadêmicos em que os teólogos sérios a colocaram, arrebenta cercas, e vai cantando pelo mundo afora, nos poemas dos poetas, nas canções dos violeiros, nas confidências dos amantes, nos contos dos literatos, nos chistes dos humoristas e palhaços....brincando sempre e dizendo que, por causa do Grande Mistério, é possível rir e amar...(1985, p. 184). 

A literatura é capacidade e inovar e desafiar para Rubem Alves. As pessoas, assim parece, desconfiam sempre do diferente e pouco aceitam com facilidade algo fora de sua cosmovisão. No entanto, a humanidade só caminhou graças aos fracassos ou sucessos daqueles que arriscam. Rubem Alves sabe da dificuldade de ensinar literatura não fim pragmático, mas como prazer e divertimento estão longe de nossos currículos. A tarefa do educador assemelha-se a um tempo em que se pescava sem redes, conforme diz o nosso autor:

Todos se riam quando ele caminhou na direção do rio com a rede que tecera. Riram-se dos buracos dela. Ele nem ligou. Armou a rede como pôde e foi dormir. No dia seguinte, ao puxar a rede, viu que nela se encontrava, presa, enroscada, uma criatura do rio: um peixe dourado. Foi aquele alvoroço. Uns ficaram com raiva. Tinham estado tentando pegar as criaturas do rio com fórmulas sagradas, sem sucesso. Disseram que a rede era objeto de feitiçaria. Quando o homem lhes mostrou o peixe dourado que sua rede apanhara, eles fecharam os olhos e o ameaçaram com a fogueira. (ALVES, 1999, p. 83)

A literatura, em parte, parece-se com a descrição acima de Alves. Há nela algo que deixa as ciências “sérias” furiosas e em pugna com ela. O mesmo se dá com a filosofia. Todos estão sempre em pugna com ela. Falando sobre a diferença entre o mundo adulto e o mundo das crianças, destaca-se uma passagem que exemplifica a forma que enseja para tratar de coisas sérias de um jeito literário. Vai assim o texto:

As crianças estão brincando. Um delas estica o dedo para a outra e diz: “- Bang. Te matei”. E a outra cai ao chão, nos estertores do faz-de-contas. Os adultos estão brincando. Um deles aponta a arma para o outro e “bang”. “- Eu te matei”. E o outro cai, morto. O brinquedo das crianças termina com a ressurreição universal dos mortos. O brinquedo dos adultos termina com o sepultamento universal dos mortos. A ressurreição é o paradigma do mundo das crianças. Do mundo dos adultos surge a cruz, porque somente aqueles que se levam totalmente a sério se transformam em carrascos” (ALVES, 2005, p. 181).

A citação acima está tratada de maneira literária. Mas seria ela, por isso, menos importante que outras formas argumentativas? Certamente não. Nosso próximo passo consistirá em apresentar uma arquitetônica sobre a relação dos discursos das ciências e da filosofia (não literário) diante da maneira que Alves vê a linguagem e a literatura.

 

4 A CIENTIFICIDADE E A LITERATURA

De onde parte a ciência para considerar-se uma investigação mais séria e mais profunda que a filosofia e a literatura? Para Alves não há como falar da educação, da ciência sem a linguagem literária. A linguagem literária permite o jogo, a transgressão à norma científica que nos faz ver que toda a nossa séria ciência nada mais é que a maneira como conseguimos falar do mundo. Alves assume para suas intenções a perspectiva do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, segundo a qual a linguagem denota os limites de nosso mundo. Primeiramente vejamos o que Alves diz sobre o estatuto da ciência (1981, p. 08):

Antes de mais nada é necessário acabar com o mito de que o cientista é uma pessoa que pensa melhor do que as outras. O fato de uma pessoa ser muito boa para jogar xadrez não significa que ela seja mais inteligente do que os não-jogadores. Você pode ser um especialista em resolver quebra-cabeças. Isto não o torna mais capacitado na arte de pensar. Tocar piano (como tocar qualquer instrumento) é extremamente complicado. O pianista tem de dominar uma série de técnicas distintas – oitavas, sextas, terças, trinados, legatos, staccatos – e coordená-las, para que a execução ocorra de forma integrada e equilibrada.

Nesse sentido, o rigor científico ou a imparcialidade das investigações científicas, e mesmo as análises filosóficas, são tão dependentes da subjetividade criadora como ocorre na literatura. Nesse sentido, as seguintes palavras do autor trazem maior visibilidade à nossa abordagem:

A poesia e a literatura são a arte de burlar as regras da linguagem. Para quê? É só perguntar a um filósofo Zen que ele vai dar a resposta....Filosofia é um jogo de linguagem, um jeito de usar as palavras para entender as palavras. [...] Wittgenstein definiu esse jogo de palavras chamado filosofia como ‘uma batalha contra o feitiço da nossa inteligência por meio da linguagem, (ALVES, 1999, p. 96).

Eis o que escandaliza cientistas, filósofos e teólogos: Alves não aceita a hierarquia estabelecida pelos padrões da mentalidade cartesiana de nossa tradição filosófica, que deu suporte às categorias da ciência que considera-se mais rigorosas que outros conhecimentos. Conforme um de seus mais importantes e significativo estudo Filosofia da ciência: introdução ao jogo e a suas regras  - citado neste trabalho como (ALVES, 2002), a literatura não é menos séria apenas porque não depende das ditas “provas” e “leis” gerais de demonstrabilidade.

Aliás, para Alves, “demonstrar” é “desmontar o monstro”.  Essa é outra frase célebre sua, repetida em vários de seus textos. Costumava citar Fernando Pessoa, para quem as provas científicas são tão somente o mesmo que a literatura, ou seja, papéis enfeitados com letras. Como disse Manoel de Barros, “A ciência pode classificar e nomear órgãos de um sabiá, mas não pode medir seus encantos” (ALVES, 1999, p. 97). 

Os estudos de literatura na escola brasileira nunca tiveram a seriedade que merecem. O mesmo pode se dizer da música, da arte e da filosofia. São conhecimentos importantíssimos ao desenvolvimento da inteligência, mas que sempre foram negligenciados. Nesse sentido, destacamos as palavras do comentador, que assim afirma:

A escola brasileira sempre foi conservadora, jamais um instrumento de libertação; desde as origens, a política oficial agia no sentido de eliminar tudo o que despertasse ideias de liberdade e de espírito crítico. [...] O modelo de que se utilizava o país erro o do ornato: forma pela forma, requinte, rebuscamento. Daí é fácil entender as disputas filológicas, o bacharelismo, as polêmicas literárias. Não importava o que o indivíduo diz: basta que diga bonito. Esse padrão ainda hoje domina a cultura brasileira. [...] Nessa perspectiva, não é à toa que os estudos históricos foram mais desenvolvidos do que outros. Visavam a divulgação da veracidade dos valores dominantes (ATAIDE, 2002, p. 18-19). 

Do mesmo modo Alves insere no rol dos pensadores que inovaram ao tratar de temas arcaicos como a religião e a teologia sob uma perspectiva literária. Como lembra, “o mundo do sagrado não é uma realidade do lado de lá, mas a transfiguração daquilo que existe do lado de cá” (ALVES, 1984, p. 98-100).

Alves compara cientistas a pescadores que lançam redes (1981, p. 88). As teorias científicas são redes para apanhar dados, que no caso da ciência, são os dados – chamados fatos – que ela encontra. Mas nada há na teoria que lhe garanta a eficácia dela. Fatos não são coisas, mas possibilidades criadas pela imaginação. Desse modo, o cientista não está em posição diferente do poeta e do romancista. A inteligência e a imaginação fazem parte tanto dos pressupostos da ciência como também da literatura. De modo bem irônico Alves afirma (1999, p. 101): “Uma teoria é uma hipótese que ainda não foi desbancada”. No que se diz respeito à relação entre conhecimento científico e não-científico, cabem as seguintes palavras:

Volto a Manuel de Barros: “A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá, mas não pode medir seus encantos”. Outra rede: meu corpo é outra rede feita de coração, sangue e emoção. Deixa passar o que a ciência segura. E segura o que a ciência deixa passar. Não mede os encantos do sabiá. Mas fica triste ao ouvi-lo, ao cair da tarde...Isso também é parte da realidade. Sem ser científico (ALVES, 1999, p. 103).

A área da literatura como uma das partes que compõem as habilidades de um licenciado em Letras, assim presumimos, é altamente importante, porém cheia de perigos também. O maior perigo é não aceitar desafios e cair nas malhas da cientificidade já instituída, brutalização que Alves condena com suas críticas. A formação de novos profissionais de literatura exige ousadia e inteligência, mas a primeira é certamente decisiva (MOREIRA, 2002). A literatura é como a vida, “[...] algo que se experimenta emocionalmente, sem que se saiba explicar ou justificar” (ALVES, 1984, p. 122).

 

5 LITERATURA COMO BRINCADEIRA E ENCANTAMENTO

A literatura, como se sabe, tem funções e sentidos. E eles podem ser de muitas ordens e de sentidos os mais diversos (SOARES, 2007; WITZEL, 2001; DEL PINO, 1976; FILHO, 1985; SUTTANA, 2002). Não nos cabe agora discorrer sobre as funções da literatura, mas tão somente indicar como Rubem Alves trata questões sérias com encantamento e beleza por meio da narrativa. Em um livro escrito em forma de cartas, Teologia do Cotidiano, Alves brinca, ironiza e aborda de modo divertido os costumes que criamos em torno de nossas tradições. Veja-se essa passagem:

O que eu queria era um brinquedo. Minhas tias não concordavam. Elas, frágeis mulheres a quem a abstinência do amor tornara frígidas, nada sabiam da alma de um menino. Discordavam da filosofia do Papai Noel. Suspeitavam, inclusive, que ele era dado ao vinho e, como evidência, apontavam para suas bochechas rosadas e felizes. Somente uma pessoa embriagada teria a idéia de andar pelo mundo estragando os meninos com um saco de brinquedos inúteis. Elas sabiam melhor. Eram práticas. Davam presentes úteis. Vinham embrulhados em papel colorido, mas eu já sabia o que estava lá dentro. Ou era lenço, ou era meia, ou era sabonete. E eu tinha de fingir surpresa, alegria e gratidão. Elas não sabiam que o Natal é quando se conta a história de como Deus decidiu que a melhor coisa é brincar. Tanto assim que, contrariando o que diziam os graves doutores da Igreja, o místico medieval Jacob Boehme afirmava que a única coisa que Deus faz é brincar, e declarava também que Adão foi expulso do Paraíso quando deixou de brincar e passou a trabalhar. (ALVES, 1994, p. 13)

Apegando-se à literalidade, Alves crítica desgastadas práticas de celebração do natal. Na verdade, se quisermos ver bem, a crítica de Alves da citação acima, consiste em condenar tanto as práticas consumistas já sacralizadas pela tradição como também a visão tradicional da queda bíblica do Gênesis, que procura explicar de onde veio o mal. A queda se deu porque Adão não quis mais ser criança, não quis mais brincar. Tornou-se sério. Ora, essa é uma forma literária de tratar um assunto dogmatizado pela tradição teológica. Que teólogo ou filósofo seria levado a sério na academia se em um trabalho científico sobre a Queda escrevesse que o pecado surgiu porque Adão  parou de brincar, porque Adão não quis mais ser criança? Ainda que o sentido seja esse mesmo, a cientificidade de nossas tradições não aprovariam um candidato se escrevesse assim.

Mas Rubem Alves arrisca ainda mais, quando trata da loucura. Afinal, quem são os loucos? Vejamos o que ele diz:

[...] cheguei à conclusão de que nenhuma idéia, por louca que seja, é louca. Quem pensa idéias loucas não é louco. Essa afirmação, eu imagino, ao juízo dos meus leitores, é prova de minha loucura. Ao invés de me inocentar pela minha explicação, acabo por confessar a minha culpa. Se eu sou louco vou para o hospício na companhia de pessoas muito interessantes. Por exemplo, a Cecília Meireles, que teve a idéia louca de que seus olhos eram dois peixes que nadavam no fundo do mar, lugar onde se encontrou com os olhos de um outro louco parecido, o poeta T. S. Eliot que, a se acreditar em suas palavras, também gostavam de nadar no azul profundo. E o Fernando Pessoa que, de forma desavergonhada, insistia em contar uma mentira, dizendo que um dia o Jesus menino se encheu da chatura dos céus e baixou no seu quintal, tendo os dois, o Deus e o Poeta, se tornado bons amigos e mesmo jogado as cinco pedrinhas. Depois o Drummond que, mais louco do que eu, se entregava a divagações sobre se Deus era canhoto, para ele a única explicação possível para a condição sinistra do nosso mundo. Também o Lewis Carroll, que conversava não só com um coelho que usava relógio como também com as cartas do baralho, além de viver se gabando do seu poder de atravessar o espelho sem quebrar o vidro (ALVES, 1994, 35-36)

A literatura, como sabemos, permite o jogo do que parece impossível. Ou a literatura nos informa de um jeito engraçado sobre nós mesmos. Seria a literatura como uma criança que fala as coisas exatamente como as vê?

A educação e imaginação literária não podem ser dissociadas, conforme nosso autor. Educar é, antes de tudo, criar sonhos utopias. Como na literatura, na educação as aves devem falar e as árvores passear conosco pelo jardim. É bem verdade que a lógica da ciência só quer que eucaliptos sobrevivam (ALVES, 1980). Mas, apesar de tudo, é preciso plantar jacarandás, ipês e tamarindos. Também porque, mesmo que muitos não queiram, de nada adianta viver sem arriscar-se. “A palavra é o testemunho de uma ausência. Como tal, ela possui uma intenção mágica, a de trazer à existência o que não está lá”, diz nosso autor (ALVES, 1980, p. 38).

Queremos encerrar nosso modesto trabalho com as palavras que Rubem Alves escreveu no prefácio de seu pequeno e significativo livro “Conversas com quem gosta de ensinar”. Citamos essas palavras porque entendemos que elas sintetizam o que estávamos a procurar dizer com nosso estudo. O texto vai assim:

Ponha de novo o livro na prateleira se você está em busca de um discurso sério, científico. Aí dentro você só encontrará conversas com pessoas que gostam de ensinar. Pra conversar é necessário gostar. Caso contrário, a coisa viraria um monólogo: uma fala sem resposta.  Pelos livros de filosofia e ciência que você já deve ter percebido que, via de regra, o que se pretende é um discurso sem resposta. As coisas são ditas de tal forma, com tais precauções e notas de rodapé, que o leitor é reduzido ao silêncio. Nada mais distante do espírito da conversa. O que se pretende, aqui, é tecer uma a dois, ou a três... Aquele que começa oferece um tema, dá um ponto, e passa a agulha ao outro... E assim a coisa vai sendo feita, como tarefa de muitos. E isto sem que se esqueça do humor e do riso, sem os quais aparecem nós cegos que ninguém consegue desatar (ALVES, 1980, p. 03).

Rubem Alves é, seguramente, uma das mais importantes vozes da educação no Brasil. Suas obras literárias chamam a nossa atenção para a beleza, o sonho, ao mesmo tempo que criticam as aspirações unilaterais de determinados métodos que sacrificam a beleza em nome da forma. Alves chama a nossa atenção outra vez mais para o que poetas, cronistas e amantes da literatura sempre souberam: que a literatura é o exercício da liberdade, a luta contra as formas canonizadas do escrever, enfim, a reinvenção do ser humano.

 

6 CONCLUSÃO

Terminamos o nosso estudo certos de que, nem de longe, abordamos todas as possibilidades que o tema permite. Há sempre muitos aspectos que nos escapam, às vezes porque não os percebemos e outras vezes porque o espaço disponível não permite ir mais longe.  Constata-se que o estudo de literatura, também das ciências humanas, um tanto ofuscadas em tempos de pragmatismo e conhecimento técnico, não perderam sua importância.

Rubem Alves, autor aqui analisado, encontra-se entre os pensadores brasileiros que melhor perceberam que a dita seriedade e neutralidade da ciência não tem um fundamento tão consistente quanto a tradição positivista lhe imputa. Nesse sentido, a investigação intenta apontar como Rubem Alves faz da linguagem literária um contraponto ao discurso série das ciências acadêmicas. Como lembra Lago, parodiando Rubem Alves (2008, p. 29) “A ciência não começa com aparelhos. Ela começa com os olhos, a curiosidade e inteligência”.

Acreditamos que foi possível mostrar por meio de nosso estudo que Rubem Alves, embora muito conhecido na área da educação, da filosofia da ciência de da filosofia política, carece ainda de análises mais precisas no que se refere aos estilos e intenções que sua literatura enseja. Sem querer ser arrogante ou presunçoso, esperamos que algumas das indicações aqui apresentadas possam servir de ajuda para estudos aprofundados sobre a questão.

A forma como Alves analisa os discursos ditos científicos e a literatura não tem como objetivo central contrapor um a outro, mas desmistificar certos preconceitos desde muito tempo incrustados em nossas visões de mundo. Não se trata de condenar a ciência, mas apenas de mostrar que a literatura não é, necessariamente, menos importante que as investigações científicas. Além disso, importa também perceber que a ciência não é mais séria, mas é tão somente uma forma, uma linguagem da qual o homem se serve para tratar de seus problemas.

A religião, Deus e a oração não foram expulsos do horizonte do homem moderno, bem ao contrário do que pretendia o iluminismo do século XVIII. Em épocas de triunfalismo científico, o problema religioso permanece. E nada indica que irá acabar. Foi também isso que os textos de Alves sempre mostraram que a religião não é uma questão de sábios, de teólogos e filósofos, mas de pessoas que se perguntam pelo sentido da vida sem ter um critério científico para tal interrogação. É, portanto, falsa a percepção de que a literatura tem um grau de certeza menor que as ciências sobre esse assunto. Bem ao contrário, a ciência é tão pouco precisa quanto a literatura.

E tampouco o assunto é exclusividade da teologia, da ciência da religião ou da filosofia. Também a literatura sempre tratou dela. O que fez Dostoievski? Não seria possível fazer uma lista para provar isso porque o risco de deixar muita gente boa de fora seria grande, mas Dostoievski é bom exemplo. Nesse sentido, Rubem Alves está no caminho de muitos outros autores, como o próprio russo acima referido, e também José Saramago, Adélia Prado, Albert Schweitzer, Albert Camus, Sartre, Kierkegaard. Porém, a forma como Alves o faz, é diferente da maioria daqueles. Alves é mineiro e põe todo o seu “mineirismo” interiorano a favor da literatura.

Mas há outras razões que tornam os escritos de Alves relevantes, seja para a educação, seja para a área de ensino de literatura.  Na sociedade tecnológica atual, a formação de um profissional deve ampliar o processo de ensino e aprendizagem para além das fronteiras tradicionais da sala de aula. Os eventos acadêmicos, culturais e científicos são espaços privilegiados para a troca de idéias e experiências. Da mesma forma, os meios de comunicação eletrônica, sobretudo a internet, possibilitam novos espaços de discussão e reflexão para os estudantes (MOREIRA, 2002)

Conforme Alves sempre reiterou, a intelectualidade presunçosa e convicta de suas certezas, tal como determinada perspectiva de ciência postula, afasta o homem da procura honesta pelo conhecimento e o transforma em dogmático, em “um inquisidor em potencial” (ALVES, 1999, p. 105). Assim também, as teorias educacionais, no mais das vezes, são tão distantes da realidade de nossos leitores e estudantes que tornam incompreensíveis para eles.

Sob a perspectiva pessoal, escrever sobre Rubem Alves, mesmo que um escrito modesto e cheio de lacunas, representa um desejo antigo do autor deste Trabalho de Graduação. Fui aluno na Faculdade de Teologia em São Leopoldo-RS no início dos anos noventa quando Alves era nosso professor convidado e visitante. Constitui, portanto, um privilégio e ao mesmo tempo um desafio escrever um trabalho sobre a visão literária de Rubem Alves. Tenho, porém, consciência de que o trabalho é apenas uma resenha sobre alguns aspectos da obra desse mineiro nascido em Lavras, MG, e que fez de sua solidão e desapontamentos a literatura com a qual encanta seus leitores.

Sob o crivo da perspectiva social, compete-se nos dizer que Rubem Alves é um autor muito conhecido como conferencista e professor universitário. Mas sob o estudo de temas literários há lacunas enormes e muitos espaços a serem aproveitados. Não estamos dizendo que as preencheremos, mas que a pesquisa pode trazer contribuições para o debate. Oxalá, pudesse este TG contribuir nesse sentido. No ensino de literatura são bem extensas as abordagens sobre machado de Assis, Guimarães Rosa, Manoel Bandeira, Euclides da Cunha e muitos outros. Lógico, não poderiam mesmo ser esquecidos. Na educação, Freire, Piaget, Vigotski são nomes recorrentes. Alves não está nem acima e nem abaixo desses todos, mas é bem menos lembrado, pelo menos no ensino de literatura da Educação Básica. Mas ainda há tempo de incluí-lo em “nossa dieta” literária.

 

7  REFERÊNCIAS

ALVES, Rubem. Conversas com quem gosta de ensinar: São Paulo: Editora Cortez, 1980.

 _______ . Entre a ciência e a sapiência: o dilema da educação. 2ª edição. São Paulo: Loyola, 1999.

_______. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 4ª edição. São Paulo: Loyola,

2002

 _______. O amor que acende a lua. Campinas, SP: Papirus, 200

_______. O que é religião.  São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense, 1984.  (Coleção Primeiros Passos,3)

_______. Pai Nosso: meditações. São Paulo: CEDI, 1987.

_______. Variações sobre a vida e a morte: o feitiço erótico-erótico da teologia. 2ª edição. São Paulo: Paulinas, 1985.

ATAIDE, Vicente. O ensino de literatura. Curitiba: HD Livros e Editora, 2002.

CORTELLA, Mario Sergio. Educação, escola e docência: novos tempos, novas atitudes. São Paulo: Editora Cortez, 2014.

DEL PINO, Dino. Introdução ao estudo da literatura. 6ª edição. Porto Alegre: Formação, 1976.

FILHO, Dominício Proença. A linguagem literária. São Paulo: Ática, 1986.

HARE, R. M. Platão. Tradução de Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. 2ª edição. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

LAGO, Samuel. O melhor de Rubem Alves. Curitiba: Editora Nossa Cultura, 2008.

MOREIRA, Carlos Eduardo. Formação continuada de professores: entre o improviso e a profissionalização. Florianópolis: Insular, 2002.

REVISTA LÍNGUA PORTUGUESA. São Paulo: Editora Segmento. Ano II, número 20, junho – 2007.

SOARES, Angélica. Gêneros literários. 7ª edição. São Paulo: Ática, 2007. (Série: Princípios, nº 166).

SUTTANA, Renato. Por que a literatura nos currículos escolares? Revista Analecta. Garapuava, PR, v.3, nº 2, p. 133-146, jul/dez, 2002.

WITZEL, Denise Gabriel. Produção escrita: mecanismos de coesão e coerência textuais. Revista Analecta. Garapuava, PR, v.2, nº 2, p. 57-72, jul/dez, 2001.

 

[1] Rubem Alves nos deixou recentemente. Hoje Mario Sergio CORTELLA (2014) parece estar mais próximo das questões com as quais Alves sempre brincou.

[2] Rubem Alves é muito conhecido no campo das teorias educacionais, sempre solicitado em simpósios sobre educação, filosofia política, teoria do conhecimento em cursos de extensão para educadores e áreas afins. Mas sua referência como produtor de literatura, sobretudo infantil, ainda não está suficientemente divulgado nos materiais didáticos da Educação Básica. Esse também é um dos motivos pelos quais se optou fazer o Trabalho de Graduação sobre determinados aspectos de seus textos.

[3] São bem conhecidas, entre outras, as suas obras para o público infantil, como, por exemplo, O País dos Dedos Gordos, A Pipa e a Flor, A menina e o Pássaro Encantado, A Toupeira que queria ser Cometa, O gambá que não sabia sorrir.

[4] Essa afirmação é recorrente em prefácios e posfácios de suas obras. Por exemplo, Alves (1980, p. 05) e Alves (1984, p. 133).

[5] Por exemplo, ALVES, Variações sobre a vida e a morte: o feitiço erótico-erótico da teologia. São Paulo: Edições Paulinas, 1985.